Governo dos Açores - Secretaria Regional da Educação, Ciência e Cultura - Direção Regional da Cultura

contrabando

Considerados, desde as Ordenações, como crimes contra o comércio público, os contrabandos representavam todas as transacções feitas à revelia da lei, implicando a introdução de mercadorias estrangeiras, sem o pagamento de direitos ou a despeito de alguma proibição ou ainda, no caso dos descaminhos, compreendendo fugas ao pagamento de direitos no acto de exportação (Silva, 2001: 559-563). A localização dos Açores fez destas ilhas, durante vários séculos, um ponto de confluência das rotas transatlânticas, propício à prática do contrabando, quer por parte de mercadores locais, carenciados de produtos manufacturados ou de luxo, quer por parte de mercadores estrangeiros que se fixavam no arquipélago.

A proximidade de algumas ilhas, as numerosas praias e baías de fácil acesso e sem fiscalização, a ausência quase total de sinalização costeira e os direitos proibitivos impostos a algumas importações mantinham o cenário propício ao contrabando. A regular afluência de embarcações e marinheiros de diversas nacionalidades, o volume de negócios praticado em alguns portos e ilhas, contribuíam ainda para o incremento dos negócios ilícitos, por vezes sob o beneplácito das autoridades regionais. Por fim, considerando o elevado déficit da balança comercial, os descaminhos seriam também frequentes entre os comerciantes açorianos, impossibilitados de uma acumulação de capitais que sustentasse um consistente volume de negócios, ademais afectado por pesadas restrições aduaneiras.

Nas ilhas atlânticas, o comércio ilegal remonta aos séculos XV e XVI, uma vez que desde os primórdios do povoamento, os arquipélagos dos Açores e da Madeira foram tidos como bases de contrabando. Nos séculos XV e XVI, as rotas transatlânticas de retorno, que escalavam as ilhas açorianas, incentivavam o mercado negro e as reacções da Coroa iam-se diversificando, consoante considerava esta prática perniciosa aos interesses do estado ou, pelo contrário, pudesse retirar benefícios da mesma. Ao longo de Quinhentos sucederam-se medidas restritivas e punitivas que procuravam inviabilizar o contrabando e que, em simultâneo, demonstravam o quanto o tráfico ilegal, a partir das naus da Índia, se incrementara nos Açores, em especial nas ilhas Terceira e S. Miguel. Entre os produtos contrabandeados contavam-se as especiarias, as drogas e os panos. As ordenações eram apregoadas em público com o intuito de uma divulgação mais eficaz e o seu traslado era registado nos livros das câmaras. Desconhecem-se, porém, salvo raros casos em que há registo, até que ponto as punições previstas eram aplicadas no caso dos autores do crime serem descobertos (Santos, 1989: 407-408).

Embora a fiscalização da Coroa procurasse actuar nas ilhas mais pequenas ou periféricas, a dispersão arquipelágica e a falta de meios impedia a sua execução, pelo que as operações ilegais eram mais fáceis de concretizar em ilhas como as Flores e o Corvo, onde as naus também aportavam e, por vezes, com esse intento. Nos portos de segunda categoria, o contrabando também era facilitado e nos principais, os contrabandistas tinham de agir com mais prudência ou então beneficiavam da conivência de autóctones, incluindo autoridades locais. Já no século XVI o holandês Linschoten, que permaneceu na ilha Terceira durante 30 meses, escreveu sobre os feitores e almoxarifes do rei: «Para conseguir despacho pronto destas harpias, é preciso dar-lhes grandes presentes. De outro modo, tereis de esperar três ou quatro meses, antes de regularem contas convosco. E se há qualquer coisa de estimação nas naus é para eles. É verdade que prometem pagar. Mas fazem o que querem e não haveis de alcançar justiça contra eles».

Quanto ao contrabando e aos desvios praticados na rota metalista das Índias de Castela, é óbvio que a reacção da Coroa era muito diferente até porque «tais práticas acabavam por favorecer o governo português, já que muito desse metal afluía à Casa da Moeda em Lisboa para ser cunhado» (Santos,1989: 409). O ouro, a prata e as pérolas, nem sempre devidamente registados, eram transferidos para as naus da rota do Cabo, após se encontrarem nos mares dos Açores. Por vezes, devido às condições climatéricas ou às ameaças de corsários, permaneciam por longas estadias, sendo parte da mercadoria contrabandeada nas ilhas, em especial na cidade de Angra. Por tudo isso e, com alguma frequência, as autoridades castelhanas pressionavam as congéneres portuguesas a fim de efectuarem o arresto de algum navio ou a captura de contrabandistas. Além das mercadorias ligadas ao comércio de longo curso, os produtos locais também eram alvo do comércio ilegal, sobretudo quando envolviam pesados direitos reais. Em relação ao trigo e ao pastel efectuavam-se descaminhos, pois muitas das exportações eram feitas à revelia das licenças ou destinavam-se a outros destinos que não os declarados no momento do embarque.

No século XVII, continuavam a afluir aos territórios insulares, por via da competição nórdica no monopólio ultramarino, grande número de embarcações inglesas, francesas, holandesas e flamengas, que relegavam para último lugar as de nacionalidade espanhola e portuguesa, cujas potências haviam perdido a hegemonia nos mares. A todo este movimento portuário e mercantil, nem sempre devidamente registado nas alfândegas, corresponderia um elevado índice de contrabando (Gil, 1983:142). Não obstante o declínio dos impérios ibéricos, a localização geoestratégica dos Açores posicionava-os, com relevância, no seio das relações intercontinentais, ressalvando as práticas de redistribuição e contrabando de produtos exóticos (Meneses, 1997: 251). Os maus anos agrícolas e de déficit frumentário de finais da centúria, que obrigaram a Coroa a tomar severas medidas de impedimento e controlo da exportação de cereais, além de conduzirem a grande especulação por parte dos mercadores, terão impulsionado inúmeros descaminhos como fuga às pesadas sanções e taxas régias. Apesar das proibições régias e dos prejuízos que advinham às populações, os particulares continuavam a exportar mantimentos por portos e lugares escusos, a fim de alcançarem os seus intentos (Gil, 1983: 158). Ainda no século XVIII, a exportação clandestina de cereais fazia-se em portos secundários como os de Ponta Garça e Água d'Alto, em S. Miguel, ou o da Urzelina, em S. Jorge e, com a cumplicidade de autoridades locais (Meneses, 1995: 174).

Por outro lado, os monopólios inerentes às políticas mercantilistas impeliam também o comércio clandestino atingindo, por exemplo, o tabaco. Na segunda metade de Seiscentos este produto, proveniente do Brasil, chegava em grande quantidade aos portos de S. Miguel, da Terceira e sobretudo do Faial e os desvios e irregularidades podem-se depreender das diversas medidas de fiscalização emitidas pelo governo e que visavam sobretudo os faialenses, denunciando a deficiente actuação dos funcionários portuários e alfandegários. As preocupações com o fabrico e venda de tabaco ilegalmente produzido nas ilhas, à revelia do estanco, configuradas em cartas régias proibitivas, também denunciam outras formas de contrabando deste produto. A hostilidade dos insulares em relação às instituições, leis ou estruturas que pusessem em perigo a ligação e articulação das ilhas com o comércio atlântico é bem visível face à criação da Companhia de Comércio do Brasil, na segunda metade do século XVII. Não obstante os privilégios da mesma, avolumavam-se as queixas e os pedidos de permissão de envio de navios insulares até aquele território, fora do comboio da Companhia. Mas, sem a sanção real, só os desvios e as fraudes possibilitavam a manutenção do precário tráfego entre as ilhas e o continente americano, obrigando o rei a insistir no necessário cumprimento da lei e na rigorosa fiscalização de todas as embarcações que saíssem do arquipélago, bem como na dura penalização dos prevaricadores, sempre difícil de concretizar (Gil, 1983: 172).

No século XVIII, o alvará de 20 de Março de 1736 viria cercear, uma vez mais, a liberdade de comércio entre os Açores e o Brasil, quer por conveniência face aos ditames mercantilistas e às oscilações económicas luso-brasileiras, quer pelos persistentes indícios de comércio ilegal, alegando a Coroa que a ordinária prática de contrabando nas ilhas era responsável pelo «indevido trespasse de muitos metais-preciosos para os principais centros comerciais europeus» (Meneses, 1997: 258), ao contrário dos pressupostos do colbertismo a que convinham as directrizes metropolitanas. A paragem das frotas comerciais nos Açores, antes de rumarem aos portos bem fiscalizados de Lisboa ou do Porto, possibilitava aos insulares o ilícito usufruto das riquezas do Brasil, quer com a redistribuição ilegal do açúcar para mercados da Europa setentrional, quer com os descaminhos de tabaco, do ouro e diamantes.

Ao longo de Setecentos a nação portuguesa continuava a ter de enfrentar o contrabando perpetrado pelos negociantes nacionais, como tinha de reprimir os abusos estrangeiros nesta matéria. Assim sucedia nos Açores, onde negociantes e homens de mar de diferentes nacionalidades, mas em especial, ingleses e franceses, davam livre curso ao comércio ilícito, beneficiados pelos contactos mais estreitos e directos que mantinham com os países de origem. A política monopolista pombalina viria suscitar ainda maior contestação por parte dos insulanos, constituindo ensejo para o mercado negro e a evasão fiscal face também às muitas frotas que ainda escalavam as ilhas, embora já sem paralelo à antecedente carreira da Índia. Ademais, alguns comerciantes locais iludiam a vigilância régia navegando para terras brasileiras «fora do corpo das frotas e desprovidos de licença, escalando normalmente os arquipélagos de Madeira, Canárias e Cabo Verde» (Meneses, 1997: 260).

No início do século XIX, em conformidade com o corregedor de Angra, José Acúrcio das Neves, a despeito de todas as ordens régias expedidas para estas ilhas sobre a prevenção e repressão do contrabando, era impossível evitá-lo dada a negligência e tolerância de algumas autoridades. Os contrabandistas continuavam a recorrer a todo o tipo de expedientes, incluindo o suborno e a corrupção. Além de muitos funcionários alfandegários serem coniventes com o mercado negro, a prolixa e obsoleta legislação e as numerosas restrições suscitavam irregularidades e fraudes diversas. Uma boa parte da opinião pública, beneficiada com a possibilidade de adquirir os produtos a preços potencialmente mais suaves, também não repudiaria este comércio ilegal, sendo, de facto, a Fazenda Pública, as indústrias nacionais e alguns comerciantes legalistas, os mais directamente afectados pelo contrabando, quer pela fuga fiscal, quer pela ilícita concorrência.

Um dos meios utilizados para fazer entrar o contrabando em S. Miguel, era o de fazer passar os produtos por outras alfândegas, em especial as da Madeira e do Faial. Depois destes serem selados e despachados, faziam-nos de novo passar na alfândega de Ponta Delgada, onde as autoridades já nada podiam obstar, mesmo tratando-se de produtos interditos. Outras vezes, os navios aportavam no cais da cidade, depois de já terem descarregado as mercadorias ao longo das costas da ilha, mesmo sendo proibidos quaisquer contactos com terra antes da visita das autoridades. Os calhaus de Água Retorta, Faial da Terra, Povoação, Mosteiros, Capelas e as cercanias de Vila Franca (por causa do ilhéu) eram tidos como pontos nevrálgicos para o desembarque de contrabandos. Mas, se o empenho das autoridades era imprescindível ao combate e repressão do contrabando, as características geográficas das ilhas continuavam a facilitar a traficância do mercado negro, como sucedia com a ilha de S. Jorge, quer pela localização que oferecia, quer pelos baixios da costa e portos secundários despojados de fiscalização. Sedas, pianos, vidros, relógios e outros objectos decorativos eram escondidos em casas particulares e até em ermidas jorgenses, perante o desleixo das autoridades. Outras ilhas, como Santa Maria ou a Graciosa serviam também de receptáculos de contrabando o qual, posteriormente, era canalizado para as ilhas vizinhas mais populosas. As transferências eram feitas pela calada da noite, em pequenas embarcações à vela ou de boca-aberta que, diariamente, faziam as ligações de cabotagem ou inter-ilhas (Silva, 2001: 564-568).

É óbvio que a natureza subreptícia deste crime impede o conhecimento do volume do mercado negro nas ilhas, embora através de algumas denúncias, apreensões ou castigos aplicados, possamos descortinar algumas características deste tráfico e do subjacente consumo. Como referira Acúrcio das Neves, em 1800, a maioria dos produtos contrabandeados no arquipélago provinha do estrangeiro, e ao longo da centúria foi sendo apreendida grande diversidade de géneros alimentícios (bebidas, condimentos), tecidos e peças de vestuário (sedas, chapéus, luvas, coletes, xailes), produtos manufacturados ou de luxo (charutos, rapé, loiças finas, vidros, pentes, sabonetes) e com maior destaque, o tabaco. Sobressaíam os têxteis ingleses, dado o desenvolvimento da indústria britânica, bem como as relações comerciais que existiam com aquele reino devido, em especial, à exportação da laranja. Dos produtos exportados das ilhas fazia-se o contrabando de cereais, vinhos, aguardentes e urzela (Silva, 2001: 568). Este último, cujo comércio há muito se achava reservado ao proveito exclusivo da Coroa, era alvo de redes de contrabandistas madeirenses e ingleses, com ligações na ilha do Faial e outras do grupo central, acobertados pelas autoridades consulares, uma vez que era mercadoria procurada e cobiçada pelos países do norte da Europa.

Mas, nos meandros do mercado negro açoriano, os produtos que despertavam maior fiscalização eram o tabaco, a pólvora e o sabão, cujo contrabando se vulgarizou desde o século XVIII, por força da atrocidade legislativa, sobretudo após as arrematações dos respectivos contratos. A rigorosa fiscalização das embarcações, efectuada pelos Contratadores Gerais do Tabaco, passou a estar devidamente regulamentada a partir de 1840 e na mesma proporção em que se elevavam os privilégios dos contratadores crescia o contrabando deste produto e também da pólvora, prolongando-se ao longo de Oitocentos.

Apesar das limitações do mercado açoriano, os produtos de contrabando eram escoados, caracterizando um tipo de consumo e de poder de compra de uma vasta clientela, entre a qual se destacaria alguma elite social. Ademais, face aos riscos e perigos do negócio, só a sua rendibilidade justificava o empenhamento dos contrabandistas que investiam somas consideráveis e recorriam a astuciosas estratégias, sem descurar o recurso à força e à ameaça sempre que necessário (Silva, 2001: 571-573).

O combate ao contrabando continuava a ser muito difícil, embora o governo central exigisse providências. Os meios eram escassos e muitas das medidas promulgadas eram desadequadas às especificidades da realidade insular. Situações conjunturais, como a guerra peninsular ou as lutas liberais, também se tornaram perniciosas devido à desorganização da política aduaneira e à falta de eficácia dos serviços que só viriam a conhecer a devida regulamentação com a publicação da nova Pauta Geral das Alfândegas, em 1837, reformada em 1841. Mas, durante a centúria, as alfândegas insulares continuaram a debater-se com problemas financeiros e com carências de recursos humanos e materiais. A disponibilidade de uma embarcação armada que fiscalizasse as águas territoriais era uma das reivindicações das autoridades locais que, dada a inviabilidade de muitas das medidas solicitadas, recorriam amiúde aos aliados civis. Tal como sucedera no século XVI, também durante Oitocentos se incentivaram as denúncias de contrabandos, ora recompensadas com a atribuição de uma parte das mercadorias apreendidas, ora com pagamentos generosos e sigilosos. De entre as propostas das autoridades, uma das medidas mais eficazes atinentes à redução do contrabando, passava pela redução dos direitos aduaneiros, pela restrição das proibições e pela diminuição da burocracia alfandegária que em nada facilitava a actividade comercial, colocando inúmeros obstáculos, incentivando a corrupção e o hábito das gratificações. Porém, o excessivo proteccionismo e a proeminência das alfândegas como principal fonte de renda pública, levavam os governos constitucionais a regular os direitos de entrada e saída, controlando todas as estações fiscais, de modo a responder aos interesses da Fazenda Pública. Portanto, do desencontro entre os interesses dos particulares e os do Estado e, em especial, da falta de adequação de algumas medidas aduaneiras à realidade insular e aos interesses do seu comércio import/export, resultava o considerável contrabando que, desde sempre, envolveria largas camadas da população (Silva, 2001: 575-583). Susana Serpa Silva (Fev.2002)

Bibl. Gil, M. O. R. (1983), Os Açores e o comércio Atlântico nos finais do século XVII (1680-1700). Arquipélago-In Memoriam de João Teixeira Soares de Sousa, (Ciências Humanas), Nº Especial: 137-204. Meneses, A. F. (1995), Estudos de História dos Açores. Ponta Delgada, Jornal de Cultura. 11. Id. (1997), O comércio dos Açores no século XVIII: rotas e transacções In História das Ilhas Atlânticas (Actas do IV Colóquio Internacional de História das Ilhas Atlânticas). Funchal, Centro de Estudos de História do Atlântico, I: 249-270. Santos, J. M. (1989), Os Açores nos sécs. XV e XVI. S.l., Direcção Regional de Cultura, II. Silva, S. S. (1997), Criminalidade e Justiça na Comarca de Ponta Delgada. Uma abordagem com base nos processos penais (1830-1841). Ponta Delgada, Universidade dos Açores. Id. (2001), O contrabando nos mares e ilhas dos Açores no segundo quartel do século XIX In Portos, Escalas e Ilhéus no relacionamento entre o Ocidente e o Oriente. Actas do Congresso Internacional Comemorativo do Regresso de Vasco da Gama a Portugal. Universidade dos Açores / Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, I: 557-584.