Um Folclore Imaginário

Rui Vieira Nery
In A República das Artes, Vol. IV, Lisboa: Tugaland/Diário de Notícias,
2010.

No período do seu regresso aos Açores, entre 1913 e 1921, Lacerda dedica-se especialmente à recolha e ao estudo da Música Tradicional portuguesa, ao que regressará quando regressar de vez ao País, nos seus anos finais de residência em Lisboa. Deste trabalho resultará um Cancioneiro Musical Português, com melodias tradicionais harmonizadas para Canto e Piano pelo compositor, de que chegarão a sair postumamente, em 1935, cinco fascículos patrocinados pelo Instituto de Alta Cultura.

Mas o seu interesse pelas tradições musicais populares vai menos no sentido da pesquisa etnomusicológica, propriamente dita, do que do estudo do património musical tradicional como base para uma tentativa de definição de um idioma musical identitário, inspirado pelos cantos e danças rurais mas aberto ao mesmo tempo a uma linguagem harmónica e instrumental contemporânea. É desta atitude − e igualmente da colaboração como pianista com as cantoras Marina Dewander Gabriel e Arminda Correia, que o estimula a interessar-se redobradamente pela escrita da Canção de Câmara − que surgem as Trovas para Canto e Piano, uma série de trinta e seis pequenas peças sobre quadras do cancioneiro popular (ou, em alguns casos, da autoria do próprio compositor, num estilo que procura aproximar-se do sabor rústico daquelas).

Estamos aqui, de facto, longe de qualquer recolha etnomusicológica. Trata-se de exemplos daquilo a que poderíamos chamar um "folclore imaginário", ou seja, de uma criação original do autor mas procurando refletir o seu conhecimento profundo da linguagem musical da tradição popular − de resto não apenas de exclusiva filiação açoriana − abordada segundo processos e modelos assumidamente eruditos. Mais uma vez Lacerda evidencia aqui uma mestria segura e requintada do discurso harmónico, combinada com um desenho rítmico-melódico de impressionante fluência e maleabilidade e com um conhecimento experiente da técnica vocal e do equilíbrio entre a voz e o piano, produzindo neste conjunto de miniaturas deslumbrantes aquele que é por certo um dos mais importantes contributos portugueses para a Canção de Câmara europeia do século XX.

Uma série de onze Trovas estava já pronta para publicação em 1926, ano em que o compositor chega a contatar, através dos seus amigos Joaquín Nín e Alfred Cortot, o editor parisiense Max Eschig, com vista a uma possível publicação, que não chegaria a realizar-se. Cortot e a cantora Madeleine Grey viriam, contudo, a interpretá-las em Paris em 1933, num dos concertos Pasdeloup, utilizando para o efeito uma tradução francesa dos textos portugueses da responsabilidade do estudioso iberista Henri Collet. Em 1929, entretanto, a Soprano Marina Dewander Gabriel e o Maestro Pedro de Freitas Branco dariam em Lisboa a primeira audição da versão orquestral de uma primeira série de oito das Trovas. Os mesmos intérpretes repetiram em Nantes (1934) e Marselha (1935) esta execução, em concertos de homenagem póstuma ao compositor realizados nestas duas cidades que tinham ficado especialmente associadas à sua carreira internacional de maestro. A orquestração era do próprio Lacerda, que chegara a iniciar uma tarefa idêntica para uma segunda série de peças da mesma colecção, terminando, no entanto, apenas seis novas orquestrações.