Uma Nova Linguagem Orquestral

Rui Vieira Nery
In A República das Artes, Vol. IV, Lisboa: Tugaland/Diário de Notícias,
2010.

A formação de Francisco de Lacerda junto de Vincent d'Indy transmitiu-lhe desde muito cedo um conhecimento aprofundado da escrita orquestral, que a sua experiência posterior de maestro especializado na interpretação do melhor repertório sinfónico do passado e do seu próprio tempo veio ainda mais solidificar, dando-lhe a esse nível uma segurança que talvez nenhum outro compositor português do século XX tenha conseguido verdadeiramente adquirir. Não admira, pois, que a sua atenção de compositor, mesmo no contexto de uma produção artística total de reduzida dimensão, se tenha voltado com especial relevância para a Música sinfónica, embora o tenha começado a fazer já depois de concluído o frenesim profissional da primeira fase da sua carreira de maestro, regressado ao refúgio de São Jorge.

Neste campo, como de resto nos demais, preferiu as formas curtas, evitando a grande sinfonia clássico-romântica que tanto atraíra Viana da Mota. A sua primeira peça orquestral, composta em 1915 nos Açores, é um breve Épitaphe − sur la tombe d'un héros, e a sua obra-prima absoluta, Almourol, data de 1926, sobrevivendo ainda duas partituras não datadas − Dans le clair de lune e Pantomina − e alguma música de cena para a peça L'Intruse, de Maeterlinck. Trata-se, em todos os casos, de pequenos poemas sinfónicos de sugestão impressionista, evocando no primeiro caso o espectro místico de um herói já morto, em Almourol o castelo templário envolto na neblina que paira sobre o Tejo, em Dans le clair de lune a luminosidade coada de uma noite de luar e na Pantomina um quadro clássico próximo da tradição da Commedia dell'Arte, em ritmo de sarabanda.

São evocações temáticas simultaneamente históricas e paisagísticas, como que numa procura de uma identidade telúrica que combina a descrição quase pictórica do espaço com uma sugestão de uma perenidade histórica em que a passagem do tempo parece suspender-se. E tudo isto assenta num jogo harmónico difuso, em que as relações de atracção tonal tradicionais se desfazem para darem lugar a manchas de colorido sonoro que valem por si como veículos de uma atmosfera expressiva envolvente, que não necessita de um suporte formal clássico.