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Quental, Antero Tarquínio de

[N. em Ponta Delgada, 18.4.1842 ? m. em Ponta Delgada, 11.9.1891] Procede de uma família ilustre ligada, desde longa data, à colonização de S. Miguel, Açores. Entre os seus antepassados contam-se o padre Bartolomeu de Quental (1626-1698), introdutor em Portugal da Congregação do Oratório. Tanto o avô como o pai militaram com bravura a favor da causa liberal. Aprendeu as primeiras letras em Ponta Delgada onde teve A. F. de Castilho como mestre. Em 1858, com dezasseis anos, matriculou-se em Direito na Universidade de Coimbra e aí obteve, em 1864, o diploma de bacharel, após frequência com aproveitamento bastante modesto. Depressa se notabilizou entre a juventude estudantil pela irreverência e espírito generoso, pelo fôlego poético e talento literário, pelas causas cívicas e políticas em que participava. De espírito inconformista, avesso à estagnação e ao conservadorismo, moviam-no convicções firmes quanto ao advento de um mundo novo governado por ideais de Justiça, Liberdade e Amor que era urgente preparar.

Se foi em Coimbra, no convívio com amigos, que se revelou a enorme riqueza e complexidade do coração e inteligência do jovem Antero, foi aí igualmente que se evidenciaram sinais de indecisão quanto ao projecto de vida. Começava assim uma via-sacra de propósitos generosos mas pouco consequentes: projecta combater em Itália integrado nas fileiras do exército de Garibaldi; aprende na Imprensa Nacional o ofício de tipógrafo e vai exercê-lo em Paris; frequenta o Colégio de França e visita Michelet, a quem oferece as Odes Modernas; pondera inscrever-se como voluntário no exército papal; viaja depois pelos Estados Unidos da América; fixa-se em Lisboa e passa a viver em casa de Jaime Batalha Reis, o local onde se reúne o grupo do Cenáculo. Para trás ficavam as pugnas da Questão Coimbrã (1865), os assomos iberistas proclamados no opúsculo Portugal perante a Revolução de Espanha (1868), e a criação em parceria com Eça de Queirós do «satânico» Carlos Fradique Mendes, o poeta da escola de Baudelaire, autor dos «Poemas de Macadam».

O apelo da intervenção social mobiliza-lhe as energias para se envolver, a partir de 1870, em iniciativas como a fundação de associações operárias, a organização dos trabalhadores portugueses e a sua filiação na Associação Internacional dos Trabalhadores, a direcção e colaboração em jornais, como sucede com a República ? Jornal da Democracia Portuguesa e O Pensamento Social. É ainda no decurso destes anos frenéticos que se ocupa do Programa para os Trabalhos da Geração Nova, chamando a si o estatuto de guia espiritual da geração a que pertence. Participa também nos trabalhos que levaram à fundação do Partido Socialista. Pertence a este bem preenchido ciclo de intervenções públicas a dinamização das Conferências Democráticas inauguradas no dia 22 de Maio de 1871, no Casino Lisbonense, e compulsivamente encerradas por uma portaria do Ministério do Reino, no mês seguinte, quando Salomão Sáragga ia pronunciar a sexta conferência subordinada ao tema «Os Historiadores Críticos de Jesus». As conferências tinham um programa ambicioso cujos objectivos eram «ligar Portugal com o movimento moderno», «agitar na opinião pública as grandes questões da filosofia e da ciência moderna», «estudar as condições da transformação política, económica e religiosa da sociedade portuguesa». Mesmo que no imediato este programa tenha ficado por cumprir, continua a ecoar até hoje como toque de alvorada de um Portugal novo. O mesmo se pode afirmar da segunda conferência intitulada «Causas da decadência dos povos peninsulares», um dos textos anterianos mais lidos e discutidos. Aí se escalpeliza, em âmbito peninsular, o trabalho inexorável da decadência, efeito de vícios históricos que urge corrigir. Propõe, por isso, que à rigidez monolítica do catolicismo inquisitorial e tridentino se contraponha a consciência livre esclarecida pela ciência e pela filosofia, à monarquia centralizada a federação republicana, à inércia industrial o trabalho e a livre iniciativa solidária e em prol da colectividade. Apesar de leitura esquemática e ideológica da história peninsular, são páginas que dão que pensar.

Com o ano de 1874 chegava a gravíssima doença nervosa para a qual procurou assistência nos cuidados médicos de Sousa Martins, Curry Cabral e Charcot. Por causa dela, foram abandonados vários projectos, ao mesmo tempo que se intensificavam as interrogações filosóficas sobre a existência, adensadas pelas sombras do pessimismo. Intermitentemente, o poeta, o prosador e o cidadão continuam activos. A residir em Vila do Conde desde 1881, aí encontrou a calma propícia à meditação filosófica sobre questões morais e intelectuais que o ocupam insistentemente. O seu derradeiro acto de intervenção cívica foi aceitar a presidência da Liga Patriótica do Norte, função para a qual o propusera o amigo Luís de Magalhães. Participava assim na comoção patriótica que abalou o país após o Ultimatum inglês de 11 de Janeiro de 1890. E, igual a si mesmo, manifesta de modo lapidar a sua posição: «o nosso maior inimigo não é o inglês, somos nós mesmos».

Pensava, havia muito, regressar aos Açores e aí fixar residência. Embarca, efectivamente, em 5 de Junho de 1891, com destino a Ponta Delgada. Nesta cidade, junto ao muro do Convento da Esperança, suicidou-se com dois tiros, no dia 11 de Setembro. O suicídio de Antero coroa uma existência densa onde a luz e a sombra, a razão e o sentimento esculpiram uma esfinge de muitos e perturbadores enigmas. O suicídio tem o valor de resposta exorbitante a dois excessos mortais do seu intenso viver: a cândida entrega à vitória final do Bem e a radical angústia quanto ao seu ansiado advento. Sagrou-se assim como o menos retórico de quantos poetas e prosadores povoam a literatura portuguesa.

A consagração de Antero como poeta passa pela publicação de duas obras desiguais e únicas quanto à forma e quanto à temática. As Odes Modernas (1865) introduziram no panorama da poética nacional uma voz de inconformismo e revolta que encontra inspiração nos acontecimentos dramáticos da cena social e política. Ao desligar-se de tópicos rotineiramente glosados pelos versejadores dos salões literários, o livro não podia passar despercebido e acabou por se transformar num dos rastilhos da polémica Bom Senso e Bom Gosto. Não obstante a reposição da obra em segunda edição, em 1875, o autor assume em relação às Odes Modernas distanciamento crítico e reconhece que «além de declamatória e abstracta, por vezes aquela poesia é indistinta e não define bem e tipicamente o espírito que a produziu». Sem nunca enjeitar o vigor revolucionário da juventude, Antero tinha entretanto crescido em ponderação filosófica e agitação interior. Data de 1886 o volume de Sonetos Completos, com prefácio de Oliveira Martins. A organização estrófica de catorze versos oferecia o molde perfeito onde podia condensar os ímpetos metafísicos e místicos de uma sensibilidade dilacerada por tensões jamais resolvidas. A consciência inquieta e sofrida que se confessa nesses versos não cabe na experiência lírica do eu individual, porque nela pulsa a universalidade transcendente da própria condição humana. Se, nos Sonetos, Antero sente o que pensa, nos ensaios filosóficos em que trabalhou durante os últimos anos, ele pensa o que sente. Homem de debate interior, peregrino do Absoluto, pensador do social e do histórico, militante do Portugal moderno, a aventura pessoal de Antero, prisioneira de insuperadas contradições existenciais, perfila-se, pelos tempos fora, como um dos mais inquietantes desafios da consciência humana. Luís Machado de Abreu

Obras Principais: (1865), Odes Modernas. Coimbra, Imprensa da Universidade. (1871), Causas da Decadencia dos Povos Peninsulares nos Ultimos Tres Seculos: discurso pronunciado na noite de 27 de Maio, na sala do Casino Lisbonense. Porto, na Typ. Commercial. [(2001), Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos Últimos Três Séculos: discurso pronunciado na noite de 27 de Maio, na sala do Casino Lisbonense. 8.ª ed.. Lisboa, Ulmeiro]. (1872), Primaveras Romanticas: Versos dos Vinte Anos (1861-1864). Porto, Imp. Portugueza. (1875), Odes Modernas. 2.ª ed. contendo várias composições inéditas. Porto, Livraria Internacional de Ernesto Chardron. [(1996), Odes Modernas. 4.ª ed., Lisboa, Ulmeiro]. (1886), Os Sonetos Completos publicados por J. P. Oliveira Martins. Porto, Liv. Portuense. [(1984), Sonetos. Ed. organizada, prefaciada e anotada por A. Sérgio. 7.ª ed.. Lisboa, Livraria Sá da Costa Ed.]. (1892), Raios de Extincta Luz ? Poesias Inéditas (1859-1863). Coligidos e com escorço biográfico de Teófilo Braga. Lisboa, M. Gomes. (1894), A Philosophia da Natureza dos Naturalistas. Ponta Delgada, Typ. Ed. do Campeão Popular. (1923, 1926, 1931), Prosas. Coimbra, Imp. da Universidade, 3 vols.. (1989), Cartas. Organização, introdução e notas de Ana Maria Almeida Martins. Lisboa, Universidade dos Açores / Ed. Comunicação, 2 vols.. (1991), Filosofia. Organização, introdução e notas de Joel Serrão. Lisboa, Univerisdade dos Açores / Ed. Comunicação. (1991), Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX. Estudo de Joel Serrão; leitura de A. M. Almeida Martins. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian. (1994) Política. Organização, introdução e notas de Joel Serrão. Lisboa, Universidade dos Açores / Ed. Comunicação. (1996), Novas Cartas Inéditas de Antero de Quental. Introdução, organização e notas de L. Craveiro da Silva. Braga, Faculdade de Filosofia.

 

Bibl. Abreu, L. M.; Franco, J. E. (2005), Dois Exercícios de Ironia. Defesa da Carta Encíclica de Pio IX de Antero de Quental e Contra os Jesuítas de Sena Freitas. Lisboa, Prefácio Editora. Antero de Quental et l?Europe ? Actes (1993). Paris, Fundação Calouste Gulbenkian / Centre Culturel Portugais. Antero de Quental e o Destino de um Geração ? Actas (1994). Organização e coordenação de I. Pires de Lima. Porto, Asa. Anthero de Quental ? In Memoriam (1993). 2.ª ed.. Prefácio de A. M. Almeida Martins. Lisboa, Presença / Casa dos Açores. Cabrita, M. J., (2002), A Ideia de Justiça em Antero de Quental. Almada, Ímanedições. Carreiro, J. B. (1991), Antero de Quental: Subsídios para a sua Biografia. 2.ª ed., Ponta Delgada, Instituto Cultural. Cento e Cinquenta Anos com Antero, Colóquio / Letras (1992), Lisboa, n.º 123/124. Congresso Anteriano Internacional ? Actas (1993). Ponta Delgada, Universidade dos Açores. Carvalho, J. (1955), Estudos sobre a Cultura Portuguesa do Século XIX ? Antheriana. Coimbra, Por Ordem da Universidade. Carvalho, M. C. (2006), A Natureza em Antero de Quental ? O Projecto de uma Metafísica Positiva. Lisboa, Imprensa Nacional / Casa da Moeda. Catroga, F. (2001), Antero de Quental, História, Socialismo, Política. Lisboa, Notícias Ed.. Coimbra, L. (1991), O Pensamento Filosófico de Antero de Quental. Apresentação e notas de P. Samuel. 2.ª ed.. Lisboa, Guimarães Ed.. Lourenço, E. (2000), a Noite Intacta (I)recuperável Antero. Vila do Conde, Centro de Estudos Anterianos. Martins, A. M. A. (1986), Antero de Quental ? Fotobiografia. Lisboa, Ponta Delgada, Imprensa Nacional / Casa da Moeda, Direcção Regional dos Assuntos Culturais. Santos, L. R. (2002), Antero de Quental ? Uma Visão Moral do Mundo. Lisboa, Imprensa Nacional / Casa da Moeda. Saraiva, A. J. (1995), A Tertúlia Ocidental Estudos sobre Antero de Quental, Oliveira Martins, Eça de Queiroz e outros. 2.ª ed.. Lisboa, Gradiva. Serrão, J. (1988), Antero e a Ruína do seu Programa (1871-1875). Lisboa, Livros Horizonte.