[N. Rabo de Peixe, ilha de S. Miguel, 3.11.1903 ? m. Ponta Delgada, 29.4.1991] Professor, poeta e ensaísta. Licenciado em Ciências Filosóficas pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, em 1929, declinou o convite para seguir a carreira universitária, tendo exercido a docência, nos liceus de Coimbra, Lisboa e Ponta Delgada, onde, de modo especial, nesta última cidade, foi, no dizer de Fernando Aires, «fonte e húmus de iniciativas criadoras» que marcaram várias gerações. Em Coimbra, para onde se havia transferido, em 1922, quando frequentava o 3.º ano do curso de Direito, na Universidade de Lisboa, foi aluno do ilustre professor e anterianista Doutor Joaquim de Carvalho, com quem manteve, mesmo após ter saído da Universidade, um estreito relacionamento.
A par duma inseparável ligação ao estudo da filosofia e da poesia de Antero, a sua orientação filosófica reflecte ainda a forte influência da filosofia neo-escolástica, através de Jacques Maritain e Régis Jolivet, assim como do estimulante pensamento de Henri Bergson. Também as concepções e os ideais do Integralismo Lusitano se mostraram de primordial importância na sua formação intelectual e moral, tendo sido eles que, no dizer de Gustavo de Fraga, «lhe educaram a inteligência e a sensibilidade», tornando-se mesmo «indispensáveis para compreender a personalidade do pedagogo, do poeta, do anterianista, do açorianista» que ele foi. De António Sardinha recebeu o culto pela identidade e independência de Portugal, contra as concepções iberistas propaladas por grupos pertencentes, quer às hostes monárquicas, quer aos federalistas republicanos. É ainda a António Sardinha que deve a descoberta da dimensão cristã do amor e a Bernardo de Vasconcelos, poeta da exaltação da vivência mística do amor de Deus e antigo condiscípulo de Coimbra que se tinha recolhido na casa do Marvão, como monge beneditino, uma profunda influência religiosa e moral. Em conferência que proferiu em Coimbra, no Centro Académico da Democracia Cristã, em 1927, com o título António Sardinha, Poeta do Amor Cristão, enaltece a força imortal do amor conjugal que tem o carácter da indissolubilidade que o sacramento lhe confere. Em Cinzas do Mar. Versos de Abd-el-Kader, propõe-se «cantar, em verso brando e amigo, / O amor ? culto da gente portuguesa!», como sendo a «Fusão de duas vidas numa só vida, / De dois seres num só ser, / De duas almas numa só alma». O amor pela mulher amada é cantado com grande elevação espiritual e o desejo de possuí-la reveste a forma duma vivência intemporal, que se traduz num convite a viver a vida, sem a estragar com «sonhos vãos» ou com «coisas tristes», na certeza de que ela se pode prolongar depois na Eternidade. Mas a poesia, que o poeta diz ser «Irmã gémea do Amor» é também a expressão duma inquietude irreprimível que se manifesta como desejo de Infinito e sede de Absoluto, ou seja, como expressão saudosa «de tão longa ausência» dum estado de plenitude, há muito tempo perdido nas «encruzilhadas da Vida». Numa formulação mais metafísica, Entre o Sonho e a Realidade, ela é «Ansia de ser o Não-Ser, / Angústia de estar ? ausente ?», que traduz o drama existencial do poeta de «ser o próprio Não-Ser!...» Nos sonetos de Abd-el-Kader, inseridos neste livro de poemas de 1957, anseia em vão, no meio do «Deserto faiscante» e «interminável», por matar a sede da sua alma, mas, subitamente, o optimismo e a esperança como que renascem, e a Beleza da Vida, os encantos da Natureza e os «ideais do Bem e da Pureza» parecem triunfar. A sua poesia é, também, a exaltação do sentimento e do amor, como formas de conhecimento superiores à razão e duma permanente inquietude que não cede ao pessimismo.
Na vertente açorianista, a obra de R. G. C. encontra-se dispersa por jornais, revistas literárias, palestras na rádio, conferências e alguns livros que reúnem parte desta sua intensa actividade. Mas muitos dos seus trabalhos encontram-se ainda inéditos, depositados na Biblioteca Pública e Arquivo de Ponta Delgada, por disposição testamentária, muitos deles prontos para serem publicados. Entre estes, merecem uma chamada de atenção os Subsídios para a História da Poesia Açoriana, organizados em 12 volumes, que resultam dum vasto e longo processo de recolha e estudo da produção poética de todas as ilhas dos Açores, um tarefa que empreendera desde jovem. Deste trabalho, ainda inédito, resultou a Antologia Poética dos Açores, em 2 volumes, tendo deixado preparado ainda um terceiro volume, por publicar, e manuscritas uma série de palestras que proferiu no Emissor Regional dos Açores, publicadas posteriormente no Diário dos Açores e parcialmente reunidas no livro Poetas dos Açores. A introdução deste último trabalho recupera um texto que já havia publicado no suplemento de O Comércio do Porto, «Letras e Artes», em que discute, com grande perspicácia, o tema da literatura açoriana e em que caracteriza os traços dominantes da personalidade base do açoriano, tal como ela se revela na literatura e na arte.
Para que haja uma literatura com significação açoriana será necessário que os nossos escritores e poetas tomem por tema «o viver das nossas gentes: seus usos e costumes, suas lendas, crendices e superstições, suas tradições e folguedos, suas danças e cantares, seu falar e seu drama quotidiano», e lhe confiram uma expressão humana universal que possa «interessar o homem de qualquer parte do mundo». Desta forma, R. G. C. conclui que, em rigor, se não poderá falar duma poesia de significação açoriana, muito embora descubra na obra literária de Vitorino Nemésio um contributo muito promissor para «imprimir um carácter islenho à nossa literatura, sobretudo na Poesia». Ainda nesta linha de valorização dos vultos e do carácter da cultura açoriana, há a salientar o estudo que assinala a sua participação no I Congresso Nacional de Filosofia «Contribuição dos Açores para a Filosofia», em que dá continuidade a um tralho já iniciado pelo P.e Ernesto Ferreira.
No campo dos estudos anterianos, a obra de R. G. C. começou a impor-se de forma mais marcante a partir da sua dissertação de licenciatura ? Antero de Quental e a Mulher. Ensaio Breve de Interpretação Psicológico-Literária ?, em que o autor tem a preocupação de mostrar, através da obra do poeta e da sua correspondência, que «Antero amou, conheceu os segredos do amor, e por causa dele muito sofreu».
Em Três Ensaios sobre Antero de Quental, começa por analisar «O génio poético de Antero», título do primeiro ensaio, para sublinhar o pendor filosófico da poesia de Antero, que alcança a expressão máxima nos Sonetos, principalmente nos da última fase. É uma poesia de «feição altamente filosófica e profundamente subjectiva» que não condescende com a plasticidade pitoresca da descrição panorâmica da realidade exterior, mas que se alimenta dos combates travados por um espírito dilacerado por uma invencível inquietude de teor religioso, tema do segundo ensaio.
O carácter existencial da inquietude confere à filosofia de Antero uma expressão essencialmente moral, em que a liberdade do homem está na renúncia ao egoísmo e à vaidade e na subordinação ao ideal do bem supremo. Uma etapa essencial de clarificação deste trajecto passa pela meditação sobre o sentido da morte, tema do último ensaio, que impõe o aniquilamento do eu individual, ao deixar-se possuir totalmente pela virtude e ao tornar-se assim num simples «instrumento do bem universal». Em «Linha geral do pensamento filosófico de Antero», título duma conferência inserida na colectânea de ensaios Antero Vivo, explica ainda o seu reconhecimento da insuficiência da filosofia naturalista, que tanto havia impregnado a sua visão do mundo como tinha também ateado o fogo da sua inquietude. Outros temas anterianos são ainda tratados nestes e noutros ensaios, como, por exemplo, as suas concepções sobre Deus e o cristianismo, a sua relação com o pessimismo e o budismo, a influência da filosofia alemã, principalmente o idealismo de Hegel e a metafísica do Inconsciente de Hartmann, as suas ligações com a música, nomeadamente, Beethoven e Chopin, o problema do seu suicídio, a determinação da cronologia dos Sonetos e o tema do seu açorianismo. Também no seu espólio, na Biblioteca Pública e Arquivo de Ponta Delgada, permanecem guardados vários trabalhos sobre Antero, prontos para serem publicados.
Em sessão solene realizada na Universidade dos Açores, a 26 de Julho de 1980, recebeu das mãos do Presidente da República, General Ramalho Eanes, as insígnias da Comenda da Ordem de Santiago da Espada, em reconhecimento do seu relevante contributo na investigação e no ensino, ao serviço da Região.
Em 1986, foi inaugurada, na Universidade dos Açores, a Sala Antero de Quental, um legado de R. G. C., que, conforme disse no discurso que então proferiu, se constituía por várias traduções dos poemas de Antero, ensaios críticos, correspondência literária diversa, obras de autores açorianos, revistas e jornais, para além dum busto de Antero da autoria de Canto da Maia, um retracto do poeta, a óleo, de J. Raposo Marques e um quadro a óleo de inspiração anteriana da autoria de D. Luísa Athayde. Todo este valioso recheio acabou destruído pelo enigmático incêndio que deflagrou no edifício da reitoria, restando-nos a biblioteca, adquirida pela Universidade após a sua morte, que constituía o ambiente de trabalho do escritório de sua casa. Nele também recebia os amigos e admiradores que o visitavam, no número dos quais se pôde contar a pessoa do Presidente da República, Dr. Mário Soares, durante a Presidência Aberta nos Açores, em 1989. José Luís Brandão da Luz (Out.2002)
Obras principais Poesia: (1934), Cântico dos Cânticos: Versos de Amor. Angra do Heroísmo, Liv. Ed. Andrade. (1935), Sol Posto. Angra do Heroísmo, Liv. Ed. Andrade. (1957), Entre o Sonho e a Realidade. Angra do Heroísmo, União Gráfica Angrense. (1990), Cinzas no Mar: Versos de Abd-el-Kader. Instituto Cultural de Ponta Delgada.
Açoriana: (1944), O Génio Poético de Teófilo Braga. Ponta Delgada, Tip. do Diário dos Açores. (1955), Contribuição dos Açores para a História da Filosofia Portuguesa. Sep. da Revista Portuguesa de Filosofia, Braga. (1979, 1984), Antologia Poética dos Açores. Angra do Heroísmo, Secretaria Regional da Educação e Cultura, 2 vols. (1985), Armando Côrtes-Rodrigues: O Homem e o Poeta. Vila Franca do Campo, Ed. Ilha Nova. (1989), Poetas dos Açores. Angra do Heroísmo, Secretaria Regional da Educação e Cultura. (1989), António Franco: Poeta do Sentimento. Ed. Câmara Municipal do Nordeste.
Anteriana: (1933), Três Ensaios sobre Antero de Quental. Coimbra, Imp. da Universidade. (1934), Meditação Sobre a Vida e a Morte de Antero. Sep. de O Distrito, Ponta Delgada. (1949), Antero de Quental e a Mulher. Ensaio Breve de Interpretação Psicológico-Literária. Lisboa, Ed. Álvaro Pinto (Ocidente). (1950), Antero Vivo. Ensaios. Lisboa, Ed. Álvaro Pinto (Ocidente). (1950), Primazia do Espírito e Agremiações Culturais. Ponta Delgada, Tip. do Correio dos Açores. (1957), A Mulher na Lírica de Antero. Sep. de Insulana. (1961), Cartas de Antero de Quental a Francisco Machado de Faria e Maia. Lisboa, Delfos. (1962), Ordenação Cronológica dos «Sonetos Completos» de Antero de Quental. Sep. de Atlântida. Órgão do Instituto Açoriano de Cultura, Angra do Heroísmo. (1980), Colectânea de Estudos Anterianos. Angra do Heroísmo, Secretaria Regional da Educação e Cultura. (1983), Antologia Poética de Antero de Quental. Angra do Heroísmo, Secretaria Regional de Educação e Cultura. (1984), O Açorianismo de Antero de Quental. Sep. da Biblos, Coimbra. (1985), Antero de Quental: Novos Ensaios. Vila Franca do Campo, Ed. Ilha Nova. (1989), Antero de Quental e a Música. Câmara Municipal da Horta.
Bibl. Fraga, G. (1980), Ruy Galvão de Carvalho: O homem e a obra. Arquipélago (Ciências Humanas), II.: 91-117. Id. (1981), Visita Presidencial à Universidade dos Açores. Ibid., III.: 542-544, 548-552. Barbosa, M. (1981), Memórias das Ilhas Desafortunadas. Coimbra, Ed. do autor: 83-91. Afonso, J. (1985), Bibliografia Geral dos Açores, II: 222-235. Aires, F. (1990), Em Homenagem a Ruy Galvão de Carvalho, Ponta Delgada, Escola Secundária de Antero de Quental. Diário dos Açores (1991), No 30.º dia da morte do Dr. Ruy Galvão de Carvalho. 33533, 29 de Maio: 6-9. Açoriano Oriental (1991), Pulsar ? Suplemento de Cultura, Arte e Letras. 10313, 30 de Maio: I-VI. Cordeiro, C. (1999), Nacionalismo, Regionalismo e Autoritarismo nos Açores Durante a I República. Lisboa, Ed. Salamandra:119-125.