HERÁLDICA A heráldica do concelho do Corvo remonta a 4 de Agosto de 1948, data da publicação no Diário do Governo, nº 180, II Série.
Armas: «De prata, com um corvo marinho de negro segurando um peixe de vermelho no bico, pousado sobre um monte verde, sainte de um ondado de prata e verde, de três peças; em chefe um açor de negro, realçado de ouro, segurando uma quina de Portugal nas garras».
Selo: «Redondo, com as peças do escudo soltas e sem indicação dos esmaltes, tendo à volta, entre círculos concêntricos, a legenda ?Câmara Municipal do Corvo».
Bandeira: «esquartelada de branco e negro, tendo no centro o escudo das armas encimado por coroa mural de prata de quatro torres e, por baixo, listel de prata com os dizeres ?Corvo? e letras de negro». Carlos Enes (2002)
GEOGRAFIA A ilha do Corvo passou a constituir um concelho logo a seguir ao fim do regime dos donatários, decretado por Mousinho da Silveira em Maio de 1832. No dia 20 do mês de Junho seguinte a única povoação da ilha ficou tendo a categoria de vila e foi então criado o seu concelho, que era antes apenas uma freguesia do de Santa Cruz das Flores. Não obstante a reduzida dimensão do novo concelho, quer em área, quer no número de habitantes, a sua individualização afigura-se lógica, em termos de eficácia administrativa e dos interesses da sua população; com efeito, evitava-se assim que o Corvo ficasse incluído num concelho com sede noutra ilha. A verdade é que, poucas décadas depois, numa altura em que, por todo o país, populações de diversas localidades reclamavam para estas a categoria de sedes de concelho, os corvinos se amotinaram, exigindo que o seu concelho fosse extinto. Foi esse o objectivo de uma manifestação que teve lugar a 28 de Agosto de 1867; e, segundo tudo leva a crer, com isto se relaciona também o assalto à casa onde estavam instalados os serviços da Câmara, ocorrido na madrugada do dia 30 do mesmo mês e seguido pelo incêndio do respectivo recheio. Segundo Cordeiro (1992), que se baseou na imprensa da época, «tal posição popular (?) teria sido motivada por afirmações do pároco, feitas após a missa dominical, de que a manutenção do concelho implicaria o pagamento dos vencimentos aos respectivos administradores (300$000 reis) e escrivão (250$000 reis)». Contudo, o concelho do Corvo manteve-se até aos nossos dias, excepto por breve período, no final do século XIX, entre Novembro de 1895 e Janeiro de 1898, em que foi suprimido e integrado de novo no de Santa Cruz das Flores. As peculiaridades do Corvo levaram, naturalmente, a uma simplificação dos serviços municipais e à aplicação de disposições específicas. O próprio Estatuto dos Distritos Autónomos das Ilhas Adjacentes, do tempo do «Estado Novo» (dec. n.º 30.124, de 22 de Dezembro de 1939), precisava algumas normas respeitantes não só ao concelho do Corvo como ao do Porto Santo, com condicionamentos geográficos comparáveis. Ficava determinado, por exemplo, que os dois concelhos não teriam juntas de freguesia, que não haveria órgãos consultivos da Câmara, que esta ficaria isenta do pagamento das prestações devidas, nos termos da lei, a instituições nacionais e internacionais, e que o escrivão da câmara desempenharia as funções de notário público. A evolução recente levou a que a simplificação do sistema administrativo fosse menos acentuada, pois a presença de determinados serviços tornou-se indispensável. Com a implantação do regime democrático, na sequência do 25 de Abril de 1974, os órgãos autárquicos passaram a ser eleitos. Os resultados eleitorais do Corvo têm sido muito influenciados por decisões individuais, no âmbito do universo muito restrito de votantes. Estes parecem mais sensíveis às personalidades que se apresentam ao sufrágio do que propriamente aos princípios ideológicos dos partidos. Ver Corvo, ilha do GEOGRAFIA FÍSICA e GEOGAFIA HUMANA Carlos Alberto Medeiros (Abr.2001)
URBANISMO Excepção ao povoamento habitual nas outras ilhas açóricas, a minúscula ilha do Corvo, que constitui na sua totalidade um concelho distinto e unitário, apresenta um único povoado com uma expressão muito concentrada, situado à beira da costa, no que aproveita para isso um pequeno recesso do litoral, na ponta sul desta ilha/quase ilhéu.
Na maioria das outras ilhas, muito mais extensas, a ocupação e implantação de povoados fez-se tradicionalmente ao longo do chamado ?cordão linear de povoamento?, localizado um pouco afastado da costa, embora em contacto com esta por acessos espaçados, ficando a maioria das povoações viradas para a estrada de atravessamento, interna e estruturante dos núcleos, e paralela ao oceano ? o que fez com que muitas das suas construções estejam ?de costas viradas? ao mar.
Ao contrário, a pequena vila do Corvo abre-se claramente sobre o oceano (e olhando a vizinha ilha das Flores), alcandorada numa encosta sobre o pequeno abrigo portuário. As casas estão assim na sua maioria viradas às águas, paralelas entre si e com orientação para os quadrantes meridionais.
Sendo das últimas ilhas objecto de ?descoberta? (por volta de 1452), foi lentamente ocupada (na segunda metade de Quinhentos) e o seu povoamento foi de consolidação naturalmente difícil; modernamente, o Corvo só lentamente conseguiu emergir de uma ocupação tradicionalmente tributada por pesados impostos medievalizantes, ao longo do período do liberalismo oitocentista, mercê da nova legislação então em vigor. Com alguns surtos de desenvolvimento pontuais (como o gerado pela procura de algas pela indústria micaelense, nos meados do século XX), mas sobretudo por via da emigração para a América, a população corvina, de algumas centenas de almas, conseguiu recentemente alguma afirmação e melhoria económica.
O estudo monográfico A Ilha do Corvo (Medeiros, 1967) documenta com clareza a especificidade corvina, bem afirmada logo desde o tempo da primeira colonização: o capitão Gonçalo de Sousa, responsável pelas Flores e Corvo por carta régia de 12 de Novembro de 1548, «?logo mandou para ela [Corvo] seus escravos de quem ele fiava, fazendo um que melhor lhe pareceu cabeça dos outros, que cultivavam a ilha e olhavam por seus gados?» (OA, 2000: 525).
Prosseguindo com a ajuda da Arquitectura Popular dos Açores: «Outros povoadores se seguiram, talvez mouros e florentinos, ainda no mesmo século [XVI]. Frutuoso, em 1589, indica como constituintes da população da ilha os rendeiros das Flores, os escravos e os mulatos. Diogo das Chagas, no século XVII, refere a vinda de gente da Madeira, da Terceira e do Norte do Continente. Leite de Vasconcelos, baseado em critérios linguísticos, aponta para uma influência de colonos micaelenses ou do Centro/sul do Continente (Medeiros, 1967).
Como sempre, as fontes para as possíveis origens dos colonos são frágeis e contraditórias, não garantindo relação imediata com os modelos da construção rural. Medeiros (1967), no caso do Corvo, inclina-se para aceitar a influência predominante do Nordeste do Continente, fundamentando-se nos tipos de povoação [aglomerada como em Trás-Os-Montes] e de casa corvinas. Vila Nova do Corvo, a povoação única da ilha, é de facto vincadamente aglomerada e deve ter sido o primeiro (e último) espaço de fixação local». (OA, 2000: 525).
Porém, como se refere em casa açoriana (de habitação), nem as teses influencialistas perfilhadas pelos geógrafos portugueses dos anos 1950-60 são claramente comprováveis, nem é de excluir, por regra, a possibilidade de outras leituras interpretativas, a partir de teses de tipo simultaneísta, ou coincidencialista, ou seja: que para um povoamento muito concentrado e densamente aglomerado como o da Vila Nova do Corvo, poderão ter contribuído factores muito diferentes dos que condicionaram o povoamento concentrado transmontano, embora com resultados visíveis aparentemente semelhantes aos patentes em Trás-Os-Montes.
Por exemplo, o isolamento excessivo e brutal, no ilhéu atlântico, empurrando a população escassa a viver em grande proximidade (e num único local), e condicionando a casa a uma implantação em terrenos acanhados (onde os dois pisos eram inevitáveis), pode ter ditado deste modo uma morfologia proto-urbana formalmente comparável à transmontana, bem como uma tipologia edificada que resulta só na aparência análoga à das casas do Nordeste continental.
Vila Nova foi elevada a vila e sede concelhia em 1832, deixando a partir de então de estar dependente de Santa Cruz da Flores, e abandonando ao mesmo tempo os vínculos arcaicos devidos secularmente pela sua sacrificada população aos anteriores donos agrários da ilha.
Medeiros (1967) refere algumas razões explicativas da expressão aglomerada do povoado único da ilha: além das já referidas atrás (tendência linear só nas ilhas maiores e com vários núcleos; o receio de um isolamento excessivo se houvesse dispersão), este autor invoca a necessidade de protecção contra os ?males do mar? (piratas, tempestades), a herança do modo de viver e de ocupar o espaço dos eventuais povoadores transmontanos (já comentado atrás), até a proximidade do único fontanário existente; e, finalmente, a necessidade de preservar as poucas terras boas para a agricultura, reduzindo ao mínimo a ocupação com construção (eis uma última hipótese, que, conhecendo o peso dos ?donos? terratenentes da ilha nas decisões dos primeiros séculos, é bem possível tivesse sido determinante).
A estes aspectos há que juntar ainda outros, na procura de uma compreensão objectiva de Vila Nova do Corvo: o da sua evolução, e do seu tecido proto-urbano, evolução lenta mas gradual, ao longo dos séculos, e que por via da documentação fotográfica disponível em mais de cem anos é detectável com alguma dúvida, dada a «?dificuldade em encontrar dados que confirmem a constância, ou não, das suas características desde as fases iniciais do povoamento. A própria densificação [do núcleo] pode ter sido gradual ou posterior. No século actual [XX] constatam-se apenas mudanças de pormenor (?) comuns no arquipélago: o aparecimento da policromia onde antes reinava a uniformidade [das casas em pedra à vista], o número crescente de chaminés (de introdução recente na ilha) e uma ligeira tendência para o aumento da construção moderna fora da mancha do núcleo tradicional. É na periferia deste que as maiores alterações são visíveis, acusando a modernização inevitável das comunicações: o cais acostável no Porto da Casa (dos anos 1960), o aérodromo (ainda em construção em 1983) e o consequente desaparecimento de algumas terras aráveis junto aos moinhos de vento» (OA, 2000: 527).
Medeiros (1967) refere com clareza a estrutura proto-urbana de Vila Nova do Corvo (esta ?vila? é-o administrativamente, mas não tem, ou não tinha até há pouco, quanto a nós, complexidade e diversidade suficientes para poder ser considerada como uma estrutura completamente ?urbana? - aproximando-se mais do conceito de ?aldeia? como é entendido no Continente): «?o núcleo mais cerrado de casas tem a forma grosseiramente triangular. Próximo do vértice sul está a igreja, que entesta com a rua da Matriz, a qual, durante muito tempo, limitou a povoação a ocidente. Do topo desta rua partem para oeste a do Jogo da Bola e para oriente a do Rego, que passa pelo largo do Outeiro» (Medeiros cit. in OA, 2000: 527).
Morfológica e climaticamente, podemos apreciar esta rua da Matriz como sendo um eixo implantado no sentido sul-norte, estruturante do crescimento do núcleo construído, entre o porto (única ligação tradicional ao exterior) e as encostas de saída para as terras agrícolas a norte ? depois bifurcando entre o caminho para as ditas terras (rua do Jogo da Bola) e a rua de acesso aos espaços mais internos da povoação (para o largo do Outeiro, centro de vida cívica à roda do edifício do Império do Espírito Santo). Ao longo desta rua da Matriz, logo a seguir à igreja, as casas dispõem-se de forma perpendicular, apresentado assim as suas fachadas viradas ao sol e aos quadrantes de sul, com a melhor exposição cimática possível ? regra aliás alargada a outras construções habitacionais já afastadas da rua referida, mais a norte e nascente desta.
Voltando à Arquitectura Popular dos Açores: «O resto do núcleo dilui-se num imbrincado de ruelas secundárias e irregulares, de pavimentação grosseira, permitindo aqui e acolá, a quem sobe a vila, vislumbrar parcelas do mar e da ilha vizinha. As mais interessantes são as canadas e as canadinhas, travessas estreitíssimas, por vezes com menos de um metro de largura, pavimentadas com seixos rolados, e, de vez em quando, com os desníveis vencidos por degraus, frequentemente apertadas entre as empenas cegas e altas das casas de dois pisos. A todas estas vias estão associados os meios de locomoção tradicionais (a pé ou de burro) e a separação das casas pelas canadinhas e pelos portões de madeira que, traduzindo o individualismo na marcação do território, privatizam cada um dos quintais por onde se acede às habitações». (OA, 2000: 529).
ARQUITECTURA Excepcional no tipo de povoado ? único existente e muito concentrado ? que apresenta, a ilha do Corvo constitui também excepção no seu tipo de casa tradicional corrente, constituído esta, em si mesma, uma original tipologia que não se encontra em mais nenhuma ilha do arquipélago.
Trata-se de uma casa com a cozinha no piso térreo, embora constituindo construções em dois pisos ? o que é excepcional no caso açórico: «? apresenta sempre dois pisos (?) O acesso a ele faz-se por uma escada exterior de pedra (?) no rés-do-chão, geralmente térreo, ficam a cozinha e a loja, tendo cada uma delas, por via de regra, a sua porta» (Medeiros, cit. in OA, 2000: 531).
De facto, o que é regra na casa das outras ilhas do arquipélago é que, quando ela apresenta dois pisos com loja térrea, a parte habitacional propriamente dita se situe toda no piso superior, instalando-se aí a cozinha ao nível dos quartos ? normalmente a cozinha assenta no terreno, enquanto os quartos têm pavimento assoalhado sobre as lojas térreas.
No Corvo, tendo as habitações na sua maioria uma escada de acesso exterior ao piso de cima, há que distinguir as que, com expressão mais antiga, apresentam a sua cozinha num corpo de um só piso térreo, encostado ao corpo de dois pisos com os quartos em cima e a loja em baixo. O levantamento realizado por arquitectos em 1982-83 permitiu detectar a presença dos vários tipos de habitação. Segundo o respectivo estudo, um exemplo deste tipo mais antigo ??mantém o seu forno sem chaminé, escoando o fumo por uma abertura no forro da cozinha e através das telhas, o que impede a construção sobre este compartimento. Encostado à cozinha encontra-se o corpo rectangular de dois pisos, com as lojas térreas e os quartos por cima, servido por uma escada exterior. A cozinha e a loja, ambas com portas para o quintal, comunicam também entre si, interiormente. A ligação com os quartos faz-se apenas pela escada exterior. No alto da povoação encontra-se outra casa, já abandonada, que representa uma variante com planta em L do mesmo ?modo antigo?» (OA, 2000: 532-33).
O tipo mais recente de casa, com construção de um piso superior sobre a cozinha, implicou o recurso à chaminé. Segundo o estudo atrás referido, num dos exemplos de casa deste tipo «O primeiro andar continua totalmente ocupado pela sala e pelos quartos, assim como no piso térreo se mantêm a cozinha e as lojas. Estas últimas, que outrora chegaram a abrigar o gado, são hoje em dia usadas como espaço de arrumos. Há casos em que foram mesmo actualizadas como espaço de habitar (sala ou quarto). O acesso principal ao andar de cima continua a processar-se pela escada de pedra exterior, mas aparece já uma ligação interna, a partir da cozinha, por meio de uma pequena escada de madeira, inclinada e estreita.
A chaminé tem uma conduta incluída no perímetro da habitação, pois encima um lar contido no espaço da cozinha. Assim, o atravessamento do segundo piso, até ao telhado, [pelo tubo da conduta proveniente da chaminé] é sempre acusado pela ?caixa? que se encontra num dos quartos. Quando fica suficientemente afastada da parede, dá origem a um espaço utilizado como armário» (OA, 2000: 535).
Uma variante deste tipo mais recente, característico da ilha, apresenta a sua planta interior com um desenvolvimento em ?L?, tal como sucedia no tipo mais antigo de casa.
Assim, no conjunto destas tipologias corvinas, quando há um forno saliente para o exterior da empena (por vezes ele é interno à cozinha), este ?cu? de forno é sempre térreo, assente no espaço do quintal da habitação, e por isso muito afastado do corpo da chaminé, este superior, pelo que só é visível acima do segundo piso ? num efeito muito diverso do das restantes ilhas, onde corpo do forno e chaminé constituem exteriormente à casa um conjunto coeso e em continuidade.
Além deste tipo de casa corvina, encontram-se outros, geralmente na periferia da Vila Nova, que são idênticos às habitações estudadas nas Flores ou em outras ilhas do grupo central dos Açores. Mas estas, que demonstram afinal uma abertura da ilha às influências externas no seu habitat, são em reduzido número, embora nas últimas duas décadas se possa já falar do aparecimento de uma pequena ?área de expansão? da povoação, com construções menos características, em betão armado.
Exteriormente à Vila Nova, é muito esparsa a construção, reduzindo-se normalmente a abrigos para apoio à actividade agrícola, no caminho para o ?Caldeirão?, ou a palheiros e pequenas instalações antes destinadas a fabriquetas artesanais de apoio à produção rural. Medeiros (1967) refere a existência de eiras e de moinhos, estes de um tipo original no arquipélago, mas idêntico aos do tipo continental do sul (hoje há ainda alguns moinhos a sul-poente do povoado). José Manuel Fernandes (Abr.2001)
HISTÓRIA A elevação a vila do primitivo povoado do Porto das Casas (no texto da lei designado de Nossa Senhora dos Milagres) e a sua transformação em cabeça do novo concelho do Corvo (21.6.1832), resultou de um dos numerosos decretos que Mouzinho da Silveira, secretariado por Almeida Garrett, publicou durante o governo revolucionário de D. Pedro IV nos Açores. Está assim esta nova página da história do Corvo intimamente ligada à implantação do Liberalismo em Portugal e, conforme já outros sublinharam, terão sido os corvinos aqueles que mais rápida e directamente sentiram o alcance social da legislação de Mouzinho da Silveira, o ?ditador da liberdade?, cujas medidas reformistas relativamente à valorização do trabalho e da propriedade alodial libertaram os moradores da ilha de parte dos pesados tributos anteriormente devidos ao donatário e à Coroa. Durante a estadia do imperador no arquipélago em 1832, quando se preparavam os aprestos finais da célebre expedição dos bravos do Mindelo, uma delegação de corvinos, encabeçada por Manuel Thomaz de Avelar, apresentou a D. Pedro e ao seu ministro o pão negro que iludia a fome das gentes da ilha, reclamando a supressão das rendas que então deviam a Pedro José Caupers. A súplica foi atendida e pelo decreto de 14 de Maio de 1832, redigido e assinado em Ponta Delgada, Mouzinho da Silveira reduziu para metade a renda paga em trigo e suprimiu a devida pela lã das ovelhas, cujo rebanho passou a ser propriedade plena dos corvinos, que entre eles dividiram os animais. Segundo testemunhou Garrett em 1849, na sua Memória Histórica de J. Xavier Mouzinho da Silveira, o legislador sentiu-se particularmente gratificado por passar essa carta de alforria aos moradores da ilha: «Lembro-me como se fora hoje esse dia 14 de Maio - vi-o sair triunfante do despacho como se trouxesse para si, como outro traria para si, um ducado. O Imperador sorria de o ver tão feliz do que a outros parecia tão pouca coisa. Fazer homens, fazer cidadãos cem ilotas do Corvo». A libertação da terra e do rebanho, mais do que a conquista da autonomia municipal relativamente ao vizinho concelho de Santa Cruz das Flores, determinou uma melhoria relativa das condições de vida dos corvinos que, embora pobres e remediados, deixaram de ser o ?opróbrio da humanidade?. Efectivamente, já não é com as cores carregadas da desgraça e da fome, que Joseph e Henry *Bullar (1986: 251-52) nos descrevem as gentes da vila do Corvo em Abril de 1839: «São os corvinos um povo feliz, contente e trabalhador, robusto e de boa parecença, uma família de 600 pessoas cujo chefe é o padre». A imagem que transmitem, a de uma comunidade que se basta a si própria, onde toda a gente anda descalça e a frugalidade é vivida de forma honrada, corresponde no essencial ao testemunho também deixado pelo faialense António Lacerda Bulcão, nas memórias sobre a sua estadia na ilha do Corvo, em 1842 (Arquivo dos Açores, 1890: 544-557). Outro ponto comum a estas duas descrições da sociedade corvina é a importância patriarcal do vigário da Igreja de Nossa Senhora dos Milagres na vida da comunidade, o que deixa entrever que, pelo menos no plano político-administrativo, a criação do município do Corvo e da sua correspondente vereação e presidência camarária, não se tinha de todo traduzido no apagamento da função social e institucional desempenhada pelo padre enquanto ?regedor? desta singular comunidade agro-pastoril. Contributo não desprezível para a estabilidade da tradição pároco-freguesia, foi o facto de, numa época de profundas transformações político-administrativas, os corvinos terem sido sempre acompanhados pelo mesmo padre, o reverendo João Inácio Lopes, que desde finais do século XVIII se encontrava na ilha e era já septuagenário quando os Bullar e Bulcão visitaram o Corvo. Chamavam-lhe ?o pai da ilha? e era o único homem que andava calçado, nuns atamancados sapatos de fivela. Figura heterodoxa, muito dada a manter relações cordiais com os corsários que, ainda então, rondavam o ilhéu (como o testemunha a curiosa história do ?pirata Almeidinha?, ocorrida em 1819-20 e relatada por Bulcão), era contudo estimado pelos seus paroquianos e tinha o bom hábito de escrever nas páginas do breviário os factos notáveis ocorridos na ilha. Desgraçadamente, as notas deste cronista corvino foram devoradas pelas chamas, o mesmo tendo sucedido com a documentação mais antiga da recém-criada Câmara Municipal, cuja pesada estrutura administrativa era rejeitada pelos corvinos que, em sinal de protesto, incendiaram a casa da Câmara e os papéis que lá estavam em 1867 .
Efectivamente, o relatório anual de 1869 elaborado pelo Governador Civil da Horta, António José Vieira Santa Rita, referindo-se à ilha do Corvo, observa com algum pragmatismo que «uma administração paroquial é quanto basta àqueles povos [uma vez que a existência deste concelho] na actualidade, em vez de lhe ser benéfico, é um pesado encargo de que ela [ilha do Corvo] ardentemente deseja ver-se libertada» (Gomes, 1997: 382). O mais antigo livro de actas existente no actual Arquivo da Câmara do Corvo, é o correspondente aos anos de 1868-1880, situando-se a partir daí o ordenamento possível do estudo documentado da memória colectiva local. Ora, tanto o incêndio da casa da Câmara, como a acta de uma sua posterior sessão extraordinária, datada de 20 de Junho de 1869, na qual o presidente e vereadores deliberam a extinção do concelho, são ambos exemplos claros de uma sociedade ?em fuga? à trama administrativa do Estado. Durante séculos abafados na esfera opressiva do poder dos donatários, que certamente contribuiu para a formação de estreitos mecanismos de solidariedade na sociedade local, os corvinos tinham sedimentado hábitos de funcionamento comunitário cuja autoregulação no quadro da paróquia os insularizava ainda mais sobre si próprios, tornando assim dispensável e, até mesmo indesejável, o aparecimento de quaisquer outras formas, ou órgãos, de governo das gentes da ilha. Os argumentos adiantados pelo elenco camarário (reunido a 20 de Junho de 1869) para sustentar a sua recusa em constituir-se como poder municipal, assentavam basicamente no analfabetismo generalizado da população (não havia ?letrados? suficientes para garantir a ?escrita? administrativa da função pública) e no pressuposto de que os ditos órgãos de governo próprio só trariam entraves e encargos adicionais para a população do Corvo. Este municipalismo imposto pelas reformas político-administrativas do Estado liberal, demorou a consolidar-se face ao peso simbólico da figura do pároco-regedor, e não será certamente estranho ao carisma pessoal do padre Lopes o facto de, durante praticamente toda a segunda metade do século XIX, ter sido uma ?filha? sua, D. Mariana da Conceição Lopes, «quem governava praticamente a ilha ... era ela que recolhia as contribuições e as enviava para as Flores, aconselhando ainda os seus conterrâneos no caso de alguma desavença» (Medeiros, 1987: 114). Ou seja, o municipalismo não só nunca teve grandes tradições históricas no Corvo, como também revelou alguma dificuldade de implantação ao longo dos séculos XIX e XX entre os moradores da ilha, habituados a um ?comunalismo? muito próprio em que as questões eram resolvidas consuetodinariamente pelo ?conselho de anciãos? no Largo do Outeiro da vila. É esta a imagem que Raul *Brandão, após duas semanas na ilha, no Verão de 1924, nos dá da sociedade corvina na sua célebre obra As Ilhas Desconhecidas (1925).
Dever-se-á, contudo, concluir que o elenco camarário era uma simples existência administrativa sem conteúdo real? Nem pouco mais ou menos. Pela leitura dos próprios documentos do arquivo municipal, designadamente os Livros de Actas da Câmara (de 1868 a 1961) e o copiador das Representações que a Câmara Municipal deste Concelho tenha feito aos Chefes da Nação (de 1893 a 1940), constata-se que a instituição municipal foi um instrumento útil para a regulação dos problemas respeitantes à vida de relação dos corvinos com o exterior, designadamente aqueles que diziam respeito à obtenção de financiamentos do Estado (para a construção de estradas, portos, escolas e edifícios de repartições públicas). Caso existam fontes primárias corvinas, é sempre preferível fazer fé no que dizem, do que ficar magnetizado pelo brilho literário da visão de alguém que, como Raul Brandão, insiste em olhar para o Corvo como uma comunidade utópica do ?princípio do mundo? (Silveira,1959: 8). A consulta dos Livros de Actas mais antigos dá conta, por exemplo, de uma significativa vida de relação com as embarcações estrangeiras que demandavam as Flores e o Corvo, registando também um pendular surto emigratório de mancebos corvinos que ?embarcavam de calhau? (ou ?de salto? ) para as baleeiras norte-americanas, escapando assim atempadamente às malhas do recrutamento militar. Ao longo de todo o período da Monarquia Constitucional, o Corvo, como as Flores, estiveram em estreito contacto com as barcas baleeiras de Nantucket e não é certamente por acaso que, ainda na primeira metade do século XIX, se encontrava estabelecido em Santa Cruz das Flores, na pessoa de um intrigante médico escocês, James MacKay, uma agência consular norte-americana, ou que os irmãos Bullar registam, em 1839, a existência de homens no Corvo que dominam a língua inglesa. O que é facto é que os corvinos fizeram parte do primeiro surto de emigração oitocentista açoriana para a América do Norte, basicamente composta por marítimos ligados a actividades baleeiras que se instalaram em redor do porto de Nu bete fete (como aparece literalmente escrito New Bedford nas actas das sessões camarárias), e essa primeira vaga funcionou depois como plataforma familiar de acolhimento e redistribuição para as posteriores gerações de corvinos que, no último quartel do século XIX, se dirigiram já para a costa oeste (Califórnia). Esta ligação íntima entre o Corvo e a jovem nação americana fez com que o etnógrafo Leite de Vasconcelos, ao desembarcar na ilha em 1924, fosse surpreendido por uma mulher que lhe perguntou, com toda a naturalidade, pela cotação da ?águia? (dólar). A América era uma segunda mãe e as autoridades municipais não se cansam de alertar o poder central para a necessidade de rever a lei do recrutamento militar e a obrigatoriedade do seu serviço, bem como de criar uma rede local de instrução primária militar, pois de outro modo jamais se travaria a emigração clandestina e, mais grave ainda, o sentimento de ?repugnância? e ?alergia? por aquilo que era considerado um símbolo da pátria, ameaçava mesmo minar a frágil identidade nacional dos corvinos.
No período da I República é perceptível uma viragem nesta situação. O ciclo da navegação à vela no Atlântico norte tinha terminado em finais do século XIX, e com ele as baleeiras americanas deixaram de tocar o Corvo para refresco. Ou seja, a vida de relação com o exterior passava a estar inteiramente dependente das escalas feitas na ilha pelos vapores da Empresa Insulana de Navegação, pelo que importava não só garantir a regularidade e frequência desse serviço público, como criar infraestruturas portuárias mínimas (construção do cais e rampa do Porto da Casa) através dos cofres do Estado, o que passava por um diálogo institucional com a administração central e distrital (Governo Civil da Horta) que veio reforçar a importância (e utilidade) do poder municipal. Efectivamente, diferentes representações enviadas pela Câmara do Corvo aos Ministros republicanos da Marinha, Guerra, Interior, Finanças e Fomento, entre 1910 e 1915, não só se queixavam de que a ?Monarquia sempre foi madrasta? para o povo corvino, como colocavam a tónica na necessidade de preservar a autonomia municipal do Corvo, de aí criar serviços públicos de notariado, finanças e instrução primária para os dois sexos, de iniciar, enfim, uma política de obras públicas que se traduzisse, por exemplo, na construção da primeira estrada da ilha, unindo os portos do Boqueirão e da Casa ao longo do Caminho da Cruz, conforme reclamava a Comissão Municipal ao Ministro do Fomento, na sua sessão de 18 de Novembro de 1912. Na II República, no decurso da ditadura salazarista e do Estado Corporativo, acentuou-se ainda mais esta tendência para o investimento público e o reforço da presença administrativa do Estado na pequena ilha que, manifestamente, resultou na consolidação da orgânica concelhia e na crescente visibilidade da instituição municipal que, ombreando já em prestígio com o padre, era, segundo o testemunho de Pedro da Silveira em 1944 (Silveira, 1959: 11), «se acaso algum dia, amigo etnógrafo, ou filólogo, ou sociólogo, vocemecê pretender estudar a vida daquele povo ... arranje, de caminho, duas recomendações: uma do Senhor Bispo de Angra, para o vigário-ouvidor da ilha; a outra, da autoridade distrital da Horta, para o pessoal da Câmara». Em 1948, na sequência de uma representação da Câmara Municipal, o Ministério do Interior, ouvido o parecer da comissão de heráldica e genealogia da Associação de Arqueólogos Portugueses, atribuiu ao concelho as suas armas. (Gomes,1997: 597-98). O Corvo, por via do seu município, tinha finalmente uma iconografia heráldica e, com ela, uma bandeira para hastear, mas mais do que ver assim consagrada a sua identidade, era desta forma definitiva e simbolicamente integrado na rede administrativa de um Estado (agora republicano e laico) que, durante séculos, havia deixado nas mãos da Igreja a função omnipresente da autoridade.
A partir de meados do século XX o concelho do Corvo conheceu um decréscimo populacional imparável, em grande parte fruto da emigração para a América, mas também da migração para outras ilhas, designadamente a partir de meados da década de 70, quando fica consagrada constitucionalmente a existência da Região Autónoma dos Açores. Em 1900, e não obstante o considerável número de emigrantes que terão saído do Corvo na centúria de Oitocentos, a população ainda se situava no patamar dos 800 residentes, caindo para 728 no ano de 1950 e, daí para a frente, acentuando bruscamente a sua descida para 485 em 1970, atingindo em 1990 um limiar mínimo de habitantes (350) que possibilitam uma dinâmica sustentada de desenvolvimento. Paradoxalmente, à medida que o Estado ia realizando investimentos e concretizando as reclamadas obras públicas, os corvinos iam abandonando a sua ilha, muito embora a esta desertificação de gentes tivesse correspondido um aumento do perímetro urbano do concelho. Mas, mais do que os números ou do que a linguagem da quantidade, importa perceber que o município do Corvo, ao longo dos séculos XIX-XX, assistiu ao termo de dois importantes ciclos estruturantes da sua história recente: a navegação à vela e a criação de ovelhas no baldio comunitário. O primeiro determinou a sua vida de relação com o exterior através do mar, o segundo marcou fortemente, não só em termos económicos como simbólicos, a existência dos corvinos enquanto comunidade isolada.
Quando se aliviou (com as reformas do Liberalismo) a pressão tributária sobre a ilha e se repartiu entre os seus moradores a propriedade do rebanho de ovelhas, começaram a criar-se as condições para que, uma vez terminado o relacionamento com as baleeiras americanas, o município do Corvo se autocentrasse sobre um espaço efectivamente limitado pelo mar, emergindo então as coordenadas que configuram o chamado (e discutido) ?comunitarismo? agro-pastoril corvino, o qual teve na gestão colectiva do baldio (que ocupava mais de 3/4 da superfície da ilha) para criação de gado e produção de lã uma das suas expressões identitárias mais conhecidas e importantes. Ora, nos inícios da década de 1970, esta vivência comunitária de uma sociedade já muito fragilizada demograficamente, conheceu o seu irremediável toque de finados com a publicação de um decreto governamental em 1971, que extingue o baldio e o transfere para a competência dos Serviços Florestais. Como é sabido, no decurso do século XX em Portugal, a face visível (e indesejada) do Estado entre as comunidades campesinas mais marginais e isoladas, foi justamente o departamento governamental que tinha a seu cargo a política de rearborização dos baldios nacionais. A resistência do município do Corvo a esta medida adquire uma importância pouco mais do que simbólica, assinalando o fecho de um ciclo que, pouco depois, com o advento do 25 de Abril de 1974 e a subsequente criação da Região Autónoma dos Açores (cujos órgãos de governo próprio e respectivo sistema eleitoral conferem à ilha uma acrescida presença e representatividade no novo edifício político-administrativo regional), iria lançar também os corvinos no inexorável movimento estrutural da terciarização social. Carlos Guilherme Riley (2002)
ACTIVIDADES ECONÓMICAS Compreendendo jurisdição sobre a totalidade da ilha do Corvo, este concelho registava, no censos de 2001, uma população residente de 425 indivíduos e uma população presente de 401. A maior parte dos 17,1 km2 são ocupados por áreas de exploração agrícola e agro-pecuária. A densidade populacional de 14 hab/km2 é a mais baixa dos Açores, com uma média de 106 hab/km2 (INE, 2002).
Servida por um aeródromo e por um pequeno porto, a ilha tem ligações regulares marítimas e aéreas, para a vizinha ilha das Flores.
A população activa reparte-se por diversas áreas de actividade, incluindo a agrícola, a agro-pecuária, a pesca, a indústria da construção e do artesanato e os serviços (serviços públicos, correios, bancos, comércio, restauração, transportes, saúde e ensino).
Segundo o Recenseamento Geral Agrícola de 1999 (INE, 1999a), havia, naquela ilha, nesta data, 65 explorações agrícolas, todas geridas por conta própria. A totalidade da mão-de-obra utilizada é familiar, incluindo em quase paridade homens e mulheres (116 e 104, respectivamente). O efectivo animal, em 1999, incluía 482 bovinos, dos quais 79 eram vacas leiteiras.
Em 1999, das 33 empresas com sede no Corvo, 10 eram do ramo do comércio, seis do sector primário, cinco de construção civil e 3 do ramo de alojamento e restauração. O pessoal ao serviço nas sociedades com sede no Corvo montava a dezoito indivíduos, dos quais 12 estavam em actividades imobiliárias, alugueres e serviços prestados às empresas (INE, 1999b).
Embora, em 1999, não tivesse sido registada qualquer actividade na área do turismo, é usual o acolhimento de turistas em casas particulares.
O volume de vendas das sociedades sediadas atingiu, em 1999, 500 mil euros (INE, 2002). No mesmo ano, o orçamento da Câmara Municipal atingiu os 1.245 mil euros (SREA, 2000: 128).
Em 1998, 24,6% da população era pensionista.
O peso do sector público é marcante nesta ilha que apresenta, mesmo assim, uma taxa de actividade de 44,2%, acima dos 42% dos Açores.
O Corvo apresentava, em 1999, um Índice Per Capita de Poder de Compra de 76,2% da média nacional, um valor superior ao dos Açores que, nesta mesma data atingiu os 66,5%.
A economia do Corvo pode caracterizar-se pela sua concentração nas bases agro-pecuária e serviços públicos, com uma expressão reduzida dos demais sectores de actividade. Mário Fortuna (2002)
ASPECTOS RELIGIOSOS Parcela integrante da comenda constituída pelas ilhas das Flores e Corvo, competia ao comendador nomear os eclesiásticos que a servissem, que depois seriam confirmados pela Coroa, bem como promover a construção e a conservação das igrejas.
É no cumprimento deste dever que, nos inícios do século XVI, o primeiro comendador Antão Vaz fundou no Corvo a primeira igreja, dedicada a Nª Srª do Rosário. Em 1674, foi criada a freguesia com igreja paroquial dedicada a Nª Srª dos Milagres para apoiar os cerca de 400 fregueses então existentes. Esta igreja, reedificada em 1795, possuía os altares do Santíssimo Sacramento, Nª Srª dos Milagres, Nª Srª do Rosário, S. Caetano e Bom Jesus.
Nos primeiros tempos do povoamento, a administração religiosa e o culto eram da responsabilidade do vigário de S. Cruz, da ilha das Flores, que, anualmente, no período da Quaresma, se deslocava até lá para a concessão dos sacramentos. Os maus portos das duas ilhas, devido às orlas marítimas de difícil acesso, e a instabilidade do clima impediam a realização de viagens frequentes e, desta forma, muitos dos povoadores faleciam sem os últimos sacramentos e muitas crianças ficavam meses sem serem baptizadas.
Tomando conhecimento do abandono espiritual em que se encontravam os moradores corvinos, o pe. Agostinho Ribeiro, capelão de D. Manuel I (futuro bispo de Angra), terá manifestado desejos de alimentar a espiritualidade dos insulares, e tornou-se o primeiro eclesiástico residente no Corvo, onde terá chegado nos finais da segunda década do século XVI. As fontes documentais, de uma maneira uniforme, referem a ignorância e os costumes gentios da população que este padre encontrou e a acção educativa levada a cabo pelo mesmo, designadamente através do ensino diário da doutrina, na introdução da devoção à Virgem e na realização de procissões apelativas ao cumprimento dos sacramentos. Segundo os relatos, perante as dificuldades em alterar os hábitos pagãos, o padre terá lançado censuras eclesiásticas a determinados indivíduos e terá sido este facto a agudizar a relação entre o mesmo e os povoadores, que o obrigaram a sair da ilha, sob ameaça de morte. A relação conturbada entre estas duas forças, que parece ter estado latente desde sempre, deve ser entendida tendo em consideração que os primeiros povoadores corvinos eram escravos negros e mulatos, que serviam o comendador na exploração agrícola da ilha e que, por vezes, assumiam responsabilidades importantes, como é o caso do escravo nomeado pelo senhorio para desempenhar as funções de meirinho. Habituados a usufruir de um prestígio próprio e de um poder que não tinha concorrentes ? uma vez que não havia quaisquer autoridades públicas organizadas ? os locais terão sentido como ameaça a intervenção do braço eclesiástico, que tentava impôr regras diferentes a uma comunidade com tradições religiosas e hábitos sociais distintos. Neste sentido, o Corvo apresentava um carácter singular comparativamente ao que sucedeu no período do povoamento em outras parcelas insulares, onde a presença de escravos também foi utilizada pelos capitães-donatários como marca de territorialização e exploração do espaço, como foi o caso na ilha do Pico.
Nos finais do século XVI, o Corvo continuava sem padre próprio, como se comprova pela ausência de qualquer referência à ilha no documento de D. Filipe II, datado de 7 de Agosto de 1590, sobre o aumento das côngruas açorianas. A dependência dos corvinos para com a vigararia das Flores manter-se-ia até aos inícios do século XVII, quando o bispo angrense, D. Jerónimo Teixeira Cabral, recordou ao novo comendador, D. Francisco de Mascarenhas, a obrigação inerente à comenda de cuidar das questões religiosas. Perante o desinteresse do conde de S. Cruz, que opinou ser-lhe preferível o despovoamento da ilha que garantir a respectiva administração religiosa, foram os moradores a assumirem, perante o bispo, os gastos com a manutenção de um clérigo. O padre Bartolomeu Tristão foi, assim, o segundo padre residente do Corvo, cuja sobrevivência, orçada em 6 moios e 3 quarteiros de trigo, era, pois, garantida pelos locais. Todavia, o vigário seguinte, padre Inácio Coelho, atendendo à pobreza dos habitantes, conseguiu que fosse D. Martinho de Mascarenhas, comendador desde 1608, a responsabilizar-se pelo pagamento da côngrua. A nova disponibilidade da população do Corvo para receber a hierarquia eclesiástica poderá ser justificada pelo aumento demográfico da ilha, feito predominantemente à custa da população branca, e que terá alterado as vivências religiosas dos primeiros tempos. Desde então, o prestígio da figura clerical ter-se-á fortalecido, graças á fragilidade dos poderes concorrenciais. Assim, em 1839, o inglês Joseph Bullar, na visita que faz à ilha, referiu que o padre do Corvo era considerado pelos cerca de 600 habitantes como o chefe da comunidade, respeitado como patriarca e com um prestígio incomparável, prestígio este abrilhantado por usufruir de insígnias únicas entre os habitantes, designadamente por ser a única pessoa a usar sapatos e por ser o único proprietário de um relógio. Segundo o mesmo relato, a prática religiosa entrara, então, nos hábitos diários da comunidade, pois todas as manhãs, antes de iniciarem o trabalho nos campos, a missa era assistida por muitos fiéis, principalmente do sexo feminino.
Em 1832, de acordo com as alterações políticas do Liberalismo, o Corvo passou a constituir uma ouvidoria, onde manifestações religiosas semelhantes às das demais parcelas açorianas, como a da devoção ao Espírito Santo, são, ainda hoje, exercidas. Susana Goulart Costa (Mai.2001)
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