Do lat. cultura, do verbo colo, is, ere, colui, cultum, 'cultivar', isto é, cultivar a terra, ou seja a agricultura (ager, i, 'campo'). Proveniente da profunda experiência agrária dos Romanos, o termo cultura, tomado, portanto, como metáfora, quer significar que o espírito se deve cultivar como a terra, para produzir frutos. Daí o paralelo entre agricultura e [animi]cultura, de que falam Cícero e Horácio, e que tem a ver com a filosofia e a paideia gregas.
A ideia de cultura tomou um carácter eminentemente humanista no século XVI, ligada à filosofia e ao estudo das letras com um sentido da valorização do homem, isto é, da condição humana, vista individualmente, no caso a caso da introspecção. Montaigne, nos Essais, apela para o «descer em si próprio» (nemo in sese tentat descendere).
Mas este termo só pode ser bem compreendido quando relacionado dialecticamente com civilização, que, nascido no século XVIII e de cariz francês, aponta para as realizações materiais do progresso, para o bem-estar da cidade e do cidadão (cf. Lat. cives e civilis), enquanto a cultura se refere principalmente aos valores. É costume dizer-se que a cultura é o ser, a civilização é o ter, que aquela aponta para a transcendência, esta para o mundo. Lembre-se o verso pessoano «ter é tardar» (Mensagem), no sentido de que o desejo de ter bens ou o apego à rotina, ao quotidiano, às coisas materiais, contrariam ou tardam a asa do sonho, do ideal, o partir («a lareira a abandonar» ou, no sentido cristão e franciscano, a salvação, pelo desprendimento das coisas terrenas). A relação dialéctica cultura-civilização é por demais evidente e exemplificável: um disco, um CD, um DVD são produto de civilização; mas o que está ?dentro? ou o que veiculam é emanação e documento de cultura.
Esta dialéctica indissociável faz com que se possa por vezes usar indistintamente estes termos. Estudar a cultura dos Romanos é, afinal, obrigar-se ao estudo do que também se pode chamar a civilização romana, pois não há civilização que não pressuponha uma cultura.
Outros pares em oposição-relação, além de cultura/civilização, se podem estabelecer: assim, cultura/erudição, no sentido de que cultura é um saber instrumental e dinâmico, erudição um saber-peso, uma espécie de ?banco de dados?; mas a cultura não opera no vazio, e o lastro de uma erudição relativa é sempre necessário; quanto a cultura e ilustração, este último é um termo frequente nos finais do século XVIII e princípios do século XIX (herdeiro do Iluminismo) para significar cultura (ser-se ilustrado era uma forma de significar ser-se culto, ter saber); ainda cultura tem uma importante relação com História, por ser a estrutura mais ?fina? e teórica, o ?saldo? e o fio condutor das acções e do progresso, ou, como preferiu exprimir Arnold Toynbee em frase célebre, a cultura é que é ?o aspecto inteligível da História?.
Após Edward B. Tylor (Primitive Culture, 1871) pode considerar-se uma perspectiva antropológica ou ciência da antropologia cultural. Assim cultura (ou civilização), em sentido etnográfico amplo, abrange o conhecimento das crenças, da arte, do direito, da moral e dos costumes e todas as aptidões do viver em sociedade.
Definir (isto é, de finire, do lat. ?pôr limites à volta de?) cultura torna-se assim muito vasto ou quase impossível, pois um sem número de definições pode ser tentado enunciar. Melhor será mencionar alguns nomes cujas ideias a respeito se tornam referências (além dos já referidos): W. Dilthey e a célebre controvérsia sobre as ?ciências do espírito? ou ?ciências da cultura? e as ?ciências da natureza?; Alfred Weber (e o seu esquema triádico: Processo de Civilização, Processo Social, Movimento de Cultura); Leslie White (que propõe um culturologia ou ?ciência da cultura?); Ernest Cassirer (e a sua filosofia dos campos de formas simbólicas, veja-se principalmente a sua Antropologia Filosófica); Gilbert Durand (1984); C. Geertz (A Interpretação das culturas, de 1973, chama a atenção para o que é essencialmente semiótico, uma busca de significado, uma ciência sobretudo interpretativa).
Cultura Açoriana
Povoados nos meados de século XV (Matos, 1987, 1989), os Açores receberam gentes de diversos pontos do Continente (a princípio, principalmente do Sul), o que dá ao Arquipélago um passado profundo que se radica na lusitanidade quatrocentista e na atmosfera cultural do fim da Idade Média. Séculos de evolução em condições arquipelágicas sui generis permitem que se fale de uma identidade baseada em peculiaridades diversas. Aqui, porém, teremos de separar a sobreposição dos conceitos civilização/cultura, pois se é susceptível de busca a fundamentação de uma cultura açoriana, não é possível falar em civilização açoriana. Com efeito, para se falar em cultura açoriana sem ambiguidades político-separatistas que a possam fazer entender como opondo-se à cultura portuguesa, ter-se-á que entender cultura açoriana como o conjunto de traços peculiares e de formas de expressão (estética, literária, religiosa, etc.) que permitem descortinar uma identidade, uma peculiaridade global derivada do seu próprio condicionalismo e a ele revertendo, para o assumir. Não basta que tenha havido produção cultural, mesmo com a importância historiográfica (e talvez literária) de homens como Gaspar Frutuoso, mas quem tenha tomado como reflexão a própria condição de ser insular nos Açores.
Essa reflexão ficou teórica e esteticamente em aberto depois das palavras que Vitorino Nemésio (1901-1978) escreveu para a revista Insula, a propósito do Quinto Centenário dos Açores, intitulando o artigo «*açorianidade», termo que decalcou sobre hispanidad (de Miguel de Unamuno).
Decerto esse artigo contém algumas ideias fundamentais para se falar de uma cultura com identidade: o meio milénio de vida histórica e social num clima onde «a geografia vale outro tanto como a história», a capacidade de subsistência imposta pelo isolamento, a experiência de ausência do próprio Nemésio, que o leva a falar na sua açorianidade que «o desterro afina e exacerba». Essa carga de vivência, recordações e sensibilidade colectiva conferiria então uma marca identitária e um factor de coesão. Quase poderia concluir-se que a lusitanidade primitiva, trabalhada pelo condicionalismo local, gerou a açorianidade, substrato de uma cultura própria. Já em 1928, numa conferência que viria a inserir no seu volume Sob Signos de Agora, Nemésio (1932) ocupa-se de «O Açoriano e os Açores», estabelecendo um tipologia: o micaelense e o das ilhas de Baixo, nestes últimos incluindo uma sub-tipo importante, o picaroto. Numa conferência em Nice em 1940, «Le Mythe de M. Queimado» (Nemésio, 1940), desenvolve, com intenções de divulgação mas também estéticas, uma teoria das origens míticas dos Açores, do homem açoriano sem antepassados, produto original de um meio peculiar, o homem e o telurismo, «la singularité tellurique de son pays ...».
Para a caracterização de uma cultura açoriana é importante o contributo de Luís da Silva Ribeiro, advogado e investigador etnográfico e fundador do Instituto Histórico da Ilha Terceira, ao ocupar-se, com consciência do caminho aberto por Nemésio, dos traços da sensibilidade insular açoriana: ao clima, à religião, ao desejo de emigração, etc. (Ribeiro, 1964), - leitura indispensável para o estudo da idiossincrasia açoriana. Também especificamente importante se torna ler Arruda Furtado (1884).
Ao leitor comum poderá parecer demasiado académica a polémica à volta de uma literatura adjectivada de açoriana, que, não sendo um adjectivo de nacionalidade, só pode ser um qualificativo que reivindica uma forte identidade para textos literários (o mar, o isolamento, o clima, os costumes, a religião, a emigração). Talvez fosse preferível falar em literatura de significação açoriana, na medida em que se põe em relevo um conjunto de marcas que o conceito de literatura regional não esgota. Para esse sentimento de reivindicação cultural contribuiu também, poderosamente, a autonomia oficialmente institucionalizada na Região partir de 1976 e a criação de uma universidade, na qual acabou por se reconhecer a necessidade crítica e científica de leccionar uma cadeira de Literatura e Cultura Açorianas, em regime opcional. A polémica sobre o conceito de literatura açoriana merece tratamento especial, pois é uma componente da reivindicação identitária dos Açores autónomos; autores como Roberto de Mesquita e Vitorino Nemésio nos parecem ser pilares de uma literatura açoriana, pela impregnação que receberam do universo insular. Porém, uma obra como As Ilhas Desconhecidas (1926), de Raul Brandão, embora apenas visitante nos Açores por um mês, fixou, com grande qualidade literária, a luz e as cores açorianas. A questão da literatura açoriana, que merece desenvolvimento específico, conta com significativas antologias, tais como as de Pedro da Silveira (1977), João de Melo (1978) e Jorge Monteiro e Onésimo T. de Almeida (1983), sendo também indispensável a consulta de Onésimo T. de Almeida (1983 e 1986), e ainda José Martins Garcia (1987).
A emigração influencia significativamente a cultura nos Açores, no sentido de que se mantém hoje um forte laço entre este arquipélago e os Estados Unidos e o Canadá. Por isso se fala por vezes em açor-americanos ou açorianos de diáspora, com presença nas ilhas (por visitas frequentes, mormente aquando de festividades profanas ou religiosas) e com uma produção literária (Fraga, 1994; Dias, 1983 e Pires, 1981, 1983, 1987, 1998). Os dois grandes traços do comportamento histórico e da idiossincrasia dos açorianos parece serem a fidelidade ao seu cosmos da ilha natal e a disponibilidade para a emigração, ou seja ilha, pequena pátria e diáspora emigratória.
Mas os Açores são ponto de cruzamento de rotas e simultaneamente a fronteira cultural mais ocidental da Europa, sem deixar de ser uma expressão peculiar da cultura portuguesa no mundo, pela língua, pela arquitectura, pela origem dos povos que ocuparam as nove ilhas.
A criação de uma universidade, em 1976, que tem fomentado a produção de trabalhos historiográficos e a investigação no domínio das ciências sociais e das ciências da Natureza (em especial Geociências e Ciências do Mar), a actividade de institutos e instituições (Instituto Cultural de Ponta Delgada, Instituto Histórico da Ilha Terceira, Instituto Açoriano de Cultura, Núcleo Cultural da Horta, Associação de Estudos Açorianos Afonso Chaves, Academia das Artes de Ponta Delgada), o papel de Direcção Regional da Cultura (da Secretaria Regional da Educação e Cultura)têm poderosamente contribuído para uma cultura identitária, na medida em que se estuda, em moldes científicos, uma realidade local, e se promove, com racionalidade e planeamento, a criação artística. António Machado Pires (2002)
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