HISTÓRIA A mais antiga cidade açoriana (1534), situada na costa sul da ilha Terceira a 38° 38? de latitude norte e 18° 4? de longitude oeste de Lisboa. O seu nome deriva da angra que lhe serve de porto e foi a causa da sua existência. A angra é formada no lado oriental por um pequeno promontório onde se ergue a fortaleza de S. Sebastião e, no ocidental, pelo monte Brasil. Esta pequena península é decisiva para a compreensão do êxito da povoação nascida à sua sombra, pois permite a existência de duas enseadas, a de Angra e a do Fanal, que tornam os dois pontos alternadamente abrigados de qualquer vento. O sítio onde se desenvolveu a urbe, ainda que pitoresco e gracioso, formando um escavado vale, está longe de ser propício à construção da povoação e foi preciso muito engenho e grande esforço para o adaptar a esse fim. O povoamento terá começado logo no início da abordagem da ilha (1450) no sítio do porto das Pipas, perto do promontório oriental, por Álvaro Vaz Merens, mas o verdadeiro nascimento da urbe organizada ter-se-á feito no morro sobranceiro ao porto, o Outeiro, cerca de 1460, com o início da construção de uma pequena fortaleza, o Castelo de S. Luís, depois conhecido por Castelo dos Moinhos e hoje desaparecido para dar lugar à construção do monumento à memória de D. Pedro IV, a Memória, um dos símbolos emblemáticos da cidade. A partir desse ponto, uma pequena acrópole, por ruas estreitas e tortuosas se alcançava o porto, traçado ainda hoje bem visível pela rua do Pisão, Garoupinha e Santo Espírito. As iniciais obras de adaptação e domínio da natureza foram no sentido da defesa e da subjugação da ribeira que caía abrupta do morro, formando um paul ou charco na zona plana em frente ao mar, de onde alcançava este.
A ribeira, canalizada em notável obra de engenharia, fazia mover os moinhos essenciais à subsistência e símbolo do poder senhorial dos capitães do donatário, seus únicos proprietários por lei. Nesse traçado inicial de Angra estavam demarcados os símbolos que lhe deram desde o início do povoamento a predominância. Um castelo de defesa, uma ribeira para moer o grão, o convento de S. Francisco e, pouco depois, o hospital (fundado por Corte-Real em 1492, e passado à Misericórdia em 1508), já perto do porto, com a sua alfândega e o cais na enseada, simbólico da abertura ao mundo. Este parece ter sido o sistema de organização de Álvaro Martins Homem, o verdadeiro pai de Angra, que os fados não permitiram vir a ser, em 1474, quando da divisão da ilha em duas capitanias, o capitão de Angra, sendo obrigado a ceder o mando e o local a João Vaz Corte-Real, o 1.º capitão do donatário de Angra e com quem a povoação se desenvolveu. A casa do capitão ainda se implantou em local poupo propício, mas à sombra defensiva da fortaleza de S. Luís.
Em época incerta, mas ainda no século xv, e possivelmente mais de facto do que de direito, organizou-se a vida municipal com a existência de uma Câmara com seus juízes e vereadores e consequente elevação do povoado a vila. Angra libertou-se deste esquema medieval e começou a invadir a zona mais plana à beira-mar, agora livre da força impetuosa da ribeira, cujos terrenos eram mais propícios ao nascimento de uma urbe traçada com vistas largas. Nesse local nasceu a igreja de S. Salvador, futura Sé, cujo primeiro vigário paroquial foi Fr. Luís Enes, em 1486. Estava traçado o destino da futura cidade, cujo crescimento parece então ter sido acelerado, o que faz compreender a abertura de novas ruas, largas e com traçado regular, renascentista, que ainda hoje a caracterizam. A paragem do navio de Vasco da Gama e a morte aqui do seu irmão Paulo, enterrado no convento de S. Francisco, no regresso da viagem à Índia, em 1499, fica como marco a atestar o préstimo do porto de Angra no apoio à navegação do Atlântico, o que muito contribuiu para a sua individualização no panorama histórico. A partir de 1527 instituía o rei uma Provedoria das Armadas, na pessoa de Pêro Anes do Canto, estrutura esta que perduraria até ao século xviii na família Canto e Castro, uma das mais importantes da cidade.
Em 1534, por carta de 21 de Agosto, D. João III elevou a vila de Angra a cidade, preparando-a assim para sede do bispado que Paulo III criou em 3 de Novembro desse ano. A nova cidade, já então sede do corregedor das ilhas (1503) e com a sua Alfândega elevada a directora das demais, pelo foral de 1499, ia-se tornando na capital das ilhas e a residência das novas autoridades criadas, como o provedor da Fazenda, a partir de 1536.
Ao longo do século xvi, a cidade foi crescendo e engrandecendo-se, criando-se uma segunda paróquia, em 1553, a de N. Sr.a da Conceição, e havendo-se fundado o seu primeiro convento feminino, S. Gonçalo, por Braz Pires do Canto, em 1542, por bula papal. Em 1577, por carta de 30 de Março, recebia a sua primeira mercê, os privilégios dos cidadãos do Porto. Para além do traçado urbano e alguns vestígios em velhos edifícios, nada resta hoje em Angra da arquitectura desse tempo. A cidade desde cedo estendera-se para a parte ocidental, numa pequena planície, formando um bairro de pescadores e ladeado ao norte por quintas. Era o bairro de S. Pedro a cujas portas se acabava o recinto urbano, junto da ermida de Santa Catarina. Portas de S. Catarina ou de S. Pedro, limite ocidental da urbe. Em 1572, pelo bispo D. Gaspar de Faria, era elevada a paróquia, a terceira da cidade, que se estendia por vasta zona suburbana. Para oriente também crescia a cidade ao longo de uma rua comprida e ocupada por casario de ambos os lados, a Guarita, na paróquia da Conceição, terminando nas portas de S. Bento. Já extramuros, foi criada em 1572 a freguesia suburbana de S. Bento. Estava praticamente delimitada a zona histórica da cidade de Angra, como ainda hoje a conhecemos.
O crescimento da cidade e a relevância do porto impuseram um novo sistema defensivo, uma vez que a velha fortaleza de S. Luís se mostrava incapaz de esconjurar os perigos e as cobiças vindas do mar. Com D. João III iniciou-se o estudo da defesa de Angra, por Tomás Benedito, e no reinado de D. Sebastião construiu-se a fortaleza de S. Sebastião (1555), o Castelinho, como é conhecido na gíria local, por oposição ao Castelo de S. João Baptista. O Castelinho e o forte de S. António, na ponta do monte Brasil, cumpriram sempre a sua função de evitar ataques de piratas a Angra. A causa da grandeza de Angra, a sua importância estratégica para a navegação no Atlântico e consequente acesso aos impérios coloniais trouxe-lhe a desgraça, no final do século xvi, durante a crise dinástica portuguesa de 1580.
Optaram os angrenses, comandados pelo corregedor Ciprião de Figueiredo, por apoiar a causa nacional de D. *António, prior do Crato, que encontrou em Angra um foco de resistência à invasão filipina. O rei D. António, derrotado no continente, retirou-se para Angra, que se lhe mantinha fiel depois de ter expulsado a primeira tentativa de domínio espanhol, na batalha da Salga, em Julho de 1582. Foram dias agitados estes da resistência, principalmente depois da derrota das tropas de D. António, na batalha naval de Vila Franca, e durante o governo na Terceira do conde Manuel da Silva deixado por D. António, que se retirou para França na esperança de voltar com tropas frescas. A cidade conheceu a desgraça de um governo ditatorial e a violência do despotismo, com execuções na Praça Velha, desde sempre símbolo e centro cívico da cidade e local dos paços municipais. Ficou no orgulho angrense esta primeira experiência de ser capital de Portugal, sede do portuguesismo e do nacionalismo exacerbado, esquecendo-se frequentemente do preço que pagou por esta ousadia. Inevitavelmente conquistada em 1583 pela força da esquadra do marquês de Santa Cruz, foi a cidade saqueada e imposto um governo militar na pessoa de Juan de Urbina. Em pouco mais de três anos conhecia Angra os horrores da ditadura, da conquista pela força, da guerra e do governo tirânico dos militares vencedores. Mas a sua imprescindibilidade no sistema imperial das Áustrias valeu-lhe a sobrevivência e a reorganização. Passados os dias da conquista a cidade renascia maior, com a necessidade de alojamento, à custa dos cidadãos, do exército espanhol. Um novo bairro, conhecido pelo quartel, acrescentava a cidade, na zona do limite das ruas sobre rocha, no fundo da baía e no sopé do monte Brasil. Nascia também, com a consequência do aumento da população, uma nova paróquia, em 1595, a última da cidade, Santa Luzia, a norte do limite citadino, na zona elevada. Estava completa a geografia urbana.
Feito o balanço final, o domínio filipino não se pode considerar desfavorável à cidade principalmente depois da carta de perdão de Filipe II de 14 de Julho de 1586, ainda que a principal construção dessa época tenha sido a formidável fortaleza de S. Filipe (depois da Restauração, de S. João Baptista), a maior construída fora da Europa e por muitos vista como o símbolo da opressão aos cidadãos e contra eles edificada. «Amassados os seus muros com o sangue e as lágrimas dos angrenses», dirá o cronista Maldonado. Com o Castelo, Angra acentuava o seu predomínio e acrescentava um novo cargo ao elenco das autoridades, o governador do castelo, futuro governador militar dos Açores. Ao terminar a centúria, Gaspar Frutuoso traça uma descrição encomiástica da cidade na sua grandeza e dedica-lhe o célebre epítemo de «Ocidental Escala do Mar Oceano». Pela mesma altura (1595), o holandês Linschoten desenhou o primeiro retrato da cidade com os seus bairros marítimos (S. Pedro e Corpo Santo), as freguesias (Sé, Conceição, S. Pedro, S. Bento e Santa Luzia), as ruas traçadas em esquadria regular a partir de um eixo central da Praça às Covas (rua da Sé), os castelos, os conventos, as igrejas (a Sé em construção a partir de 1570) e o colégio dos Jesuítas ainda sobre a rocha, alcandorado no alto da baía. Os Jesuítas, vindos para Angra em 1572, favorecidos por D. Sebastião e depois adeptos de Filipe II, viram crescer a sua influência no ensino (disputada aos Franciscanos) e construíram um novo colégio (1608) no centro da cidade, com pátio de estudos, e a Igreja de Santo Inácio, edifício que ainda hoje se destaca no panorama urbano. Chegada a hora da Restauração, em 1640, Angra conquistou novos títulos de glória e notoriedade no panorama açoriano e nacional. Heroicamente, com os capitães-mores por chefes, o da Praia (Francisco Ornelas da Câmara) e o de Angra (João de Bettencourt), os angrenses encurralaram o governador espanhol no seu castelo, que cercaram e conseguiram conquistar em 1642, sem ajudas externas às forças milicianas das ilhas. Desta aventura nasceu uma Angra governada pela aristocracia local, orgulhosa e resistente às tentativas centralistas de lhe imporem um governador-geral para as ilhas a partir do governo do castelo. Os juízes e vereadores da Câmara de Angra conseguiram do rei (1654) a promessa de não haver nunca governo geral nas ilhas; tomaram assento os seus representantes no primeiro banco das Cortes e falaram em nome dos Açores. A cidade recebeu os títulos de Mui Nobre e Leal. É a Angra das grandezas, das fidalgias e dos brasões que nos descreve Manuel Luís Maldonado na Fenix Angrense, em linguagem barroca. De forma mais simples, mas não menos laudatória, o jesuíta António Cordeiro também fala com entusiasmo da sua cidade natal. A cidade parecia atingir o zénite, com os seus três conventos masculinos (franciscano, refeito com grandeza em 1663, graciano, fundado em 1594, Santo António dos Capuchos, no extremo da cidade às portas de S. Bento, em 1643), o Colégio dos Jesuítas, os mosteiros femininos (S. Gonçalo 1542, Esperança 1557, Conceição 1606 e Capuchos 1661), todos construídos ou reconstruídos com pompa decorativa, principalmente nas igrejas. Igrejas paroquiais, com a Sé em predomínio, elevadas a par das conventuais, em lugares de destaque e no cimo de escadarias e ainda as ruas principais com solares imponentes, cabeças de morgadios (dos Bettencourtes, dos Cantos, dos Carvalhais, etc), ou casas de mercadores aparentando uma grandeza senhorial que as confundia com as da nobreza.
Ainda hoje pode ser esta a imagem da cidade para quem percorre as suas igrejas, os seus solares, as ermidas, os seus conventos e para quem se documentou com a leitura das páginas da História Insulana, que tão caracteristicamente descreveu o bulício citadino e o orgulho desmedido dos cidadãos mais destacados, cujas damas só saíam à rua com grande recato de suas pessoas e ostentação de sua posição social. Mas os fastos da cidade pareciam não acabar. Em 1766, ao fundar-se a Capitania-Geral dos Açores, a cidade foi escolhida para capital e nela se instalaram os capitães-gerais. Angra era então a capital das ilhas, não só de facto mas de direito, e nela se instalaram os tribunais (a Junta da Fazenda e a Junta da Justiça), o Batalhão Insulano, que amedrontava os possíveis protestos, e sobre todos eles, o capitão-geral, quase vice-rei, vivendo com pompa e circunstância régia, no velho edifício do Colégio dos Jesuítas, entretanto expulsos e agora transformado em palácio. Formou-se uma corte de elegantes, poetas aúlicos e cortesãos subservientes, com um certo sabor provinciano e antiquado, a avaliar pelos escritos sarcásticos de Ratton, de Fronteira, de Ségur, que vicissitudes várias fizeram passar pela ilha.
Mas a predominância de Angra e sobretudo os gastos excessivos e o consumo de rendas do arquipélago em benefício da cidade, aliados à contestação do poder dos capitães-gerais, provocavam reacções nas outras ilhas. Destacaram-se nos protestos os micaelenses, logo secundados pelos faialenses. Foi contra a Angra dos capitães-gerais e do poder centralizado e burocrático da capital dos Açores que, no início do século xix, se fizeram as revoluções liberais. Inevitavelmente, a imagem de Angra capital das ilhas viria a confundir-se com o poder do absolutismo régio, por mais que os angrenses progressistas protestassem contra tal identificação. O destino da cidade estava marcado.
Mais uma vez a posição geoestratégica da Terceira no mundo atlântico e a existência do poder militar transformaram a cidade no ponto nevrálgico da história de Portugal. Nas lutas dinásticas entre D. Pedro, imperador do Brasil, e D. Miguel, aclamado rei absoluto de Portugal, a cidade abraçou a causa liberal do primeiro. Os angrenses, muitos a contragosto, tiveram, com o morgado Teotónio de Ornelas Bruges (futuro conde da Praia da Vitória) e o cónego João José da Cunha Ferraz, a imagem de liberais apoiantes incondicionais dos direitos de D. Maria da Glória. A revolução liberal de 1828, desencadeada por Caçadores 5, aquartelado no Castelo, marcou os destinos angrenses nessa primeira metade do século. Vencida a esquadra de D. Miguel (1829), Angra transformou-se sucessivamente na sede do governo provisório, logo na da regência do Reino e, com o desembarque de D. Pedro IV, em 1832, na capital de Portugal. Assistiram os angrenses, talvez incrédulos, à majestade imperial residente no velho palácio dos capitães-gerais, aos bailes da corte, aos Te-Deum na Sé, aos decretos que transformaram o velho Portugal, ao levantar do exército libertador aquartelado nos conventos esvaziados de frades e freiras. Muitos aderiram entusiasmados à nova sociedade que nascia, outros resistiram e outros ainda, a maior parte decerto, acomodaram-se, mas o que ficou foi a imagem de Angra liberal, heróica e impoluta que tudo sacrificou para apoiar a causa justa da liberdade, numa atitude romântica, que em 1837 lhe valeu, como paga de sacrifícios e heroicidades, por proposta de Garrett desgostoso de aqui não ter nascido, o título de «Sempre Constante», a juntar ao de «Mui Nobre e Leal», e o acrescentamento de Heroísmo ao seu singelo nome de Angra, tudo isto coroado pela atribuição de Colar da Torre e Espada.
A Mui Nobre Leal e Sempre Constante cidade de Angra do Heroísmo atingia o píncaro das suas grandezas e parecia amedrontada e receosa de tanto fausto. Com razão, porque com D. Pedro e o seu exército embarcaram os dias de fortuna para a cidade. O movimento de descentralização política nas ilhas era imparável e Angra não havia sido a única a ajudar os liberais. O dinheiro dos capitalistas micaelenses e o apoio do estadista faialense António José de *Ávila tiveram como recompensa a libertação do poder político centralizado em Angra. A sonhada província dos Açores, com capital na cidade da Terceira, estabelecida em 1832, não teve futuro. O tribunal da Relação não veio para Angra e o predomínio da urbe só se manteve no bispado e no governo militar. Os distritos em 1836 fizeram de Angra do Heroísmo a capital do distrito central açoriano e os títulos e a Torre de Espada não foram suficientes para apetrechar a cidade com um porto artificial, como em Ponta Delgada e na Horta, ainda que o dinheiro da venda de bens nacionais a isso se destinasse. O distrito era em tudo o segundo e a cidade de Angra passou inexoravelmente à segunda categoria no novo sistema.
Orgulhosa e altaneira, passou a viver muito do passado e a experimentar, por sua vez, a dor de se sentir secundarizada, talvez arrependida das sucessivas revoluções e contra-revoluções em que se empenhou até 1847, ao ponto de Jerónimo Emiliano de *Andrade caracterizar os angrenses pelo gosto de tumultuar. A cidade não crescia e a riqueza dos seus cidadãos era insuficiente para novas construções significativas. Os novos burgueses limitavam-se a adaptar os velhos solares ou a construir no espaço do velho convento da Esperança, em plena rua da Sé, vendido em lotes, moradias confortáveis mas relativamente modestas. O Estado, sempre em crise, adaptava os velhos casarões conventuais às novas necessidades citadinas. O liceu, criado em 1844, partilhava com o Seminário (1862) o Convento de S. Francisco, o hospital e a Misericórdia ocupavam o da Conceição e o dos Capuchos destinava-se a cadeia. Só a Alfândega e a Câmara Municipal se instalaram em edifícios adrede construídos (1852 e 1849). As grandes casas senhoriais definhavam e mantinham a custo o seu orgulho nobiliárquico. O exemplo mais célebre é dos condes da Praia da Vitória, os heróis do liberalismo, que ao findar o século haviam passado da riqueza incontável à mediocridade. Aos velhos senhores angrenses restava a prosápia.
A própria burguesia, característica da nova era, mostrava-se incapaz de ombrear com os seus pares micaelenses e acompanhava a custo o surto industrial. As fábricas de álcool e tabaco, estabelecidas na cidade a partir de 1880, tiveram sempre uma posição secundária e se fizeram ricaços não conseguiram criar verdadeiramente ricos. Angra refugiava-se na imagem de uma aurea mediocritas, que passou a cultivar. Mesmo no domínio político, nas horas decisivas das lutas pela autonomia e livre administração dos Açores pelos Açorianos, os angrenses, ainda que com ideias interessantes, não conseguiram comandar o processo. Limitaram-se a usufruir das vantagens da lei e a instituir uma Junta Geral Autónoma (1898). Este panorama manter-se-á ao longo da I República e do Estado Novo, voltando a cidade a crescer só nos anos 50 do nosso século, com a abertura de novos arruamentos na zona da Pedreira, entre a velha Rua da Guarita e o mar. A cidade, apesar do surto dos lacticínios e das fábricas de transformação do leite em manteiga e queijo em que foi pioneira, passou a ser essencialmente um centro administrativo. Contudo, a partir da Segunda Guerra Mundial, quando presenciou a chegada de tropas continentais para prepararem a defesa dos Açores e assistiu, em 1943, ao desembarque dos Aliados, a caminho das Lajes, a cidade perdeu o predomínio militar com a saída do comandante militar para Ponta Delgada, mas conheceu um certo surto de progresso com a instalação em novos edifícios de serviços como o liceu, o tribunal, a biblioteca pública e o museu e um incontestável movimento cultural que lhe deu projecção regional, à volta do Instituto Histórico da ilha Terceira, do Instituto Açoriano de Cultura e das Semanas de Estudos, promovidas por este.
A partir de 1976, no novo sistema democrático de autonomia política e constitucional, Angra passou a ser a residência do ministro da República e a sede de três secretarias regionais (Educação e Cultura, Assuntos Sociais e Administração Pública), estabelecendo-se nela também um dos Pólos da Universidade dos Açores (Ciências Agrárias e Desenvolvimento animal).
No dia 1.1.1980, a cidade foi parcialmente destruída por um violento sismo, conseguindo, contudo, ainda que com perdas irreparáveis no seu património, reconstruir-se e renascer das cinzas, como a Fénix, que no século xvii Maldonado havia escolhido para símbolo de Angra, e estender-se a novos bairros, como o de Santa Luzia e do Desterro.
Reconhecendo o seu valor como conjunto arquitectónico notável e harmonioso e o seu sítio como muito significativo para a história da expansão europeia, a UNESCO classificou, em 1984, Angra do Heroísmo como património da humanidade, sendo este o último dos seus títulos de glória. Angra do Heroísmo é assim essencialmente história, mas também beleza e sobretudo o espírito dos seus cidadãos, gente um pouco contraditória, mas decidida a sobreviver com dignidade e sempre inclinada para a alegria de viver que mantém nas touradas, únicas no arquipélago, nas Festas de S. João, celebradas com bizarria desde o século xvi, e no culto ao Espírito Santo. Antero de Quental compreendeu bem a maneira de ser e o espírito dos angrenses na célebre carta a Oliveira Martins, onde definiu a cidade. Como ele, Raul *Brandão, Vitorino Nemésio e muitos outros, indígenas ou reinóis, deixaram-se seduzir por esta bela cidade. J. G. Reis leite (Set.1996)
HERÁLDICA Segundo Gaspar Frutuoso, no Livro Sexto das Saudades da Terra, a ilha Terceira de Jesus Cristo usava como armas, no século xvi, um crucifixo ou a cruz de Cristo crucificado, tendo o cabido da Sé escolhido o menino Jesus por armas e selo. Ainda no século xvi, numa provisão de 1578, transcrita por Ferreira Drummond, no vol. I, p. 17, dos Anais da Ilha Terceira, constata-se que o açor fazia parte das armas da cidade de Angra. O mesmo símbolo estava presente nas moedas mandadas cunhar por D. António, prior do Crato, dado que tem no anverso por distintivo um açor junto da cruz da Ordem de Cristo. No século xvii, no nobiliário genealógico e histórico intitulado Thezouro da Nobreza, de Francisco Coelho, as armas da Terceira são descritas como uma cruz vermelha em campo de prata, com dois açores, um de cada lado na base da cruz. Eduardo Campos de Azevedo Soares, no Nobiliário da Ilha Terceira, apresenta um brasão da cidade, que se supõe ser da época liberal, com a seguinte composição: «Um escudo aquartelado: no 1.º quartel, em campo vermelho, um braço de prata armado com uma espada na mão; no 2.º quartel, em campo de prata, um Açor de sua cor com as azas abertas, e assim os contrários; e sobre tudo um escudete com as quinas de Portugal; em remate uma coroa ducal, e por timbre, o braço armado das armas.» A distinção concedida por D. Maria II à cidade de Angra pela participação nas lutas liberais obrigou a alterações no brasão. A cidade passou a designar-se Angra do Heroísmo, recebeu o colar da Torre e Espada e foi acrescentado ao atributo de Mui Nobre e Leal Cidade, concedido por D. João IV, o título de Sempre Constante. As armas da cidade passaram a ter a seguinte constituição: «Um escudo esquartellado, tendo no primeiro quartel, em campo vermelho, um braço de prata armado com uma espada na mão; no segundo quartel, em campo de prata, um Açôr de sua côr; e assim os contrários e sobre tudo, um escudete com as quinas de Portugal, e em remate uma Coroa mural; e por timbre o braço armado das Armas, em roda do escudo uma fita azul ferrete sahindo da parte inferior da Coroa com a tenção das letras de ouro = Valor, Lealdade e Mérito = tendo pendente a insignia de Grão Cruz da Antiga e Muito Nobre Ordem da Torre e Espada do Valor, Lealdade e Mérito.» A portaria n.º 9395, de 7 de Dezembro de 1939, alterou este brasão concedido por D. Maria II, após o parecer da secção de heráldica da Associação de Arqueólogos: «Armas: escudo de prata, tendo ao centro a cruz da Ordem de Cristo com dois açôres de sua côr, voltados um para o outro, pousados junto à base da cruz, um de cada lado; coroa mural de cinco tôrres e por timbre um açor; o escudo acompanhado lateralmente e no pé pela banda da grã-cruz da Ordem da Tôrre e Espada, com a legenda a ouro sôbre a banda ?Valor, Lealdade e Mérito? e a insígnia da Ordem pendente da fita. Listel azul com os dizeres a negro ?Cidade de Angra do Heroísmo?. Bandeira: branca, com as armas, cordões e borlas de ouro azul; haste e lança douradas. Selo: circular, tendo ao centro as peças das armas, sem indicações de esmaltes, e em volta, dentro de círculos concêntricos, os dizeres ?Câmara Municipal de Angra do Heroísmo?».
No ano seguinte, a portaria n.º 9525, de 14 de Maio, alterou novamente a heráldica da cidade que se mantém até ao presente. Armas: de prata com um castelo de vermelho aberto e iluminado de ouro, assente num contrachefe de quatro faixas, duas de verde e duas de prata. Em chefe um açor de sua cor, voante, tendo nas garras uma quina de Portugal. Coroa mural de prata de cinco torres. O escudo acompanhado lateralmente e no pé pelo colar da Ordem da Torre e Espada. Listel branco com os dizeres «Cidade de Angra do Heroísmo» de negro. Bandeira: quarteada de quatro peças de amarelo e quatro de vermelho. Cordões e borlas de ouro e de vermelho. Haste e lança douradas. Selo: circular, tendo ao centro as peças das armas, sem indicação dos esmaltes. Em volta, dentro dos círculos concêntricos, os dizeres «Câmara Municipal de Angra do Heroísmo» de negro. Carlos Enes (Set.1998)
DEMOGRAFIA Em termos demográficos, sublinharemos a caracterização evolutiva, fundamentalmente assente no volume, correspondente ao espaço que a cidade ocupa nos nossos dias, salientando os valores das freguesias do actual traçado citadino: Sé (Santíssimo Salvador), N. Sr.a da Conceição, S. Pedro, Santa Luzia e S. Bento.
Sobre esta última não existiu, ao longo dos séculos, consenso sobre a sua inclusão na malha urbana angrense. As suas características geográficas proporcionaram, ao longo do tempo, a existência de parcelas marcadamente urbanas - aquelas junto de Santa Luzia e, portanto, da cidade - e outras que se classificam notoriamente de rurais ou suburbanas. Daí algumas referências em situar esta freguesia «extramuros» (Costa, 1867: 57-59) ou «n?um dos extremos da cidade, com uma população que é na maior parte rural» (Telles, 1889: 43 e 140). Mesmo as corografias exaradas no século xix continuam a dividir-se na questão da inclusão ou não da freguesia de S. Bento no espaço citadino. Contudo, o Código Administrativo de 1842 e as Leis de 21.5.1884 e de 24.7.1885, relativos à organização administrativo-territorial, legalizam a sua integração. Apesar de tudo, no século xx, perduram as hesitações. No último censo (1991) S. Bento é excluída da cidade, apesar de uma deliberação camarária apontar em sentido inverso desde 1970 (Deliberação da Câmara Municipal de Angra do Heroísmo, 12.2.1970).
Saliente-se que a freguesia de S. Bento ocupa uma área de 8,66 km2, correspondendo a cerca de 48 % da área a considerar-se incluída na cidade, e que as freguesias da Sé, N. Sr.a da Conceição, S. Pedro e Santa Luzia ocupam, no seu conjunto, apenas uma área de 9,36 km2.
Para os séculos xv e xvi não dispomos de indicações precisas sobre a população e dimensão de Angra. Indiscutível, sem dúvida, foi o progresso de Angra ao longo dos séculos xv a xvii, em que conheceu assinalável desenvolvimento económico devido ao tráfego marítimo que no seu porto encontrava apoio para o prosseguimento das mais variadas viagens. Este incremento terá conduzido, então, a um surto populacional que esteve na base da elevação de Angra a cidade, em 1534, e à sua posterior expansão como capital do arquipélago.
Em termos populacionais, a situação, ao longo dos séculos xv e xvi permanece difusa relativamente aos quantitativos. Em 1568 a cidade seria composta por mais de 400 fogos (Arquivo dos Açores, 6: 186-190). Para os finais do século (1580-91), Gaspar Frutuoso indicou existirem cerca de 2400 moradores distribuídos pela cidade e seus arrabaldes: «na freiguesia [sic] da Sé mais de mil, e na de Nossa Senhora da Conceição ... novecentos, ..., e na de S. Pedro quatrocentos ..., e na de S. Bento e Val de Linhares perto de cento» (Frutuoso: 26). Contudo, o próprio Frutuoso acaba por afirmar mais tarde que a cidade «tem mais de três mil vizinhos». Estas imprecisões na determinação dos quantitativos populacionais acentuam-se quando não dispomos de uma correcta interpretação para os conceitos utilizados nas fontes - moradores, vizinhos e fogos -, o que tem conduzido a tratamentos diversificados. Maria Olímpia da Rocha Gil (1979), por exemplo, assumiu os 2400 moradores de Frutuoso como referentes a fogos, estimando uma população de cerca de 8400 habitantes, que a autora obteve através da utilização do índice 3,5 habitantes/fogo. João Marinho dos Santos (1989) segue igual interpretação.
O mesmo se passa no século seguinte, em que se regista uma notória insuficiência de informação estatística e de qualidade que demanda uma ponderada reflexão. Fr. Agostinho de Mont?Alverne, em 1695, aponta uma urbe com 2131 fogos habitados por 7393 almas. A utilização do conceito alma deixa uma vez mais em aberto uma séria dúvida em saber se se trata de almas de confissão, de almas de comunhão ou de ambas e se naquele cômputo foram ou não integrados os menores. Maria Olímpia da Rocha Gil (1979) aceita estes valores como correspondentes à globalidade dos habitantes de Angra.
O confronto dos dados apontaria, assim, no sentido de uma diminuição populacional - uma taxa de variação negativa de 12 % - ao longo do século xvii.
Só na segunda metade do século xviii começam a ser produzidos com alguma assiduidade «mapas demográficos» que permitem uma leitura mais fiável dos quantitativos populacionais. Os primeiros mapas realizados continuam a assentar em informações de índole religiosa, deixando de fora, quase sempre, uma fatia considerável da população, relativa aos menores de 7 anos de idade e a todos aqueles que, porventura, não partilhavam dos princípios cristãos. Contudo, a partir de 1771 surgem indicações que apontam para metodologias de recolha de dados que parecem dar maior credibilidade aos valores sobre a população açoriana. O aumento de cerca de 1600 efectivos, registado entre 1770 e 1776, terá resultado mesmo das novas formas de elaborar os numeramentos populacionais.
Em termos globais, as freguesias acompanharam o evoluir da tendência observada na globalidade da cidade. No entanto, é possível notar alguns comportamentos diversificados. Por exemplo, o recuo no volume de efectivos registado, entre 1776 e 1777, na cidade correspondeu a um decréscimo de habitantes em 4 freguesias mas não afectou a de N. Sr.a da Conceição, que continuou com uma tendência de crescimento. Situação inversa encontramos, por exemplo, entre 1780 e 1781. Na década de 60 de Setecentos encontramos também na freguesia da Sé algumas particularidades que derivam das dinâmicas político-militares implementadas pela Coroa. Salienta-se, nesta altura, a fixação em Angra do 2.º Regimento do Porto, comandado pelo tenente-coronel António Freire de *Andrade, que fez aumentar o efectivo populacional da Sé em 724 indivíduos do sexo masculino, com naturais repercussões no evoluir deste agregado urbano.
Esse factor externo veio reforçar, sem dúvida, a tendência de crescimento que se fez sentir até 1776. Depois de um aumento reduzido - 0,09 % ao ano - entre 1695 e 1766, seguiu-se um outro, mais acentuado, até 1776, com uma taxa de crescimento anual médio de 3,04 %. Este acréscimo deve-se também, em grande parte, à recolha mais eficaz da informação que passou a contemplar os menores e que teve nítidos reflexos na quantificação dos efectivos da cidade. Convém ainda relembrar que o reduzido número de efectivos em análise sofre oscilações muito significativas sempre que algumas dezenas ou centenas de habitantes abandonam, naturalmente ou por conveniência, o espaço em que habitavam. A diminuição de 692 habitantes registada entre 1776 e 1777 é disso claro exemplo ao traduzir-se numa taxa de crescimento anual médio negativa de 6,51 %.
O período 1776-79 é o primeiro em que se regista uma contracção na evolução populacional da cidade, seguida, nos primeiros anos da década seguinte, por uma ligeira recuperação de efectivos. A partir de então, e até 1793, pelo menos, assiste-se a um novo decréscimo. Estas oscilações verificadas no último quartel do século xviii encontram correspondência com movimentos similares quer na ilha Terceira, quer no arquipélago.
A primeira metade do século xix é marcada por uma notória tendência de crescimento - 0,33 % -, que se acentuará ainda entre 1849 e 1864 com um ritmo anual de 0,86 %. Desde então assiste-se a um longo período de decréscimo que se estende até 1911, com uma variação percentual negativa de cerca de 13 pontos. Neste contexto sobressai o período 1900-11, onde se verifica uma diminuição de 866 habitantes.
A partir de 1911, observa-se uma evolução ascendente até 1970, com especial relevância nas décadas de 30 a 50 em que se registam taxas de crescimento anual médio superiores a 1 %. Na década de 60 verifica-se um abrandamento nesta tendência ascendente, seguida de um acentuado decréscimo entre 1970 e 1981, correspondente a uma taxa de crescimento anual médio negativa de 2,57 % e, em termos absolutos, a uma redução de 4552 habitantes. Este «esvaziamento» ocorre paralelamente ao que se faz sentir no arquipélago, mas deve-se, sobretudo, ao sismo de 1 de Janeiro de 1980, que teve repercussões na própria habitabilidade do espaço citadino - cerca de 1500 casas ficaram em mau estado ou em ruína. Das freguesias citadinas só a de S. Pedro regista um aumento dos seus efectivos populacionais.
Entre 1981 e 1991 a cidade volta a crescer em termos demográficos, a um ritmo anual médio de 0,95 %. Artur Boavida Madeira (Mai.1997)
ARQUITECTURA Uma arquitectura insular, muito própria do arquipélago (no uso da pedra vulcânica em contraste com as superfícies brancas de caiação), mas igualmente muito filiada em modelos e tipologias do Continente, preenche e dá imagem ao conjunto urbano de Angra, ao longo do seu período de formação. Ver Angra do Heroísmo. Urbanismo.
Já referidas, a Sé e a igreja do Colégio são exemplos de uma arquitectura de conclusão seiscentista, filiada em modelos anteriores, da Estremadura e do Alentejo. Aqui, uma estilística de derivação maneirista é enquadrada pela simplicidade volumétrica da arquitectura «chã». Horta Correia compara a Sé de Angra com a igreja da Graça de Setúbal (de 1565-70) e com Santa Catarina dos Livreiros, de Lisboa (de 1572). Yves Bottineau, por seu turno, compara a fachada e escadório do Colégio com o homólogo edifício de Salvador da Bahia, no Brasil (hoje Sé). Mas são de referir ainda outros templos, dentro do mesmo padrão de simplicidade formal: a igreja de S. João Baptista, na fortaleza (1642); o conjunto dos Franciscanos; o de S. Gonçalo (reformado em 1730-50); a delicada obra da Igreja dos Remédios, na Conceição.
No campo da arquitectura popular, um legado importante é representado pelos inúmeros volumezinhos dos Impérios do Espírito Santo, bem dentro da cidade (Outeiro, rua 5 de Outubro) - mostrando uma vitalidade vernácula e religiosa, ainda hoje bem viva no coração de Angra. No quadro da arquitectura de habitação, Angra contém solares notáveis nos arredores (Madre de Deus), e mesmo no centro urbano («Casa do Capitão», de gracioso alpendre; casa de D. Violante do Canto, com os tipicamente ilhéus «aventais em bico», de pedra; solar do largo da Sé, datado de 1710; e a portentosa casa «barroca» da esquina da rua Direita com a «Praça Velha». Mas a cidade também apresenta uma arquitectura anónima de grande coesão e unidade, desde as casas térreas de janela-porta-janela (Alto das Covas; rua dos Canos Verdes), até aos conjuntos de séries de fachadas esguias de 3 pisos, de vãos de lintel curvo, e avarandados com «reixas» de madeira (rua de S. Pedro, rua do Galo). Mesmo a arquitectura recente, dos séculos xix e xx, tem bons exemplos na cidade, desde o palacete romântico da Conceição (ao lado da igreja dos Remédios) e o teatro à Sé, até aos prédios «modernistas», como o do actual Banco Português do Atlântico (pelo micaelense António Vasconcelos), na rua da Sé, dos anos 30, e o das Caixas de Previdência (actual Centro Regional de Segurança Social), por Chorão Ramalho, dos anos 70 - e com muitos exemplos de recuperação e reconstrução, já datados dos anos 1980-90 (Caixa Geral de Depósitos, na praça da Restauração). (Nov.1995)
URBANISMO Angra do Heroísmo representa em termos urbanísticos e arquitectónicos o mais precioso conjunto dos Açores. Mercê disso está classificada pela UNESCO (desde 1983) como Património Cultural da Humanidade. A cidade foi planeada precocemente, em plano de que se desconhecem origem e autor, mas com a provável acção ou influência da Ordem de Cristo, como sucedeu com Tomar, local da sua sede na Península, cidade desenvolvida em retícula na primeira metade do século xv. Não esqueçamos, neste contexto, as frequentes visitações ordenadas pelos mestres da ordem ao arquipélago - cuja «doação da espiritualidade» lhes competia - entre 1460 e 1534. Mas igualmente serão de referir outras influências possíveis, como as da «ciência» dos náuticos, marinheiros e comerciantes, que lhe deram corpo na mesma fase histórica. O crescimento urbano fundamental da urbe ocorreu ao longo das décadas de transição do século xv para o xvi (obra vasta, balizada pela elevação a vila em 1478, e pelo foral de cidade e bispado em 1534). Como resultado, Angra exibe ainda hoje o que podemos designar por uma «geometria orgânica», muito à maneira da típica cidade portuguesa da Expansão. De facto, assenta fundamentalmente numa retícula cuja forma está pragmaticamente adaptada à variedade de relevos que a define e que articula o hinterland rural com a baía de funções portuárias. A sua estrutura e tecido urbano essenciais - fixados já quase em definitivo no final de Quinhentos, como prova a detalhada representação por Linschoten (desenhada em 1589 e gravada em 1595) - conseguiram preservar até à actualidade, num todo equilibrado e belo, os valores do espaço arquitectónico medievo-renascentista e barroco, em articulação com um sentimento construtivo de carácter vernáculo e simplicidade formal. Pode destacar-se ou enumerar-se em concreto a diversidade de valores urbanos e arquitectónicos de Angra, para além do seu «sabor a sal do vento», que Nemésio imortalizou... Assim, podemos considerar quatro fases no crescimento urbano da cidade, bem analisáveis na planta executada pelo sargento-mor José Rodrigo de Almeida, datada de 1805, existente no Gabinete de Estudos Arqueológicos de Engenharia Militar de Lisboa: 1. uma estrutura alcantilada (implementada possivelmente entre 1460 e 1474 por Álvaro Martins Homem), no alto da Memória, junto ao Castelo de S. Luís, e descendo ao longo da Ribeira dos Moinhos - de expressão ainda medieva e defensiva; 2. o desenvolvimento linear desta estrutura até ao mar (aproximadamente entre 1474 e o final do século, por provável acção de Corte Real), e seguindo o eixo perpendicular ao mar, pelo convento Franciscano / rua da Garoupinha / rua do Santo Espírito -, exprimindo já um desejo de aproximação cívica e comercial com o mar; 3. a fase de «lançamento» da retícula de quarteirões regulares - no que é hoje o ex-libris da cidade - para poente, desde a «Baixa» e o sítio da «Praça Velha» ou da Restauração, a rua Direita (antiga de Lisboa) e o largo da Sé (provavelmente ao longo do primeiro terço do século xvi). Esta expansão, assente em ruas largas e rectilíneas, é estruturada à volta das principais praças e largos: da Matriz, depois Sé (edificada esta entre 1570 e 1642); da «Praça Velha», com a Casa de Câmara (de 1611, reconstruída em 1849-79); da Misericórdia e seu hospital (século xviii), frente ao mar; e do Colégio jesuíta (edificado em 1658-73); 4. finalmente, e como complemento desta expansão «em malha», e sua consolidação urbana, a retícula estender-se-ia até ao convento de S. Gonçalo e ao Alto das Covas, do lado ocidental (embora com gabarito de ruas mais estreitas e irregulares) - sem deixar de se referir alguma expansão também para nascente, mais tímida ou limitada, até à Conceição e aos Remédios, delimitada esta pelo eixo da rua do Galo. Estas duas «fronteiras» da cidade articulavam-se com as duas fortificações, de cada lado da baía: a de S. Sebastião (começada em 1574), e a de S. Filipe (depois de S. João Baptista), erguida em 1591. Note-se ainda a contemporaneidade da retícula de Angra com a do Bairro Alto lisboeta, similar igualmente na escala e no padrão urbanístico. Nos séculos seguintes, apenas alguma expansão arrabaldina se verifica, sempre polarizada em torno dos conventos e igrejas: à volta de S. Pedro, a oeste; de S. Bento, a nascente. Como vias principais ordenadoras (herança tradicional das ruas cruzadas em ângulo recto, desde os tempos do urbanismo romano), e numa visão de síntese do conjunto urbano, temos, de norte a sul, a rua Direita/Lisboa; e, de nascente para poente, a rua do Galo, continuada na da Sé, esta um autêntico «cordão» de atravessamento da cidade, ligando-a à restante ilha e às freguesias. Só muito recentemente, e sobretudo depois do surto construtivo pós-terramoto de 1980, surge novo avanço de urbanização, já com características suburbanas; mas a imagem do centro histórico permanece indelével e plena de carácter. José Manuel Fernandes (Nov.1995)
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