TOPONÍMIA Também chamada de baía de Angra, fica situada na costa sul da ilha Terceira, limitada a oriente pelo ilhéu das Cabras e baixios anexos, e a ocidente pelo monte Brasil. Abrigada e ampla (daí o nome de Angra), funda, nela se instalou o porto de Angra do Heroísmo, com cais acostável e bons fundeadouros ao largo. M. Eugénia S. Albergaria Moreira (Jun.1997)
HISTÓRIA Enseada ou angra (>ancra, >anchora) aberta a sueste na costa meridional da ilha Terceira, definida a nascente pelo esporão rochoso onde se acha a fortaleza de S. Sebastião e a poente pela formação vulcânica que forma a península do Monte Brasil. Constituía um bonito porto natural, abrigado dos ventos dominantes do quadrante oeste e com ancoradouro em fundos de areia, consequência das muitas águas doces e correntes que para ela convergiam. A natureza do terreno envolvente, cortado profundamente a meio por uma torrente e com arribas caindo quase a prumo, terá levado Jácome de Bruges, primeiro capitão do donatário na ilha Terceira (1450) a preferir fixar-se para os lados da Praia, na costa oriental da ilha e onde, ademais, havia melhores terrenos aráveis. Deixou pois aquele espaço a Álvaro Martins Homem que se presume haver vindo com ele para os Açores. Este, percebendo estar ali o embrião de uma urbe marítima e com futuro, empreendeu a obra que dotaria a povoação nascente com uma autêntica infra-estrutura industrial: a levada da Ribeira dos Moinhos, ao longo da qual se implantaram moinhos de rodízio, curtimentas e um pisão de linho ou de pastel. Junto à boca desta ribeira ficou um varadouro com bicas de água potável. A nascente e à beira da rocha do Corpo Santo instalou-se um matadouro. Do lado oposto levantaram-se as casas da alfândega. E poucos metros a norte, a irmandade do Espírito Santo fundou um hospital (1492).
Tudo isto tinha relação directa ou indirecta com a função portuária. Ainda no século XV a angra apoiava já a «volta da Mina» e expedições pesqueiras navegando para a Terra Nova ou do Bacalhau. No verão de 1499 Vasco da Gama, regressando da Índia, demandou-a com seu irmão Paulo moribundo e que em terra viria a morrer. Pedro de Alvarado, adelantado da Guatemala, iniciou em 1536 as escalas das armadas vindas da América espanhola. O século XVI faria da ilha Terceira a «universal escala do mar do poente», no dizer de Gaspar Frutuoso, pelo movimento inusitado desta baía. O que arrastou também os perigos da pirataria atlântica e até conflitos internacionais. Por via de tudo isso se criou a Provedoria das Armadas e Naus da Índia (1527) com funções de apoio à navegação atlântica e frota própria, surgindo também um primeiro aparelho defensivo da frente marítima. No fim desse século existiam já o cais chamado do Porto de Pipas ? uma obra do Provedor das Armadas ? com seu muro e porta. Depois, a arriba de Cantagalo defendia a terra até à boca da Ribeira dos Moinhos. A partir daí, era novamente a muralha com as bicas de água, o cais principal e, acima dele, o torreão onde se abria a «porta do mar». A seguir, o muro da alfândega até ao estaleiro da Prainha. Em seguida era de novo a costa alcantilada incluindo os contrafortes do Monte Brasil. Este aspecto da frente marítima de Angra durou, pelo menos, 200 anos, enquanto, por detrás dela, a cidade aumentava e se enobrecia. A conquista espanhola de 1583 culminou três anos de tentativas e resistência com envolvimento internacional que atestam o valor estratégico que a baía de Angra representava, fosse para a coroa de Portugal e de Espanha, fosse para os inimigos que começavam a disputar-lhes a primazia nos oceanos. Angra deveu ao século XVII o principal das características monumentais que lhe haviam faltado até então, efeito da prosperidade decorrente do intenso movimento portuário implicado pelas carreiras da Índias e do Brasil e, sobretudo, pelo oiro e prata que nela circulavam, provindos da América espanhola. A primeira manifestação desta monumentalidade foi o castelo de S. Filipe do Monte Brasil. O seu recinto de 3,5 km2 ? com saídas privativas para o mar ? representava o reconhecimento daquele alto valor estratégico potenciando o aparelho defensivo do porto, já assegurado desde 1570 pelo castelo de S. Sebastião, sobre o flanco oriental da baía, e pelos três fortes erguidos em 1581/82 na orla oriental do Monte Brasil. No processo da Restauração nos Açores (1641/42) a baía de Angra fechou-se aos auxílios espanhóis para a fortaleza cercada e afinal rendida pelos locais após um ano de sítio. O fim das escalas das Índias e os condicionamentos postos pela coroa portuguesa nas viagens do Brasil afectaram negativamente o movimento portuário. As defesas portuárias de Angra, desenvolvidas a partir da 2ª metade do século XVI, haviam correspondido por inteiro aos fins a que se destinavam, pois a cidade jamais foi entrada à força pelo seu porto, repelindo ou desmotivando atacantes, fossem eles espanhóis ou miguelistas, fossem corsários como Drake, Cumberland, Essex ou Duguay-Trouin. Mas o grande movimento internacional e de cargas ricas desaparecera e com ele os maiores riscos de um ataque marítimo. O terramoto de Lisboa de 1 de Novembro de 1755 originou um tsunami que atingiu violentamente os Açores. Relatos da época referem que em Angra o mar cresceu pela cidade adentro, «galgando o portão dela» e atingindo a praça do município e, no refluxo, «levou as muralhas» da alfândega e as do matadouro, deixando os navios a seco ou com as âncoras a descoberto e arrastando todos os barcos ali varados.
A Capitania-Geral dos Açores foi criada (1766) com sede em Angra porque, reduzida embora, a relevância portuária subsistia, compensada pela realidade que era o castelo do Monte Brasil, já então chamado de S. João Baptista. A frente marítima continuava porém desfigurada pelos efeitos do tsunami de 1755, pelo que Antão Vaz de Almada, primeiro capitão-geral, ordenou a reedificação do cais e da zona circundante. O projecto (de João António Júdice) é típico da época pombalina e, executado, alterou significativamente a face que a cidade apresentara até à devastação de 1755. O torreão em que se abrira outrora a porta do mar desapareceu sob uma esplanada contígua ao edifício da alfândega. Dela se descia para o cais por uma escadaria dupla e rematada ao alto por dois arcos com portas. O conjunto procurava já um efeito monumental, harmonizando-se com a nova igreja da Misericórdia, que substituíra o anterior templo quinhentista. As obras efectuadas por iniciativa do capitão-geral não resolveram todavia o problema fundamental do porto, carente desde sempre de um molhe de abrigo que jamais teve. Ainda assim, aquela nova face marítima de Angra iria durar praticamente outros 200 anos, vindo até aos nossos dias. Entrementes já outros portos dos Açores cresciam em importância e capacidade de resposta às necessidades e procura da navegação contemporânea. Quando a ilha Terceira foi baluarte único do liberalismo português, a baía de Angra conheceu ainda um movimento especial e fugaz, sendo ali que se hasteou pela primeira vez em Portugal a nova bandeira azul e branca do constitucionalismo (19 de Outubro de 1830). Dela partiram as expedições que reduziram as demais ilhas dos Açores à causa de D. Maria II e o núcleo básico do «exército libertador» do continente português (1832). Mas no século XIX era já notória a proeminência do porto da Horta, em grande parte graças à procura por navios baleeiros norte-americanos, bem como o de Ponta Delgada, cuja antiga vocação exportadora crescera com o negócio da laranja. Esta tendência não era alheia à actividade de estrangeiros ali fixados e aos quais se deve a percepção das novas demandas criadas pela navegação a vapor e o subsequente equipamento daqueles portos com depósitos de carvão, que o de Angra nunca possuiu. A competição entre os portos do Faial e de S. Miguel, personificada pelas famílias Dabney e Bensaúde, acentuaria uma dinâmica perante a qual Angra se apagou. Dela resultaria o início das obras para um molhe artificial em Ponta Delgada (1862) e para outro na Horta (1876). A baía de Angra, que nunca deixara de ser perigosa, mostrava-se cada vez mais acanhada para as exigências da navegação moderna e até a sua profundidade contrariava obras de major fôlego. Arranjos efectuados durante o século XIX permitiram ligar por caminho directo os três cais existentes, unificando finalmente um aparelho portuário ao tempo reduzido a pouco mais que servir a carreira comercial de Lisboa e a pequena cabotagem inter-ilhas. Posteriormente o cais da alfândega sofreu outras modificações, sempre porém insuficientes e que viriam a tornar-se obsoletas quando, nos anos 60 do século XX, o cais do Porto de Pipas se ampliou como molhe acostável para navios de pequena tonelagem e depois, já na década de 80, ao construir-se, na Praia da Vitória, o novo porto da ilha Terceira.
Assinale-se ainda que a fundamentação dada pela UNESCO para incluir a zona central de Angra do Heroísmo na lista do Património Mundial - na sequência da primeira proposta portuguesa que para o efeito se apresentou naquele organismo das Nações Unidas - releva que «na História das explorações marítimas que permitiram a comunicação entre as grandes civilizações da África, da Ásia, da América e da Europa, Angra do Heroísmo detém um lugar eminente: este porto da ilha Terceira, nos Açores, serviu de elo de ligação, durante perto de três séculos, entre a Europa e os Novos Mundos.» Já no fim de 1996, obras municipais de saneamento básico puseram a descoberto, junto ao cais da alfândega, o resto das construções soterradas pelos trabalhos ali feitos no século XVIII e das próprias escadas setecentistas, também mutiladas e cobertas por arranjos posteriores. A opção entretanto tomada pelo porto da Praia da Vitória e a construção de uma marina de recreio, acompanhadas de medidas despoluidoras das suas águas, votam presentemente a baía de Angra a fins essencialmente culturais, turísticos e de lazer. Os seus fundos conservam restos de dezenas de naufrágios com valor arqueológico reconhecido. Neste contexto e por expressa definição do Governo Regional procurou-se acautelar os restos das antigas construções recentemente descobertas, em ordem a conciliar as novas estruturas do presente e do futuro com o testemunho do passado da cidade e da sua histórica baía. As vicissitudes da antiga função marítima, à qual Angra devera o seu nascimento e boa parte da sua História, incluindo um papel de grande relevo na implantação do regime liberal português, conduzem a um natural paralelo com a cidade do Porto, também nascida de uma função portuária que igualmente lhe deu o nome. Nome que por sua vez nela permaneceu, mesmo com aquela função transferida para Leixões. Das duas ficaram, com a recordação de outro Portugal projectado no mundo, paisagens urbanas únicas e uma História irrepetível para sempre nelas expressa, o que levou à classificação dos seus conjuntos mais típicos como Património cultural da Humanidade. Álvaro Monjardino (Dez.1999)
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