Os Açores apresentam uma das mais precoces, continuadas e sustentadas tradições etnográficas regionais portuguesas. Remontando a finais do século xix, essa tradição etnográfica tem oscilado entre a descrição minuciosa de aspectos localistas do viver popular açoriano ? à escala da ilha, do concelho e da freguesia ? e as sínteses interpretativas dos factores de unidade e diversidade antropológica do arquipélago. No primeiro caso, e para além dos nomes mais conhecidos de Luís da Silva Ribeiro (1982, 1983) e Carreiro da Costa (1978, 1989, 1991), destacam-se, entre outros, autores como Leite de Ataíde (1974), Mendonça Dias (1915-27, 1944-48), Armando Côrtes-Rodrigues (1968, 1982a e (b) ou Frederico Lopes (1980). No segundo caso, merecem particular relevo as reflexões pioneiras de Arruda Furtado (1884), o ensaio «clássico» que nos anos 30 Luís da Silva Ribeiro ? no seguimento dos escritos de Vitorino Nemésio ? consagrou à interpretação antropológica da «açorianidade» (1983a) ou, por fim, as sínteses de Carreiro da Costa (1978: 245-86).
A par desta tradição etnográfica local, os Açores constituem também uma área frequentada com alguma assiduidade por etnógrafos, antropólogos e outros especialistas das ciências humanas e sociais exteriores ao arquipélago interessados na descrição e interpretação de aspectos diversos da cultura popular açoriana. Entre os etnógrafos e antropólogos, Leite de Vasconcelos (1926) e Ernesto Veiga de Oliveira e os seus colaboradores (1965, 1986, 1987) são porventura os exemplos mais conhecidos. Mas devem ser também mencionados os casos mais recentes de Mari Lynn Salvador (1981, 1985), João Leal (1994) e Rui Sousa Martins (1989, 1993), este último com um importante papel de dinamização ? a partir da Universidade dos Açores ? dos estudos etnográficos e antropológicos no arquipélago. No segundo caso, os nomes que vêm imediatamente à memória são os de Orlando Ribeiro (1955), Raquel Soeiro de Brito (1955), Carlos Alberto Medeiros (1987) e António Brum Ferreira (1987), no domínio da geografia humana, mas não se devem esquecer as importantes recolhas de Artur Santos (1956-65) e os estudos de Bettencourt da Câmara (1980, 1984) na área da etnomusicologia, as pesquisas de Joanne Purcell (1970, 1987) e Costa Fontes (1980, 1983 a e (b) no domínio da literatura tradicional, ou o trabalho de investigação de Breda Simões (1987) relativo às Festas do Espírito Santo.
Esta continuada tradição de interpelação da cultura popular do arquipélago tem sido particularmente produtiva relativamente a certos temas precisos, entre os quais se incluem, por exemplo, os instrumentos, técnicas e saberes relativos à agricultura, criação de gado e outras «indústrias» tradicionais; os padrões dominantes do povoamento rural e a arquitectura tradicional; certas constantes da organização familiar e social; representações e práticas associadas ao universo do ritual (com particular destaque para as que dizem respeito às Festas do Espírito Santo); e, por fim, a literatura oral e certos géneros mais representativos da música tradicional.
Uma parte dos conhecimentos acumulados em torno de cada um destes temas está inevitavelmente datado pelas transformações profundas que os Açores têm vindo a conhecer nas últimas décadas, tanto em resultado da emigração massiva dos anos 60 e 70, como em consequência da autonomia político-administrativa do arquipélago e, mais recentemente, da integração de Portugal na UE. Mas muitos deles ? ou porque mais recentes, ou porque centrados sobre aspectos mais estruturais da cultura popular açoriana ? fornecem pontos de apoio importantes para a identificação antropológica de algumas regularidades actuais do arquipélago.
Entre essas regularidades conta-se um modo de vida rural orientado para a criação de gado vacum, assente na pequena propriedade muito disseminada e situado a meio caminho entre a memória da tradição e os desafios da mudança provocados pela emigração e pela integração europeia. A dispersão ? por vezes extrema ? do povoamento, a consistência de um padrão de relacionamento entre o rural e o urbano marcado pela distinção clara entre o mundo da vila e o mundo das freguesias, são outros traços recorrentes da paisagem social e cultural dos Açores. No plano da organização das relações sociais, a dominância da família elementar, a importância simultânea dos laços de parentesco e de vizinhança constituem também aspectos salientes, a par do significado que unidades como o lugar, a freguesia e a ilha asssumem como referentes na construção da identidade colectiva. Uma forte religiosidade, articulada com manifestações e celebrações próprias caracterizam também o arquipélago, que tem justamente numa dessas celebrações ? as Festas do Espírito Santo ? um dos seus mais fortes emblemas identitários.
Simultaneamente, o conjunto de conhecimentos etnográficos e antropológicos disponíveis sobre os Açores põe em evidência tanto a multiplicidade de formas diferenciadas que estes motivos comuns assumem, como a existência de inúmeras outras particularidades e idiossincrasias locais. Ao nível do grupo de ilhas, da ilha, ou, até, de áreas mais restritas no interior de cada ilha ? coincidentes com uma ou mais freguesias ?, os Açores afirmam-se como uma realidade cuja unidade é permanentemente contraditada por uma grande diversidade de formas culturais e sociais. As romarias quaresmais de S. Miguel, as cavalhadas da Ribeira Grande (S. Miguel), as touradas à corda da Terceira, são apenas alguns dos mais conhecidos exemplos etnográficos dessa diversidade, que se manifesta também em padrões distintos de distribuição da propriedade e da riqueza, impactes diferenciais da emigração, diferentes graus de abertura ao exterior, etc.
É justamente este retrato antropológico dos Açores, feito de regularidades mas também de diversidades, que a antropologia cultural e social deve continuar a aprofundar, a completar, eventualmente a rever. Não se trata apenas de abordar temas ou áreas geográficas menos conhecidas, trata-se também de integrar de forma mais explícita na análise antropológica dos Açores aquilo que no arquipélago ? como noutros contextos rurais europeus ? se tornou central neste fim de século: o diálogo entre tradição e modernidade provocado pelas grandes mutações das últimas décadas.
Embora presente na produção etnográfica e antropológica mais recente sobre o arquipélago, esse diálogo está ainda insuficientemente tratado enquanto tal. Em contraste com a proliferação de estudos sobre as comunidades açorianas emigradas nos EUA e no Canadá (cf., por exemplo, Smith, 1974, 1975, 1976 e 1978; Anderson e Higgs, 1976; Alpalhão e Rosa, 1983; Marinho e Cornwell Jr., 1992; Feldman-Bianco e Huse, 1993; Cool et al., 1994), não existem ainda abordagens sistemáticas às consequências culturais da emigração nos Açores. Sabe-se pouco, por exemplo, acerca dos efeitos «transnacionalizadores» da emigração sobre as relações interindividuais e as dinâmicas dos colectivos no quadro do arquipélago. Conhece-se mal o diálogo entre o «global» ? representado pela cultura norte-americana ? e o «local» ? representado pela cultura tradicional açoriana ? na manutenção, transformação ou «invenção» de formas culturais no arquipélago. As consequências da autonomia sobre o imaginário colectivo e, em particular, sobre os modos de definição das pertenças e das identidades colectivas no arquipélago ou, mesmo, na «diáspora» açoriana, encontram-se também insuficientemente estudadas. Enfim, estão em grande medida por apurar as consequências da integração europeia na eventual reestruturação das práticas e valores associadas ao mundo rural tradicional, tanto no tocante à crise dos seus padrões produtivos clássicos como no respeitante à relevância de tendências como a reconversão «patrimonial» da paisagem rural ou a (re)valorização de produtos rodeados pela aura do particularismo e da qualidade ? o artesanato local, as produções com certificado de origem, etc. João Leal (Abr.1996)
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