A participação do arquipélago dos Açores na «aventura europeia do bacalhau» (Mollat, 1995) foi decisiva no período das origens, importante entre meados do século XIX e a segunda metade do século xx. Esbateu-se à medida que a indústria foi perdendo importância económica e social e expressão simbólica. A imbricada relação dos Açores e da comunidade açoriana com a ?grande pesca? desfez-se lentamente à medida que o sistema tradicional de ?pesca à linha?, por veleiros com ou sem motor, cedeu lugar aos navios de arrasto.
Entre as diversas dimensões desse envolvimento multissecular das ilhas açorianas na ?economia-mundo bacalhoeira?, destaca-se a importância do arquipélago como porto de escala dos navios portugueses que desde finais do século XV demandavam os bancos da Terra Nova. Escala que se repartiu ao longo dos séculos, de forma intermitente, pelo Faial e por S. Miguel. Porém, nem sempre os bacalhoeiros faziam escala nos Açores. O traçado da rota entre os portos de armamento no continente e os pesqueiros do Atlântico Norte dispensava escalar nas ilhas, quer pela mudança de rumo que implicava e respectivos encargos para os armadores, quer pelos dias de viagem que consumia. No relatório do comando do ?velho Gil Eannes? relativo à comissão de assistência à frota nas águas da Terra Nova e Gronelândia em 1938, registam-se 927 milhas da largada, em Lisboa, à acostagem na cidade da Horta, no Faial. Cinco dias de mar. Dali largava em direcção aos bancos da Terra Nova. No retorno, percorria as 1.200 milhas de St. John?s à Horta em cerca de seis dias de mar. De referir, que o ?novo Gil Eannes? - moderno navio-hospital em campanha de assistência nos ?bancos? a partir de 1955 - raramente ia aos Açores.
Na verdade, só faziam escala nos Açores os navios que aí metiam pescadores. No dizer de capitães da frota de ?navios de pesca à linha? eram os açorianos ?bons pescadores, muito regulares, educados e cordatos. Dos melhores da companha. Em situações difíceis ou de tempo ruim eram dos primeiros a estar em cima? (depoimento oral do capitão Francisco Marques, profissional da Parceria Geral de Pescarias de 1964 a 1986 e capitão do Creoula até 1973).
É difícil quantificar com exactidão a percentagem de açorianos que foram ao bacalhau embarcados em navios portugueses ao longo dos séculos. No período áureo da ?grande pesca? (1935-1970), a percentagem de pescadores açorianos matriculados no Grémio dos Armadores de Navios de Pesca do Bacalhau é de 1,8% do universo de matriculados. Valor pouco expressivo, como é bom de ver. Em parte por razões afectivas, os navios que recrutavam mais pescadores açorianos eram os da Parceria Geral de Pescarias, ligada à Casa Bensaúde: o Corça - ainda em 1933 -, o Hortense, o Creoula, o Argus e o Neptuno. Nas campanhas de 1937 e de 1938, por exemplo, há registo de 11 pescadores açorianos no Creoula, que nem sempre ia aos Açores. Anos havia em que os pescadores embarcavam em Lisboa, vindos das ilhas em navios da frota mercante pertencentes à Casa Bensaúde. O Argus escala em Ponta Delgada de 1939 a 1957. Numa companha de 56 homens, metade são regularmente açorianos. Construído em 1958, o Neptuno passa a incluir na sua companha os pescadores do Argus que seria imobilizado em 1971 e ainda hoje navega sob bandeira americana. Além dos navios da Parceria, há registo oficial de mão-de-obra açoriana em navios de outras empresas do continente: o Oliveirense, da Sociedade Nacional de Armadores de Bacalhau, escala em S. Miguel de 1936 a 1965. Empresa directamente ligada ao Grémio, terá mantido imperativamente o recrutamento de pescadores açorianos por razões sociais. Também o Brites e o S. Gabriel embarcam durante alguns anos uns poucos pescadores açorianos, bem como o S. Jorge, da empresa Testa & Cunhas, de Aveiro, que em pleno crepúsculo da ?pesca à linha? (de 1963 a 1972) ainda embarca uma média de 17 pescadores matriculados em Ponta Delgada.
Os arrastões, que de 1936 em diante compõem parte da frota, jamais fizeram escala nos Açores e praticamente não incluíam nas suas tripulações gente das ilhas. (dados n. publ.)
Desde que a emigração lhes prometera melhor viver, não poucos açorianos se haviam de dedicar também à pesca do bacalhau em navios americanos.
Mas não só na escala dos bacalhoeiros, os Açores e a comunidade açoriana foram protagonistas da ?grande faina?. Dessas paragens atlânticas, desde 1492 haviam partido a descobrir o navegador-armador Pêro de Barcelos, João Fernandes Labrador e os Corte-Reais. Entre os protagonistas portugueses do processo de ?descoberta? e exploração das pescarias da Terra Nova, só o vianense João Álvares Fagundes não nascera nos Açores. Do arquipélago saíram também as primeiras expedições visando estabelecer uma colónia na Terra Nova, composta por gente de Aveiro, de Viana e da Ilha Terceira. Dos Açores terão ido alguns casais para a Terra Nova, em expedições co-financiadas por negociantes de Aveiro e da ilha Terceira. Apesar do clima hostil, a confirmação por carta régia da capitania da Terra Nova, primeiro a Manuel Corte-Real (Julho de 1574) e depois a Vasqueanes Corte-Real (Maio de 1579) prova que a colónia se manteve durante algumas décadas. Godinho (1983: 134-135); Baptista (1995: 74 e segs.)
Também dos Açores brotaram os primeiros capitais interessados no revigoramento da indústria, depois que por finais de Quinhentos os portugueses a haviam deixado de exercer. Homens e capitais que vieram auxiliar decisivamente o ressurgimento da pesca no Continente: em 1885 o capitão José da Cunha Ferreira, natural de Calheta, distrito de Angra e emigrado nos Estados Unidos, reinicia a pesca na Figueira da Foz com o lugre Júlia Iª que o próprio adquirira na América para a firma de seus primos (António e José Mariano Goulart) A. Mariano & Irmão, com sede em Lisboa. No ano seguinte adquirem o Júlia IIª, cujo comando será assegurado também por um capitão dos Açores emigrado na América do Norte. Fazem da Figueira da Foz o seu porto de armamento. Os ?Júlias? escalam nas ilhas de S. Miguel e S. Jorge, onde embarcam pescadores. Neste período de relançamento da ?indústria do bacalhau?, - segunda metade do século XIX - após a efémera experiência da Companhia Lisbonense de Pescarias que tivera um secadouro no Faial (Martins, 1994: 207-208), a Bensaúde & C.ª , antecessora da Parceria Geral de Pescarias , inicia a pesca em 1872 com dois navios, o patacho Gazela e a escuna Creoula. Com condições climatéricas pouco favoráveis à secagem do bacalhau, viria a transferir instalações para o continente e a adquirir terrenos no Barreiro por concessão real. Álvaro Garrido e Francisco Marques (Jun.1999)
Bibl. Baptista, I. (1995), O porto de Viana na história da pesca do bacalhau In Viana e o Mar. Viana do Castelo, Grupo Desportivo e Cultural dos Trabalhadores dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo: 67-101. Godinho, V. M. (1983), Os Descobrimentos e a Economia Mundial. 2ª ed., Lisboa, Ed. Presença, IV. Martins, O. (1994), Portugal nos Mares. Lisboa, Guimarães Editores. Mollat, M. (1995), A Europa e o Mar. Lisboa, Ed. Presença.