O longo poema «Versos de Pé de Galo» (de Temporal) é um bom exemplo, se não um dos melhores, do tedium vitae, do isolamento intelectual e espiritual, do sentimento de decadência nacional, da amargura ácida que pairam em toda a sua obra.
A sua obra ficcional é mais conhecida e abundante. Alguns seus contemporâneos contam que terá ensaiado ficção ainda aluno da Universidade e terá mostrado a amigos. O livro não agradou e, num ataque de fúria, o terá destruído, na lareira da casa onde habitava no Conde Redondo. Martins Garcia era um temperamental a quem a experiência da guerra na Guiné ainda abalou mais os nervos. No serviço da cifra e na fronteira (1966-1968) Martins Garcia ficou muito fortemente marcado pela experiência das privações, pela violência do primum vivere, pelas incertezas do quotidiano da guerrilha. Esse mundo, enraivecido e descabelado, é dado, com a hipertrofia da ficção, em Lugar de Massacre (escrito entre Dezembro de 1973 e Setembro de 1974, i. é, acabado no ambiente de liberdade de escrita pós 25 de Abril). Lugar de Massacre (1.a edição, 1975, reeditado em 1991 pelo Círculo de Leitores e com 3.a edição, Lisboa, Salamandra, 1996) é não só tipologicamente uma obra de literatura ligada à guerra colonial, como um típico documento da ficção hipertrófica e violenta de Martins Garcia. O Pierre Avince de Lugar de Massacre é porta-voz de um violento protesto contra a experiência de guerra, a mobilização «forçada» e caótica, a precaridade de meios. De algum modo, massacre será uma ideia e um sentimento que subjazem em toda a obra de Martins Garcia, como forma de apreensão da vida por um ser humano descontente com ela e nela vendo sempre objecto de forte sarcasmo. Destacam-se ainda, além do romance citado, A Fome (1978), O medo (1981), Imitação da Morte (1982), Contrabando Original (1987), Memória de Terra (1990); constituem contos Katafaraum é uma Nação (1974). Alecrim, Alecrim aos molhos (1974), Revolucionários e Querubins (1977), Receitas para fritar a humanidade (1978), Morrer Devagar (1979), Contos Infernais (1987), Katafaraum Resurrecto (edição do autor, 1992). Como peças de teatro devem-se-lhe Tragédia Exacta (1975) e Domiciano (1987), este premiado pela Secretaria Regional da Educação e Cultura do Governo Regional dos Açores.
Fez também algumas traduções e estudos introdutórios para volumes das Obras Completas de Vitorino Nemésio (Imprensa Nacional/Casa da Moeda), nomeadamente para Varanda de Pilatos, Mau Tempo no Canal, Sob os Signos de Agora e Conhecimento de Poesia.
Na obra de ficção de Martins Garcia nota-se ironia, sarcasmo e amargura. Não só são evidentes algumas notas disfémicas na reconstituição de alguns ambientes de Lisboa, quer dos anos de estudante, quer mesmo do 25 de Abril (veja-se O Medo), como a recordação de uns Açores de infância e adolescência, iluminada depois pelas leituras de história e pela própria reflexão. Ficamos então com uma imagem de ilhas ignotas, caracterizadas por pobreza real e pobreza cultural, por uma religiosidade primária e quase grotesca, por uma aridez do clima e das pessoas. Talvez pensando em especial no Pico da sua infância, lhe ficou esse mundo árido, amargo, injusto, que se esconde porém por detrás de uma paisagem muito bela. A Fome (1978) é uma amarga narração de vivências do estudante das ilhas «perdido» no continente, mas é também um mundo fantástico e simbólico, no qual embrecha uma narrativa histórica do padre António Cordeiro. Há realismo amargo na viagem «paradigmática» dos navios da Insulana (as privações e horrores do enjôo em segunda ou terceira classes de um paquete velho!), o destino incerto do estudante, os anos difíceis da capital no fim do regime salazarista. Mais do que a habitual violência verbal, A Fome aponta para uma fome simbólica (isolamento, emigração, terramotos).
A obra de José Martins Garcia, como se vê na dedicatória de A Fome, é quase toda ela uma «descida aos infernos» (é autor de uma colectânea de Contos Infernais...), um acto de preenchimento de uma solidão profunda: «Procuro-me como um fantasma que regressa ao lar (...). [...]. Procuro-me na fome imorredoura.» (A Fome). A vida em Monte Brabo (Contrabando Original, 1987) é uma pasmaceira, uma rotina; a montanha do Pico uma espécie de presença tutelar, mas também quase um fantasma ? como vê no Conto «Depois do fim do mundo» (em Morrer Devagar).
São evidentes na obra de José Martins Garcia um sentimento de amarga solidão, de ironia e de sarcasmo veiculados numa linguagem contundente ou mesmo disfémica, com uma repulsa pelo falso moralismo, uma tendência caricatural contra os «bons propósitos» da sociedade, ou até mesmo acerca das contradições da Revolução (José Martins Garcia viveu o 25 de Abril). Há cargas satíricas muito perto de personagens à clé. Mas toda essa irreverência e essa «violência» verbal se fazem num uso impecável da Língua Portuguesa, que se afina no seu ensaísmo e nos seus trabalhos de natureza académica. A obra de José Martins Garcia é já objecto de teses académicas em Universidades Portuguesas e estrangeiras (nomeadamente no Brasil e nos E.U.A.). António Machado Pires
Obras principais. (1973), Feldegato Cantabiee. Porto, Paisagem. (1973), Linguagem e Criação (Ensaios). Lisboa, Assírio e Alvim. (1974), Alecrim, Alecrim aos molhos. [Lisboa], Afrodite. (1974), Katafaraum é uma Nação. Lisboa, Assírio e Alvim. (1975), Lugar de Massacre. Lisboa, Edições Afrodite [reeditado em 1991 pelo Círculo de Leitores e com 3.a ed., Lisboa, Salamandra, 1996)]. (1975), Tragédia Exacta. Fundão, Jornal do Fundão. (1976), Cultura, Política e Informação (Ensaios). Lisboa, Perspectivas & Realidades. (1977), Revolucionários e Querubins. Lisboa, Afrodite. (1978), A Fome. S.l., Edições Afrodite. (1978), Receitas para fritar a humanidade. Lisboa, Edições Montanha. (1979), Morrer Devagar. Lisboa, Arcádia. (1980), Vitorino Nemésio. A obra e o homem. Lisboa, Arcádia [2.a ed. revista e aumentada, Vitorino Nemésio - à luz do verbo. Lisboa, Vega, 1988]. (1981), O medo. Angra do Heroísmo, Secretaria Regional da Educação e Cultura. (1981), Temas Nemesianos. Angra do Heroísmo, Secretaria Regional da Educação e Cultura. (1982), Imitação da Morte. Lisboa, Moraes. (1984), Invocação a um Poeta e outros poemas. Angra do Heroísmo, Secretaria Regional da Educação e Cultura. (1985), Fernando Pessoa. «Coração Despedaçado» (Subsídios para um estudo da afectividade na obra poética de Fernando Pessoa). Ponta Delgada, Universidade dos Açores. (1986), Temporal. Providence, Gavea Brown. (1987), Contos Infernais. Ponta Delgada, Brumarte. (1987), Contrabando Original. Lisboa, Vega. (1987), Domiciano. Angra do Heroísmo, Direcção Regional dos Assuntos Culturais [premiado pela Secretaria Regional da Educação e Cultura do Governo Regional dos Açores]. (1987), Para uma Literatura Açoriana. Ponta Delgada, Universidade dos Açores. (1988), David Mourão Ferreira, A Obra e o Homem. 2.a ed., Lisboa, Vega. (1990), Memória de Terra. Lisboa, Vega. (1992), Katafaraum Resurrecto. S.l., ed. do autor. (1995), Exercícios da Crítica. Lisboa Salamandra. (1996), No Crescer dos Dias. Lisboa, Salamandra. (1999), (Quase) Teóricos e Malditos. Lisboa, Salamadra.
Bibl. Bettencourt, U. (2003), «José Martins Garcia Signo Atlântico» in Saber ? «Ensaio»: 4-7. Brasil, L. A. A. (1990), «Dos Açores. Um contrabando original» in Letras de Hoje. Porto Alegre: 39-47. Jesus, E. (1986), Verbo Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura. 21, suplemento 2: 606 [s.v. Garcia, José Martins]. Machado, Á. M. (1996), Dicionário de Literatura Portuguesa. Editorial Presença, [s.v. Garcia, José Martins]. Pires, A. M. M. (1995), Dicionário Biblos. Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa, II [s.v. Garcia, José Martins]. Vilhena, M. C. (1990), «Contrabando original: o outro lado das coisas» in Arquipélago ? Línguas e Literaturas, XI: 225-243. AA.VV. (2204), Revista Arquipélago, Línguas e Literaturas, XVIII [o volume é dedicado em homenagem a José Martins Garcia].