Seguindo de perto as teses defendidas por Urbano Bettencourt, no ensaio ?A baleação na narrativa açoriana?, incluído no segundo volume de O gosto das palavras (Jornal de Cultura, 1995), lanço de seguida alguns olhares à presença da baleia na lírica e na narrativa açorianas.
Verificamos, desde logo, que a baleia e a baleação são evocadas através de dois tipos de olhares: por um lado, temos um olhar exterior, de fora para dentro, sendo disso exemplo o escritor António Tabucchi, que, no seu livro Mulher de Porto Pim nos dá uma visão da caça à baleia enquanto actividade em declínio, irremediavelmente a caminho do recolhimento e da fixação definitiva no imaginário e na memória; por outro lado, temos um olhar interior, de dentro para fora, de que é exemplo o escritor Dias de Melo, que nas suas obras revela empatia e identificação com os baleeiros da sua ilha, o Pico.
A lírica privilegia a baleia em si, num discurso revelador e produtor de conexões simbólicas e míticas. Temos, neste caso, os seguintes poetas: Miguel Street de Arriaga, Roberto Mesquita, Pedro da Silveira, Emanuel Félix, Álamo Oliveira, José Martins Garcia, João Luís de Medeiros e João Afonso, entre outros.
Na narrativa a atenção recai principalmente sobre a actividade baleeira, com o seu universo de implicações e contingências.
Sensíveis a esta temática foram já os elementos do chamado ?núcleo da Horta?, grupo de autores que, no final do século passado e princípios do presente, se constituíram o motor e, simultaneamente, o sinal de uma dinâmica cultural que, muito ligada à imprensa, aquela cidade conheceu por essa época, com destaque, no caso presente, para os nomes de Rodrigo Guerra, Florêncio Terra, Nunes da Rosa, Marcelino Lima e Ernesto Rebelo.
Rodrigo Guerra (em A Americana) e Nunes da Rosa (em Gente das Ilhas), por entre uma temática que vai do mar à emigração e à terra, trazem para as suas narrativas as diversas vertentes da baleação e deixam-nos páginas em que tanto se detecta a nostalgia sentida pelos homens embarcados clandestinamente e a contas com a solidão da vida a bordo, como se assiste ao desenrolar de histórias em que a aventura, o drama e a destruição, física e moral, se cruza na vida das personagens, alterando-lhes os rumos do destino.
De Ernesto Rebelo é a breve narrativa There she blows que dá conta do relato do tio Roque, personagem transformada em narrador e que evoca a sua experiência de cinco anos de «labutação no mar», no navio Providence. Se a sua fala nos surge contaminada por expressões e termos ingleses, isso deve-se apenas ao facto de o mundo baleeiro ter sido inicialmente apreendido e identificado através dessa língua ?aliás, a terminologia técnica específica da baleação deixou marcas bem visíveis na escrita açoriana, mesmo que, em muitos casos, com uma fonia já convertida ao sistema gráfico português.
O recurso a uma voz ?de experiência feita? caracteriza a curta história de Florêncio Terra, ?Tal como se ouviu?, incluída em À pesca da baleia, volume colectivo que reúne ainda textos do faialense Marcelino Lima, do terceirense João Ilhéu e do cabo-verdiano Eugénio Tavares. No conjunto, os quatro textos compõem um quadro em que perpassam as vicissitudes da caça à baleia, as suas técnicas e condicionalismos, passando-se das expectativas e da euforia aos momentos de angústia e mesmo de morte.
Raul Brandão, que visitou os Açores em 1924 por um período de quatro meses, deixou-nos as suas impressões de viagem no livro As Ilhas Desconhecidas, onde um capítulo é dedicado à ?pesca da baleia?. O olhar de Brandão sobre os Açores é fundamentalmente o olhar de espanto de quem observa um mundo originário, genesíaco e de imediato o subjectiviza em termos de fantasmagorias e de ?figuras estranhas?. Ele apercebe-se de que, para lá das meras razões económicas, outras forças e mecanismos profundos motivam o fascínio pela caça à baleia.
Mas quem eleva os baleeiros picarotos a uma dimensão universal é Vitorino Nemésio em Mau Tempo no Canal. Como símbolo dessa gesta baleeira, temos o Ti Amaro da Mirateca, personagem de uma grande riqueza humana, que conta a sua história de vagabundo marítimo embarcado a salto ainda ?com tabaco no imbigo? e que cruza os mares atrás das baleias, chegando mesmo a ir ao bacalhau à Gronelândia. É dele a tão citada frase: «A justiça, no Pico, é a pá dum remo».
E é a altura de falar de Dias de Melo, autor de uma obra literária que, pela pluralidade de perspectivas e de modos de aproximação, constitui hoje a mais completa e a mais complexa abordagem da baleação picoense, muito particularmente da que se reporta à Calheta de Nesquim. Tendo começado pela poesia, Dias de Melo inflectiria depois para a prosa, com um livro de ?crónicas romanceadas?, Mar Rubro (1958), em que a vertente informativa, documental, era já atravessada por um pendor narrativo que se cumpriria plenamente em Pedras Negras (1964) e em Mar pela Proa (1976).
Conhecendo de perto a actividade baleeira e olhando-a e sentindo-a como coisa sua, Dias de Melo (ele próprio baleeiro esporadicamente) fez de grande parte da sua escrita um painel dessa mesma actividade. O clima de harmonia e de entendimento entre baleeiros e armadores observável em Mau Tempo no Canal cedeu o lugar, na ficção de Dias de Melo, a um mundo antagónico em que os interesses dos grandes não coincidem necessariamente com os dos pequenos e são estes que, em ocasiões de conflito aberto, acabam submetidos à força, mas não à razão, daqueles que, possuindo os meios de produção, isto é, as baleeiras, têm ainda pelo seu lado o poder estabelecido e os seus ?argumentos? repressivos ? tal como acontece no final de Pedras Negras. Contra isso, a solução para os baleeiros, passa pela posse de canoas próprias, o que de certa forma está na base dos acontecimentos de Mar pela Proa, onde os adversários, porém, já não são os armadores, mas a fúria do mar que leva consigo botes e homens.
O livro Pedras Negras continua a impôr-se pela globalidade do mundo representado e no interior do qual se movimenta Francisco Marroco, personagem trágica que um dia desafiou a ilha, abalando numa baleeira com os olhos postos na América e, uma vez regressado, acaba afinal esmagado por essa mesma ilha, após o fugaz intervalo de uma felicidade ilusória.
Num outro momento, que é o de uma distanciação não apenas temporal, se situa o tratamento que esta temática recebe em José Martins Garcia, Álamo Oliveira e Manuel Ferreira Duarte.
Num dos contos do seu livro A Banda Nova e Outras Histórias (1991), Manuel Ferreira Duarte, autor emigrante há vários anos nos Estados Unidos, reconstrói toda a movimentação provocada pela caça à baleia.
José Martins Garcia deu a um seu conto o título de ?Os Baleeiros?, mas fê-lo num sentido, já atrás referido, em que a palavra designa os emigrantes que tinham utilizado os navios baleeiros para chegarem às terras do Novo Mundo.
Algo diferente se passa com o conto ?Não é para me gabar?, de Álamo Oliveira, no seu livro Contos com desconto (1991). A caça à baleia pertence definitivamente à memória, que pode preservar-se, por exemplo, num qualquer Museu da Vila, alvo possível de roubo por parte de uma ?baleia mecânica?. A efabulação e o imaginário situam-se nitidamente numa fase pós-baleação e nem lhes falta sequer um leve toque de Spielberg.
Também o escritor micaelense Manuel Ferreira tratou o tema da baleação numa extensa narrativa que dá o título a um dos seus livros: O Morro e o Gigante (1981). Partindo do Morro como ponto privilegiado de observação, Manuel Ferreira refaz o ciclo que começa no Vigia, mestre José Caguinchas, e a ele retorna, finalmente, depois da luta desigual entre o homem e o monstro e já com este a ser derretido nos caldeiros. A acção aqui é localizada na costa norte de S. Miguel, mas a perspectiva sobre a actividade é mais vasta do que isso e o quadro social é idêntico ao que encontramos em Dias de Melo e em Manuel Ferreira Duarte: a ?arraia-miúda?, por um lado e, pelo outro, os ?galfarros da Companhia?.
Fora do domínio da narrativa ficcional, um valioso livro de Nuno Álvares Mendonça, intitulado Memórias de um Baleeiro (1985), traz-nos a evocação do que foi a baleação na ilha de S. Jorge ao período de 1930 a 1945. Filho de um armador, Nuno Álvares começou a ir à baleia por volta dos 8 anos e do ?vício? que daí nasceu é bom testemunho o seu livro: um pormenorizado conhecimento técnico da matéria e um rico acervo de experiências, nalguns casos particularmente únicas, tornam a leitura praticamente atraente, sobretudo porque uma linguagem sugestiva consegue contrabalançar a eventual secura da descrição técnica e histórica com a vivacidade e a limpidez postas na evocação de acontecimentos e pessoas.
A baleia continua a fazer parte do imaginário e da memória colectiva dos Açores. Victor Rui Dores (Jun.1999)