GEOLOGIA Do ponto de vista da tectónica de placas, a posição geográfica dos Açores corresponde a uma junção tripla, local de contacto de três placas litosféricas: as placas eurasiática, americana e africana (Laughton e Whitmarsh, 1974). As ilhas açorianas resultaram da actividade vulcânica associada àquele contexto tectónico. As placas referidas estão separadas por duas importantes estruturas: a Crista Média Atlântica e a Zona de Falha Transcorrente Açores-Gibraltar. A placa americana localiza-se a ocidente do rift, enquanto as placas eurasiática e africana se situam a oriente daquela estrutura tectónica.
O arquipélago dispõe-se segundo um alinhamento WNW-ESE que cruza obliquamente a Crista Média Atlântica. As ilhas do grupo ocidental (Flores e Corvo) foram edificadas sobre a placa americana, enquanto os grupos central e oriental se distribuem pelas outras duas placas litosféricas. A natureza e posição exacta da fronteira de placas que separa a Eurásia da África são, ainda, motivo de alguma controvérsia. Alguns autores consideram a existência de uma «microplaca dos Açores» que suportaria as ilhas dos grupos central e oriental (Forjaz 1988); outros advogam a hipótese de uma estrutura do tipo rift, localizado no alinhamento Graciosa - Terceira - S. Miguel, a que atribuem a designação de «Rift da Terceira» (Machado, 1959); uma terceira hipótese sugere que a fronteira entre as placas eurasiática e africana passa no canal de S. Jorge e a sul de S. Miguel (Madeira e Ribeiro, 1990). Neste caso, Graciosa, Terceira e S. Miguel estariam sobre a placa eurasiática, enquanto Faial, Pico, Formigas e Santa Maria estariam edificadas na placa africana.
Para oriente de Santa Maria a fronteira de placas está bem localizada e corresponde ao acidente tectónico designado «falha GLORIA», de direcção E-W, que se estende por cerca de 400 km entre as longitudes 25° e 20° W (Laughton et al., 1972).
A Crista Média Atlântica tem orientação próxima de N-S a norte do ponto triplo (39° N, 30° W), e direcção média NE-SW a sul daquele ponto. Esta direcção resulta do facto de a Crista Média se encontrar segmentada por um conjunto de falhas transformantes muito próximas que a dividem em troços curtos com orientação próxima de N-S (Searle, 1980).
Nesta região, o relevo submarino da Crista Média alarga-se para oriente, formando uma área elevada (limitada aproximadamente pela isóbata dos 2500 m), de forma grosseiramente triangular, incorrectamente chamada «Plataforma dos Açores», da qual se elevam as ilhas dos grupos central e oriental. A designação sugere uma batimetria regular que está longe de corresponder à realidade. Com efeito, os fundos que constituem a «Plataforma dos Açores» apresentam morfologia irregular, com fossas e cristas submarinas. As fossas são depressões tectónicas, porções de fundo oceânico afundado entre falhas, e localizam-se ao longo do «Rift da Terceira». A oeste da Graciosa situa-se a bacia ocidental da Graciosa, entre esta ilha e a Terceira localiza-se a bacia da Graciosa, a SW da Terceira encontra-se separada da bacia Hirondelle do Sul pelo banco de D. João de Castro, enquanto entre S. Miguel e as Formigas se situa a bacia de S. Miguel. A SW dos ilhéus das Formigas desenvolve-se o desfiladeiro das Formigas, o qual se liga à depressão associada à «falha GLORIA». Estas fossas têm o seu fundo a profundidades superiores a 2000 m. Contrastando com as formas descritas existem relevos que se elevam dos 1000-1500 m de profundidade, geralmente com forma de cristas alongadas, cujos topos emersos constituem as ilhas dos Açores. Algumas destas cristas submarinas não chegam à superficie, originando áreas pouco profundas: os bancos de D. João de Castro, Açor e Princesa Alice. Em torno da «Plataforma dos Açores» os fundos descem rapidamente para profundidades superiores a 3500 m.
Os Açores apresentam sismicidade elevada (Udías, 1980; Udías et al., 1986; Nunes et al., 1992), geralmente sob a forma de crises sísmicas com centenas ou milhares de eventos, a maioria dos quais com magnitudes abaixo do limiar da sensibilidade humana. Contudo, ocorrem esporadicamente tremores de terra de magnitude elevada, que podem atingir o grau 7 da escala de Richter, de que são exemplo os fatídicos eventos de 9 de Julho de 1757 (Machado, 1949), que provocou cerca de 1000 mortos em S. Jorge, e o de 1 de Janeiro de 1980 (Hirn et al., 1980), que provocou grande destruição nas ilhas Terceira e S. Jorge. A «falha GLORIA» e a Crista Média são também áreas de sismicidade intensa, mas que raramente afectam as ilhas do arquipélago.
A actividade vulcânica é inerente à própria constituição dos Açores. Todas as ilhas são de natureza vulcânica e apenas no grupo ocidental, em Graciosa e em Santa Maria, não ocorreram erupções desde o povoamento. Existem relatos e evidências de cerca de três dezenas de episódios vulcânicos desde 1439 até à actualidade (Weston, 1963-64). Estas erupções ocorreram nas ilhas de S. Miguel, Terceira, S. Jorge, Pico e Faial e no mar entre elas. É possível que mais algumas erupções tenham ocorrido no mar sem que delas se tenha tido notícia.
Segundo alguns autores (Krause e Watkins, 1970; Searle, 1980), as ilhas que compõem o arquipélago ter-se-ão começado a formar há 45 ma (milhões de anos) ou há 36 ma, isto é, durante o Eocénico médio ou no final deste período geológico. Esta datação baseia-se nas idades estimadas de anomalias magnéticas do fundo oceânico sobre o qual as ilhas estão edificadas. No entanto, as anomalias magnéticas na região dos Açores não estão ainda suficientemente bem estudadas para se poder estabelecer com certeza uma idade para o início da edificação das ilhas. O que se sabe é que as rochas emersas mais antigas se encontram na ilha de Santa Maria onde se obtiveram idades isotópicas de 8 ma. Em antiguidade seguem-se os ilhéus das Formigas (4,6 ma) e a região nordeste de S. Miguel (4 ma). Na Terceira e nas Flores existem rochas lávicas com 2 ma, enquanto nas restantes todos os materiais aflorantes são de idade quaternária (Abdel-Monem et al., 1975; Féraud et al., 1980; Azevedo et al., 1986; Forjaz, 1988).
O arquipélago dos Açores é, portanto, constituído por nove ilhas de natureza vulcânica, com vulcões activos e sismicidade frequente, formadas na dependência da junção tripla entre as placas tectónicas da Eurásia, África e América. José Madeira (Dez.1995)
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GEOGRAFIA O arquipélago dos Açores fica situado no oceano Atlântico Norte, entre 36o 55? N e 39o 45? N de latitude e 24o 45? e 31o 17? W (Instituto Hidrográfico, 1981), entre a América do Norte (EUA) e a Europa (Portugal), dos quais dista, respectivamente, cerca de 4500 e 1500 km (Gaspar, 1993). Com a Madeira, Canárias, Cabo Verde e o Noroeste Africano constitui a região natural da Macaronésia.
É formado por nove ilhas e alguns ilhéus, de origem vulcânica, que emergem da plataforma oceânica da Cordilheira Central do Atlântico, dispostas ao longo de falhas transversais àquela crista, onde ocorreram as emissões vulcânicas que lhes deram origem. Ao todo, ocupam uma superfície de cerca de 2344 km2 (incluindo os ilhéus, Instituto Hidrográfico, 1981) ou de 2329,67 km2 (apenas as ilhas, INE,1991).
Pela sua proximidade e também por afinidade genética, as ilhas formam três grupos, dispostos num eixo com orientação NW-SE, designados por grupos ocidental, central e oriental (mapa 1). O primeiro? formado pelas ilhas de Santa Maria (97 km2) e de S. Miguel (a maior, com 747 km2), pelos ilhéus Formigas e outros pequenos ilhotos à volta das ilhas. O segundo inclui as ilhas da Terceira (397 km2), Graciosa (61 km2), S. Jorge (238 km2), Faial (173 km2) e Pico (447 km2), também com numerosos ilhéus na periferia da costa das várias ilhas. O terceiro, o mais ocidental e setentrional, é constituído pelas ilhas das Flores (143 km2) e do Corvo (a mais pequena, com 17 km2), e pequenos ilhotos a elas anexos.
A importância da localização geográfica deste arquipélago é manifesta, na sua posição estratégica, nas rotas atlânticas de comunicação entre os continentes americano e europeu, por onde se dispersaram e dispersam os açorianos. Inicialmente chegaram a constituir ponto de apoio entre a Europa e a África (volta da Mina). Sempre demonstraram ser fundamental ponto de apoio na navegação transatlântica, marítima e depois área, tanto comercial, de guerra, como de recreio.
A dispersão das ilhas do arquipélago alarga o mar territorial português (12 milhas da costa) e contribui para a maior subárea da Zona Económica Exclusiva (ZEE) portuguesa (Instituto Hidrográfico, 1981).
O relevo é de tipo vulcânico, com estreitos planaltos (ou achadas) dissecados pela erosão das ribeiras e dominados por cones de escórias, piroclastos vulcânicos (bombas, tufos vermelhos e negros, também designados por bagacina, e cinzas alteradas em argilas) e lavas, sobretudo basálticas, que formam cabeços ou morros convexos e picos agudos ou truncados por crateras, com ou sem caldeiras. Destas, as maiores encontram-se ocupadas por lagoas permanentes de rara beleza paisagística, que constituem um dos melhores cartazes turísticos das ilhas. Salientam-se as lagoas das Sete Cidades, das Furnas, do Fogo e do Congro, na ilha de S. Miguel; a da caldeira, no Faial; a da caldeira, nas Flores, e a do Caldeirão, no Corvo. Mas muitas crateras pequenas têm lagoinhas com grande valor ecológico, porque funcionam como reservatórios de água doce fundamentais para a fauna permanente e para as aves migrantes.
O cone vulcânico mais alto é o do Pico da ilha do Pico, que atinge 2351 m de altitude, no topo do pico Pequeno, um cone secundário que se ergue no chão da caldeira do imponente edifício vulcânico do Pico. É o ponto mais alto de Portugal, visível das ilhas do Faial e de S. Jorge.
Constitui uma espécie de indicador meteorológico empírico para os pescadores e marinheiros das três referidas ilhas do triângulo, consoante se encontra descoberto ou escondido sob capelos de nuvens. Seguem-se-lhe os picos da Vara (1104 m) em S. Miguel, da Esperança (1054 m) em S. Jorge, do Cabeço Gordo (1045 m) no Faial, de Santa Bárbara (1021 m) na Terceira, o morro Alto (914 m) nas Flores, a cumeeira do Caldeirão (777 m) no Corvo, o pico Alto (587 m) em Santa Maria e a serra Dormida (398 m) na Graciosa. Em regra os cones vulcânicos aparecem alinhados ao longo de fracturas; esse fenómeno é notável na ilha de S. Jorge (toda ela edificada ao longo de fracturas) e na parte oriental da ilha do Pico. Outrora revestidos por mata densa, actualmente encontram-se arroteados em pastagens e, por isso, os seus solos ficam sujeitos a ser levados pela erosão das torrentes.
Com excepção de Santa Maria, a ilha mais meridional e também a mais antiga, sem manifestações históricas de vulcanismo e com rochas sedimentares terciárias (que também se encontram na Terceira), em todas as ilhas se registaram erupções vulcânicas no período histórico (cerca de 30 após a descoberta); daí o aspecto das formas vulcânicas frescas, e o facto de em quase todas se observarem manifestações atenuadas de actividade vulcânica secundária, com fumarolas, sulfataras, geysers de água quente e de lama, nascentes termais de águas quentes e frias (sulfurosas, férreas e bicarbonatadas), cheiro sulfuroso e temperaturas muito elevadas do solo (suficientes para cozinhar alimentos - maçaroca de milho, cozido das Furnas, bacalhau das caldeiras). O mais vasto campo destes fenómenos encontra-se nas caldeiras do vale das Furnas e da ribeira Seca da Ribeira Grande, na ilha de S. Miguel, onde se tenta produzir energia geotérmica. O valor patrimonial destas formas naturais é incalculável, pelo facto de constituírem verdadeiros museus naturais sobre fenómenos vulcânicos.
A furna do Enxofre, na Graciosa, e a caldeira de Guilherme Moniz, na Terceira, são outros locais com fumarolas e geysers no fundo de algares vulcânicos. Nascentes termais são frequentes também no Pico, Faial e S. Jorge. A sismicidade elevada e frequente alia-se aos fenómenos vulcânicos e atinge todo o arquipélago, causando as mais intensas crises, enormes desmoronamentos e estragos, descritos em diversos documentos históricos das ilhas e presenciados pelas gerações actuais.
Arribas altas e escarpadas, talhadas em rochas escuras, escavadas em furnas e arcos, e orladas na base por faixas de calhau, limitam as ilhas. São imponentes nas costas setentrionais, mais batidas pelas ondas tempestuosas de norte. De onde em onde, no recôncavo das enseadas ou nas fozes das principais ribeiras, abrigam pequenas praias em forma de concha, formadas por areia basáltica, de cor negra. Sujeitas à acção das ondas oceânicas, que durante as tempestades ultrapassam os 8 m de altura, e aos desabamentos (chamados quebradas) provocados pelos terramotos, as arribas desmoronam e, no seu sopé, formam-se línguas de materiais de escombreira que se prolongam mar dentro, constituindo as fajãs, numerosas e famosas na ilha de S. Jorge. Por vezes, as fajãs são formadas por escoadas de lava que deslizam até ao mar e solidificam sobre a plataforma das ilhas (fajã do Norte Grande, em S. Jorge).
Grandes baías formam portos naturais de abrigo. São exemplos a da Horta (ilha do Faial), a de S. Lourenço (ilha de Santa Maria) e a de Angra do Heroísmo (ilha Terceira), ainda hoje excelentes portos de abrigo que acolhem as embarcações a navegar por perto durante os temporais.
Ribeiras profundamente encaixadas nos materiais vulcânicos (também designadas por grotas) entalham as encostas de todas as ilhas. Algumas desaguam ao nível do mar, outras apresentam as fozes suspensas, cortadas no alto da vertente costeira, onde formam cascatas. O seu regime é torrencial; transbordam dos leitos durante as chuvadas, arrastando pedras, solos, árvores, animais e, por vezes, casas. Algumas correm apenas no Outono e Inverno e outras, mais longas e ramificadas, correm todo o ano. A água não escasseia e a sua energia foi muito usada pelas azenhas, na moagem tradicional. Tal como os moinhos de vento, de herança flamenga, actualmente apenas raras azenhas se encontram activas, por se ter deixado de cultivar cereais, em detrimento das pastagens para o gado bovino, que causam problemas ambientais sérios, na degradação e erosão dos solos, no assoreamento e turvação das lagoas, e na contaminação das águas subterrâneas.
Uma particularidade de referir é a existência de ribeiras de águas quentes, termais e férreas (Ribeira Quente, S. Miguel), onde cascatas e patamares formam piscinas termais, visitadas e usadas para terapia e lazer.
O clima, subtropical atlântico, é temperado húmido. A grande variabilidade dos tipos de tempo que ocorrem com frequência está relacionada com a posição relativa do anticiclone subtropical dos Açores e com as depressões polares. Chove quase todo o ano, em especial nas ilhas do grupo ocidental e mesmo nas mais altas do grupo central. Os valores da temperatura, da precipitação e da insolação médias anuais, bem como dos ventos dominantes, constam no quadro 1. Os verões são moderadamente quentes, com ventos fracos de W e S, e os invernos apenas frescos; porém, muito húmidos, ventosos e nevoentos. O rocio e a bruma, a chuva e o vento, as nuvens rolando, expressões constantes na literatura açoriana, são, efectivamente, imagens da realidade quotidiana dos Outonos, Invernos e Primaveras insulares, que perduram no imaginário dos ilhéus, mormente na nostalgia dos que emigraram. Pode nevar acima dos 1000 m de altitude, em especial no Pico. O verão é o período do ano mais soalheiro; Agosto é o mês mais quente e Fevereiro o mais frio. Julho e Agosto são os meses mais secos em todas as ilhas e Junho aquele em que ocorrem mais nevoeiros litorais. Estes devem-se aos ventos de SW que arrastam a massa tropical húmida para norte.
A proximidade da corrente do Golfo mantém a superfície da água do mar a 21-23o C no Verão, podendo atingir 25o C, e 15-18o C no Inverno. Mas contribui para a elevada humidade média relativa das ilhas, entre 77 e 87 %. Tais condições de humidade e termofilia permitiram a evolução de solos castanhos e negros, sobre as rochas vulcânicas; solos férteis que suportavam florestas densas de lauráceas que, ao tempo em que se iniciou o povoamento, constituíam a laurissilva macaronésica, formada por loureiro-das-ilhas, til, vinhático, faia-das-ilhas, cedro-das-ilhas, teixo (aqui chamado de pau-da-rainha pelo seu uso no mobiliário de estilo Dona Maria) e outras. Delas restam retalhos, nos fundos e escarpas das grotas e nas vertentes setentrionais, entre 600 e 800 m de altitude. Exploradas para lenha e madeira, as matas de laurissilva, na sua maior extensão, foram substituídas por campos de cultivo de cereais (trigo e milho), pomares de citrinos e culturas industriais como a beterraba, a batata-doce e o tabaco e, actualmente, por pastagens ou por matas de árvores exóticas de crescimento rápido, para produção de lenha e madeira (incenseiro, criptoméria, acácia, eucalipto, pinheiro-bravo).
O povoamento, desde o século xv, fez-se com nobres secundogénitos, refugiados políticos de Castela e indesejados da Coroa e com populações humildes e marginalizadas no reino: algarvios em Santa Maria, alentejanos em S. Miguel, e gentes do Norte, especialmente flamengos, fixados nas ilhas do Centro. Árabes e principalmente judeus, compelidos à cristianização, contribuíram para o enriquecimento cultural das maiores ilhas do Açores. Testemunhos ficaram na linguística, na toponímia, na gastronomia, nos bordados e nas tradições, algumas com inegáveis raízes criptojudaicas.
Em Santa Maria, o povoamento disperso contrasta com as restantes ilhas, onde as casas se concentram em núcleos populacionais que se prolongam, alinhadas, pelas vias de comunicação, especialmente ao longo das estradas circum-litorais, donde irradiam pelas lombas das encostas. Em todas as ilhas a densidade de população é mais elevada nas encostas expostas a sul do que nas setentrionais.
O crescimento da população, que levou à saturação demográfica do século xix (Gaspar, 1993), e os sucessivos episódios de catástrofes naturais devidas a erupções vulcânicas e/ou a crises sísmicas, levaram à emigração do povo açoriano, desde cedo orientada para os continentes americanos. Inicialmente para o Brasil, ainda no século xviii, onde fundaram aglomerados de pescadores e agricultores em Santa Catarina, no Rio Grande do Sul e no Pará, e de agricultores em Minas Gerais. Aí arreigaram tradições, como o culto do Espírito Santo, e enriqueceram a linguagem catarinense e gaúcha com regionalismos das ilhas. O rumo mais recente, e o mais atraente, foi a América do Norte. Para os Estados Unidos, na costa noroeste da Nova Inglaterra (Massachussets, Rhode Island, Connecticut) e na Califórnia, depois para o Canadá.
Pescadores, agricultores e criadores de gado, comerciantes ou empregados na indústria e nos serviços, mantêm tradições sociais e culturais (musicais, religiosas e gastronómicas), melhor preservadas que nas ilhas de origem, em que a cultura tradicional foi sendo progressivamente diluída pela influência irremediável dos órgãos de comunicação.
Actualmente, o arquipélago dos Açores constitui uma região autónoma da República Portuguesa, com governo próprio (Assembleia Regional e Governo Regional) e com um representante do Governo central, o ministro da República. Conta 19 concelhos (quadro 2), em que residiam, em 1991, 237 795 habitantes, 117 385 homens e 120 410 mulheres (INE, 1991), dos quais 53 % vive em S. Miguel, 23,4 % na Terceira, 6,4 % no Pico, 6,2 % no Faial, 4,3 % em S. Jorge, cerca de 2 a 2,5 % nas Flores, no Faial e em Santa Maria, e 0,2 % no Corvo. É uma população adulta (44,7 %), com 26,4 % de jovens (menos de 14 anos) e 11,2 % de indivíduos com mais de 65 anos.
A distribuição da população por concelhos consta no quadro 2, onde se pode observar a variação decenal da população, no decorrer do século xx. Aí se verifica a importância dos concelhos de Ponta Delgada (com 49,2 % da população da ilha), Angra do Heroísmo (com 63 %) e Praia da Vitória (com 37 %), onde, no conjunto, reside 49,6 % da população do arquipélago. Porém, a hegemonia demográfica das ilhas de S. Miguel e da Terceira foi muito mais marcada em 1960, antes do grande surto migratório dessa década. Nas restantes ilhas, mais pobres, o máximo populacional do século verifica-se em 1950. A I Guerra Mundial e a crise económica consequente foram o motivo da emigração dos dois primeiros decénios do século xx. A partir dos anos 20 a população do arquipélago cresce até 1950 e 1960, para diminuir progressivamente até ao presente, especialmente nas ilhas mais pequenas e com menos recursos. No Corvo, em 30 anos, a população ficou reduzida a cerca de metade.
A principal actividade económica é a pecuária associada à agricultura. Esta actividade ocupa mais de metade da população. A indústria é o sector económico mais desfavorecido, enquanto os serviços constituem a segunda mais importante actividade da população. Está ligada à exploração de bagacina e de pedra-pomes (S. Miguel), à pesca e conservas e farinhas de peixe, aos lacticínios, à transformação do tabaco e da beterraba, bem como à produção de bebidas (cerveja e refrigerantes). M. Eugénia S. Albergaria Moreira (Jan.1997)
Bibl. Gaspar, J. (1993), As Regiões Portuguesas. Lisboa, Ministério do Planeamento e da Administração do Território. Instituto Hidrográfico (1981), Roteiro do Arquipélago dos Açores. Lisboa, IH. Instituto Nacional de Estatística (1960), X Recenseamento Geral da População no Continente e Ilhas Adjacentes. Lisboa, INE, I, 1. Id. (1970), XI Recenseamento da População. Continente e Ilhas Adjacentes. Lisboa, INE, I. Id. (1981), XII Recenseamento Geral da População. II Recenseamento Geral da Habitação. Resultados Definitivos. 1981. Região Autónoma dos Açores. Lisboa, INE. Id. (1991), XIII Recenseamento Geral da População e Recenseamento Geral da Habitação. Resultados Definitivos. Lisboa, INE.
Açores ? Geografia
Quadro 1 - Principais características climáticas das ilhas dos Açores: T - temperatura média anual (ºC); TA - temperatura média de Agosto (mês mais quente); TF - temperatura média de Fevereiro (mês mais frio); TM - temperatura máxima (ºC); Tm - temperatura mínima (ºC); R - precipitação média anual (mm); NºdR - nº médio de dias de chuva por ano; I(h) - insolação média anual (nº de horas); I (%) - insolação média anual (em % do nº potencial de horas para a latitude das ilhas); Vr - Rumos anuais dominantes do vento; Vr - velocidade média anual do vento (Km/h). Valores médios do período 1941-1970 (Instituto Hidrográfico, 1981).
Açores ? Geografia
Quadro 2 - Variação da população residente nos Açores durante o século XX
HISTÓRIA-IDADE MODERNA Fontes, investigação e historiografia. A tipologia das fontes determina o estado actual do conhecimento histórico açoriano e define os principais rumos da investigação. Assim, a problemática das origens defronta a escassez de documentação inovadora, resultante da incipiência da administração primitiva e da perda dos acervos mais antigos, que nunca obtiveram a devida conservação. Por isso, o estudo do passado insular mais remoto privilegia a análise de um conjunto de diplomas muito versado e o cotejo das crónicas mais coevas dos empreendimentos marítimos de Portugal. Este parco campo de pesquisa demanda uma interpretação muito prudente, mas suscita inevitavelmente a incerteza, que gera teses contraditórias e por vezes fantasmagóricas. Nas centúrias mais recentes, apesar da perda de significativos núcleos documentais, por via da insensibilidade e do desleixo, releva sobretudo a riqueza e a abundância das fontes, que propicia uma considerável produção historiográfica.
A pesquisa e o conhecimento do passado manifestam a individualidade açoriana, que resulta de uma vivência de meio milénio num ambiente distinto do continental. Com efeito, a força da geografia condiciona o perfil histórico do arquipélago que, além disso, assume expressões particularmente diversas. O privilegiado posicionamento geográfico no Atlântico, definido pelo determinismo da natureza e pelas técnicas da navegação, e os surtos da economia euro-ultramarina, movidos pela sucessão das experiências coloniais, destacam a participação dos Açores na interacção das civilizações. O afastamento e a descontinuidade geográficos motivam, entretanto, o isolamento, que ampara a cristalização de muitas práticas e representações. Nestas circunstâncias, os planos de investigação relevam a contribuição insular para a construção do universo atlântico e promovem a realização de minuciosos estudos de incidência local, cuja necessidade deriva da dispersão arquipelágica por nove parcelas muito desiguais. No termo do século xvi, as Saudades da Terra do Doutor Gaspar Frutuoso cumprem já estes desígnios. Na verdade, o clérigo micaelense assinala ao mesmo tempo a especificidade açoriana, a correlação com os demais arquipélagos da Macaronésia e o envolvimento nas dinâmicas do Atlântico.
Nas ilhas, a magistral crónica frutuosiana inicia uma longa tradição de estudos históricos, que justifica o prudente uso da expressão «historiografia açoriana». De facto, da era de Quatrocentos aos nossos dias, reconhecemos três fases na pesquisa histórica insular, que possuem nítida correspondência na evolução historiográfica dos demais arquipélagos do braudeliano Mediterrâneo atlântico e do próprio Reino. Assim, no século xviii termina a primeira etapa, que respeita ao predomínio da cronística e à acção do clero. Depois, o tempo oitocentista equivale a um novo ciclo, muito marcado pela ideologia do liberalismo e pela prática do positivismo. Por último, na actual centúria, as manifestações de distintas correntes políticas e culturais coexistem com o aperfeiçoamento dos métodos, que propicia o incremento de uma investigação sólida e moderna. A orientação deste movimento cultural releva a dificuldade da inequívoca identificação de uma historiografia insular, porque a sucessão dos projectos e das realizações coabita com a reprodução de procedimentos e inquietações do exterior, que questiona a revelação de um ramo do saber muito independente.
A estreita correlação com as historiografias metropolitana e do circundante universo atlântico constitui, portanto, a principal característica da historiografia açoriana. Com efeito, a necessidade de articulação do geral com o particular obriga a um esforço de investigação muito plural, que implica a conexão com as problemáticas dos mundos envolventes. Contudo, em vez de pretexto de acomodação, o razoável conhecimento do passado significa sempre um estímulo de porfiada investigação, que possui por instrumento a observância dos ditames científicos mais actuais e por finalidade a redacção de uma história dos Açores, insistentemente reclamada por gerações sucessivas de insulanos.
Origem e fixação do topónimo Açores. A origem do topónimo Açores constitui o primeiro enigma da história insular. No esclarecimento desta questão, relevamos os testemunhos dos cronistas dos séculos xv e xvi, que unanimemente correlacionam o nome das ilhas com a abundância de aves encontrada pelos descobridores. Na discussão desta hipótese, ressaltam duas contrariedades: a hodierna inexistência de açores no arquipélago e o desenvolvimento da caça de altanaria no Portugal de Quatrocentos. Nestas circunstâncias, apenas a admissibilidade da alteração do habitat, resultante da ocupação humana, e a ignorância dos navegadores, insensível à rigorosa diferenciação das espécies, sustentam a integridade da tese mais comum. No entanto, a validade das crónicas, que persiste à porfiada acção da crítica histórica, ainda sustenta a veracidade do postulado avícola, cuja renúncia demanda a apresentação de provas irrefutáveis.
Na fixação do topónimo Açores, identificamos também a justificação religiosa. Neste caso, releva a influência da hipotética devoção de Gonçalo Velho Cabral, tido por descobridor, pela imagem de Santa Maria dos Açores, venerada num lugar do mesmo nome, próximo de Belmonte, terra de naturalidade do navegante. Nesta hipótese, ainda sobressai o incerto empenho da infanta D. Isabel, filha de D. João I. Assim, a piedade da princesa, que priva com Gonçalo Velho, pertencente à casa do infante D. Henrique, intervém no propósito da perpetuação deste culto mariano na empresa dos descobrimentos. Nesta perspectiva, adquire plena propriedade a atribuição das denominações Santa Maria e Açores à primeira ilha descoberta e ao arquipélago, respectivamente. Todavia, o enlevo desta tese contrasta com a falta de testemunhos credíveis e esbarra no cotejo da cronologia. Com efeito, o mutismo da História desacredita a conexão mariana, então muito dependente de artifícios literários e descrições miraculosas. Do mesmo modo, a averiguação dos factos destaca a inverosimilhança da conjectura. Na verdade, ressalta a incongruência da participação de D. Isabel, que deixa Portugal em Dezembro de 1429, para casar com Filipe, o Bom, duque de Borgonha. Nestas circunstâncias, a realização das viagens de Gonçalo Velho Cabral apenas em 1431, ou mais seguramente em 1432, contraditam o directo envolvimento da infanta e até a sua prévia intervenção na determinação do nome Açores. Na altura, a ausência de um plano de descobrimentos impede o capitão originário de Belmonte da previsão de uma posterior incumbência da procura de novas terras, apesar da sua cooperação no esboço da expansão quatrocentista.
A acumulação das incertezas gera naturalmente a proliferação das teses, cujas características residem cada vez mais na insuficiência das provas. A título de mero exemplo, destacamos a concordância do nome Açores com o termo italiano azurri (azuis). Esta hipótese radica na crença do descobrimento trecentista do arquipélago, eventualmente operado por mareantes genoveses, que destacam por elemento de diferenciação do novo achado a tonalidade das ilhas na aproximação marítima.
A problemática da denominação não respeita exclusivamente à origem do nome Açores. Com efeito, a dispersão das ilhas por uma extensa área geográfica motiva o tardio achamento das Flores e Corvo, que permaneceram por algum tempo como conjunto autónomo, ordinariamente cognominado de «floreiras ou corvinas». Por outro lado, outras designações identificam o arquipélago em diversos períodos da sua história, particularmente no decurso da modernidade. Assim, a participação da Flandres no povoamento e a proeminência política e geoeconómica da Terceira entre os séculos xv e xvii determinam os correspondentes epítetos de «flamengas» e «terceiras».
(Re)descobrimento. A questão do achamento dos Açores, apesar de suficientemente dissecada, ainda provoca interpretações dissemelhantes. A principal dúvida reside no confronto entre a defesa da precedência da acção portuguesa do século xv e a averiguação de um conhecimento prévio, cujos defensores ordinariamente consideram trecentista, embora por vezes também admitam uma referência mais antiga. Neste debate, a individualização de um desígnio europeu de expansão marítima anterior à iniciativa da monarquia de Avis constitui obviamente um sério motivo de reflexão. Contudo, a insuficiência das técnicas e a falta dos incentivos económicos determinam o malogro das navegações, que invariavelmente sucede no começo da costa ocidental africana e na proximidade dos arquipélagos atlânticos contíguos, sobretudo as Canárias e talvez a Madeira.
As notícias da chegada aos Açores de povos da Antiguidade carecem de prova incontroversa, que as investigações arqueológicas constantemente refutam. Assim, perdura o enigma sobre os eventuais vestígios da época clássica na ilha do Corvo, mormente a descoberta de moedas fenícias, cujo transporte também se atribui aos povoadores portugueses, e a identificação de uma estátua humana virada a ocidente, cuja verosimilhança apenas reside na referência de Damião de Góis. Nesta conjuntura, os partidários do conhecimento das ilhas antes da era henriquina convergem nas alegadas evidências do século xiv, que derivam da análise das fontes literárias e fundamentalmente cartográficas. No âmbito da literatura, avulta o depoimento do denominado Libro del Conoscimiento, da autoria de um frade mendicante castelhano, que descreve a realização de uma viagem por 25 ilhas do Atlântico oriental, com a eventual inclusão dos Açores. No domínio da cartografia, releva em diversos mapas trecentistas uma representação insular, situada a norte da Madeira em paralelo à costa peninsular, composta de cerca de 9 unidades com designações semelhantes às das futuras ilhas açorianas. Apesar da incorrecta orientação, no sentido N-S em vez de NO-SE, da imperfeição do desenho e da excessiva adjacência ao Reino, vários estudiosos crêem numa efectiva figuração dos Açores, resultante da frequência dos mares por navegantes, porventura estrangeiros. Na base deste descobrimento da era de Trezentos, admite-se a utilização de um procedimento náutico semelhante àquele que possibilita o conhecimento da Madeira. Na prática, trata-se de um desvio da rota de retorno de Marrocos e das Canárias, aproveitando o regime dos ventos e correntes, os rudimentos da navegação astronómica e os progressos da construção naval. A confirmação desta possibilidade ainda demanda a apresentação de provas inequívocas. Porém, mesmo na hipótese de futura certificação, ressalta a contingência do evento, que diverge da organização quatrocentista, decorrente do pioneirismo dos portugueses.
O conhecimento dos Açores implica, porventura, a realização da primeira viagem europeia no mar largo. Assim, sustenta a abertura dos descobrimentos modernos, considerando a sua influência na consecução das grandes travessias de Cristóvão Colombo e Vasco da Gama. Nestas circunstâncias, muitos historiadores salientam a necessidade da utilização de capacidade técnica apenas disponível no século xv, quando ressalta a iniciativa marítima de Portugal. Este entendimento advoga a prioridade henriquina, que se não motiva o achamento do arquipélago determina a sua admissão na marcha da civilização.
No actual estado da investigação, a credibilidade e a clareza dos testemunhos sustentam a legitimidade da corrente historiográfica que advoga a prioridade dos portugueses no século xv. De facto, em referência ao descobrimento dos Açores, os principais cronistas da expansão quatrocentista, mormente Gomes Eanes de Zurara, Diogo Gomes, Martinho da Boémia e Valentim Fernandes, apontam a iniciativa de Gonçalo Velho Cabral do princípio do decénio de 1430. Por outro lado, as fontes cartográficas representam pela primeira vez o arquipélago com fidelidade, propiciando a correcção do nome do descobridor e a previsão da data do achamento. Neste caso, destacamos a utilidade dos mapas do genovês Battista Beccario (1435) e sobretudo do maiorquino Gabriel de Valseca (1439). O estudioso de Génova alude a ilhas de novo achadas na região açoriana, coincidindo com a informação da cronística portuguesa. O cartógrafo de Maiorca desfaz as últimas dúvidas, considerando o rigor da sua descrição nos distintos domínios da figuração, da cronologia e da acção. Com efeito, em vez do informe e tradicional conjunto insular, Valseca apresenta os Açores com correcção, ressaltando a perfeição dos contornos e principalmente a conformidade da localização, que obedece às coordenadas da latitude, da longitude e da orientação. Do mesmo modo, o novo mapa comporta uma inscrição fundamental, que atribui a descoberta ao piloto Diogo de Silves, no ano de 1427. Além disso, a cartografia de Quatrocentos contradita o eventual conhecimento trecentista ilhense, porque persiste muitas vezes na representação em simultâneo do arquipélago verídico e do precedente e imperfeito agrupamento ilhéu, vulgarmente identificado com os Açores. Deste modo, acrescem as dúvidas sobre o desenho do século xiv, vacilando as opiniões entre o resultado de uma exploração prévia à iniciativa henriquina e a manifestação de uma típica tendência medieval, que povoa o oceano de ilhas míticas, procuradas em vão durante séculos.
Na historiografia insular, a legenda da carta de Valseca levanta ainda algumas dúvidas. Em primeiro lugar, avulta o debate da tradicional versão de Gaspar Frutuoso, que situa o descobrimento dos Açores em 1432, atribuído a Gonçalo Velho Cabral, com proeminente e reconhecida participação no advento do povoamento. Depois, ressalta o desconhecimento do navegador Diogo de Silves, cuja identificação resulta apenas de uma leitura paleográfica de Damião Peres, muito firmada no predomínio de navegantes algarvios nos alvores da expansão quatrocentista portuguesa. Por outro lado, esta hipótese surge na sequência de múltiplas sugestões, sucessivamente apresentadas por diversos estudiosos, que destacam quase sempre a dificuldade da interpretação, após o funesto episódio de 1839, resultante de um derrame de tinta sobre o pergaminho, aquando da realização de uma pesquisa em Maiorca, solicitada pela escritora George Sand. Nestas circunstâncias, os corifeus da tese frutuosiana resistem à exegese mais recente, pois perseveram na autoria de Gonçalo Senil (Velho), com similitude nas variantes Diogo de Silves, Sunis, Sines, Sevilha ou Simas, e nas datas de 1432 ou eventualmente de 1437, nas vésperas da carta régia de 1439, que atribui ao infante D. Henrique o encargo da ocupação.
A disseminação dos Açores por um vasto espaço complexifica o esclarecimento do problema da descoberta. Com efeito, após o achamento de Santa Maria e de S. Miguel, logo seguido pelo conhecimento do grupo central, decorre um longo tempo até à exploração das parcelas mais ocidentais e isoladas de Flores e Corvo. Aliás, este conjunto insular até adquire uma denominação diferente, resultante da crença de constituição de um distinto arquipélago. Em relação ao seu descobrimento, a unanimidade dos cronistas move a generalidade dos estudiosos à atribuição do feito a Diogo de Teive, que empreende uma viagem pelos mares do Ocidente, quarenta anos antes da chegada de Cristóvão Colombo ao Novo Mundo. Assim, ganha crédito também a data de 1452, sustentada por referências basilares. Na verdade, em 1448, o mapa do veneziano André Bianco exclui as «ilhas floreiras», cuja representação já se individualiza na carta de Soligo em 1456. Além disso, ressalta a correlação lógica entre a carta régia de doação do Corvo ao duque de Bragança em 1453 com a possibilidade de descobrimento no ano anterior. Neste caso, a única dúvida reside no cepticismo de Viriato Campos, que identifica o Corvo do diploma afonsino com uma ilha mítica, despertadora de maior cobiça do que a espécie de ilhéu açoriano. Porém, mesmo no reconhecimento da veracidade desta tese, a clarificação da entrada dos portugueses no grupo ocidental não exige uma sensível revisão.
No 2.º quartel do século xv, as causas do descobrimento dos Açores demandam alguma reflexão. Em princípio, quadram no grupo diverso e complexo de estímulos geopolíticos e socioeconómicos do impulso europeu de expansão marítima, então muito protagonizado por Portugal, sob apertada pressão castelhana. Todavia, a generalidade desta asserção sempre justifica a pesquisa de motivações mais específicas. O propósito de alargamento da área de influência dos portugueses impõe a diligente exploração dos mares, que releva a utilidade da base açoriana. Contudo, a tradicional evidência da relevância estratégica exige uma interpretação de maior comedimento, porque as importantes funções de escala da rota de retorno da costa africana e de sustentáculo de viagens para Ocidente parecem mais consequência do que motivação do achamento das ilhas em 1427. De facto, a força da geografia irrompe mais tarde, depois da dobragem do mítico cabo Bojador em 1434, da sucessiva chegada dos portugueses à Guiné e Mina e do concomitante estabelecimento de carreiras comerciais regulares, que naturalmente empreendem a volta pelo largo no regresso ao Reino. Por isso, julgamos de maior prudência a conexão do achamento do arquipélago com a necessidade de supressão de dificuldades económicas do país, que não alcançam adequada satisfação no problemático domínio de Marrocos e na principiante arroteia madeirense.
Povoamento. Até ao último quartel do século xv, a questão açoriana não constitui sensível prioridade no projecto expansionista de Portugal, ainda muito restrito à gesta marroquina e eventualmente à incipiente arroteia madeirense. Porém, sempre descortinamos diversas causas, que implementam o povoamento dos Açores. Em primeiro lugar, as adversidades militares do Norte de África, depois a extenuada exploração da Madeira e finalmente a necessidade de domínio dos mares. Contudo, a ocupação ilhense também defronta sérias contrariedades. Neste particular, enumeramos a diversidade e a inclemência do novo meio e a exiguidade demográfica do país, que até gera oposição à primaz empresa de Marrocos. Aliás, diversas opções da colonização comprovam inequivocamente esta penosa conjuntura. A comprová-lo, recordamos a utilização de homiziados, cuja prática enraíza na experiência metropolitana de previdente repovoamento das fronteiras, que mais tarde ainda adquire maior relevo nos arquipélagos de Cabo Verde e de S. Tomé, mais inóspitos na perspectiva dos europeus.
Nos Açores, o ritmo do povoamento resulta das distintas datas do descobrimento, da valorização das ilhas no império português e da contingente situação do Reino. Estas determinantes motivam uma arroteia naturalmente descontínua e morosa, que tarda quase um século. Com efeito, a exploração económica remonta à década de 1430, porquanto uma carta régia de 1439 certifica o prévio lançamento de gado nas ilhas inicialmente descobertas, para sustento dos futuros povoadores. Contudo, no período henriquino, a ocupação circunscreve-se muito às ilhas de Santa Maria e S. Miguel, as primeiras na ordem do achamento e geograficamente mais próximas da metrópole. Além disso, admitimos um eventual desembarque de habitantes na Terceira, mas reconhecemos o despovoamento das demais ilhas dos grupos central e ocidental.
No tempo de D. Fernando, ao invés do sucedido na Madeira, o povoamento dos Açores experimenta uma relativa inacção. Porém, na menoridade de seus filhos, entre os anos de 1470 e 1483, a infanta e viúva D. Beatriz opera um notável incremento da ocupação, através de uma reorganização administrativa, que confere maior uniformidade e eficácia à acção dos responsáveis. Neste caso, relevam os acontecimentos de 1474, nomeadamente em S. Miguel, com a venda da capitania a Rui Gonçalves da Câmara, com experiência do povoamento madeirense, e na Terceira, com a divisão da ilha em duas capitanias, na sequência do enigmático desaparecimento de Jácome de Bruges. Por outro lado, descortinamos a extensão da arroteia às restantes parcelas do grupo central, mantidas quase em abandono desde a era henriquina. No reinado de D. João II, prossegue o esforço desenvolvimentista de D. Beatriz, que logra consolidação já no 1.º quartel do século xvi, com a extensão do povoamento às ilhas mais periféricas de Flores e Corvo. Neste processo, avulta obviamente o papel de D. Manuel, antes donatário e depois rei. A persistente ocupação insular do tempo do Príncipe Perfeito decorre decerto da absoluta prioridade da empresa de além-mar e do acréscimo da relevância do posicionamento geográfico dos Açores. De facto, o aumento de viagens à costa africana e a exploração mais sistemática do Atlântico relevam a utilidade das ilhas, sugerindo o seu conveniente domínio. Por fim, sob o governo manuelino, o estabelecimento da rota do Cabo consagra a preponderância geoeconómica açoriana na nova conjuntura euro-ultramarina, favorecendo necessariamente o povoamento de todas as ilhas.
A escassez de fontes estorva a elucidação da origem e do perfil dos povoadores. Contudo, sempre individualizamos algumas deduções mais seguras. Assim, reconhecemos o predomínio de portugueses de várias províncias, a participação de contingentes estrangeiros, sobretudo flamengos e alguns italianos, e a presença de diversas minorias, porventura foragidas da inclemente repulsa das sociedades estabelecidas. Por outro lado, a chefia do povoamento pertence necessariamente a nobres de segunda linha, cujo anseio de promoção social significa indispensável estímulo para o governo de complexos contingentes populacionais. Todavia, a generalidade dos povoadores corresponde a gente muito simples, sujeita a uma existência adversa, mas eivada de inquebrantável vontade de singrar.
A identificação da proveniência dos colonos metropolitanos encerra muitas incertezas. A tradição sustenta a predominância de portugueses do sul, sobretudo do Algarve, mas também do Alentejo e da Estremadura, no povoamento de S. Miguel e Santa Maria. Esta tese repousa no juízo, aparentemente verídico, da preliminar participação dos contingentes humanos mais próximos dos principais portos da navegação atlântica. Ainda nesta perspectiva, a gradual transformação da expansão marítima em prioritária empresa nacional legitima a cooperação mais tardia de portugueses do Centro e do Norte, cuja concentração ressalta nas parcelas insulares de povoamento mais moroso. No entanto, a falta de provas documentais e a configuração do Portugal quatrocentista requerem a ponderada avaliação da primitiva influência do Sul. Na verdade, se a falta de dados estatísticos irrefutáveis para o século xv favorece a constância do enigma sulista, a análise social metropolitana levanta pelo contrário algumas questões, que contribuem para o esclarecimento da primitiva ocupação das ilhas. Com efeito, distinguimos no Portugal de quatrocentos uma marcante distinção entre a maior densidade populacional do norte marítimo e a insuficiência demográfica das campinas alentejanas e até da costa algarvia, que por vezes sugerem planos incertos de colonização interna. Esta realidade justifica a célere e numerosa presença de gente do Norte, nomeadamente do Minho, no povoamento insular, inclusivamente reconhecida em S. Miguel por Teófilo Braga. Neste panorama, a carência demográfica, a incultura dos campos, as oportunidades comerciais do litoral do Algarve e até a declinante miragem do Norte de África não estimulam decerto a debandada para as ilhas, que implica seguramente uma adaptação difícil às condições inexoráveis do novo meio. Nestas circunstâncias, o estado actual da investigação reconhece apenas a determinante prevalência de metropolitanos no povoamento insular. Além disso, o cruzamento das referências documentais com a comedida interpretação ainda admite a primitiva concorrência de gente do sul, depressa superada pela vinda dos contingentes do Norte.
Entre os estrangeiros, ressalta sobretudo a iniciativa dos flamengos. De facto, no 3.º quartel do século xv, identificamos uma corrente migratória, que tem o Faial como destino fundamental, irradiando depois para o Pico, S. Jorge e Flores. Esta emigração flamenga resulta das dificuldades da demografia portuguesa e das desordens sociopolíticas da Flandres. Contudo, este movimento enraíza igualmente nas ancestrais relações económicas luso-flamengas, que justificam a fundação de uma importante feitoria portuguesa no Norte, e na recente aproximação política, decorrente do casamento da infanta Isabel, filha de D. João I, com o duque de Borgonha, Filipe, o Bom, pai de Carlos, o Temerário. A significante designação de Nova Flandres, atribuída por Martinho da Boémia à ilha do Faial, testemunha o impacte da ocupação flamenga nos Açores. Porém, a falta de continuidade deste surto migratório faculta a inevitável absorção, resultante da permanente chegada dos portugueses. No entanto, os sinais da presença dos flamengos nas ilhas do grupo central vencem a sequência dos séculos, com expressivas manifestações na cartografia, toponímia e onomástica. No contingente de povoadores estrangeiros, verificamos ainda uma menor participação de italianos, movida por intentos de exploração marítima e principalmente pelas oportunidades económicas abertas pela primitiva arroteia portuguesa.
No povoamento insular, distinguimos ainda a cooperação de minorias, nomeadamente degredados, negros, mouriscos e judeus, em proporções reduzidas e incertas. A utilização de homiziados transpõe para as ilhas uma prática metropolitana tradicional. Em referência aos escravos negros, desembarcam nos principais portos do Reino, no termo de rotas marítimas que escalam os Açores. Todavia, a comunidade servil nunca adquire particular relevo na colonização açoriana, embora se admita uma maior participação na ocupação de ilhas mais periféricas. No caso dos mouriscos, Gaspar Frutuoso alude à sua presença em S. Miguel, naturalmente em pequeno número, logo após a autorização de povoamento de 1439. Os judeus e cristãos-novos encarariam decerto as ilhas como um espaço de maior liberdade. Aliás, a atribulada expulsão da Península Ibérica no declinar do século xv acentua, porventura, este sentimento. Porém, o estudo das posteriores práticas inquisitoriais no arquipélago não demonstra a presença de uma comunidade de origem judaica superior aos quantitativos reinóis, necessária ao sustentáculo de uma primitiva e relevante participação hebraica.
Afora a predominância dos povoadores continentais, distinguimos nos arquipélagos diversas migrações, que certificam a ocupação intensiva das parcelas primeiramente descobertas e favorecem a conveniente arroteia das ilhas mais isoladas. Com efeito, na 2ª metade de Quatrocentos, individualizamos a transferência de madeirenses para os Açores. Do mesmo modo, no princípio do século xvi, muitos habitantes do grupo central participam no povoamento das Flores e Corvo. As implicações do direito sucessório e o estímulo de novas oportunidades condicionam certamente este movimento, que ainda significa uma corajosa busca de soluções no seio da nascente sociedade insular.
Administração. Ver Administração. Idade Moderna.
Economia. A recolecção e a troca de produções silvestres constituem os primeiros expedientes da subsistência e da acumulação de riqueza. No entanto, o esforço de organização do espaço implica o propósito de valorização da economia. Para o efeito, a coroa define uma política de estímulos à fixação de povoadores e ao concomitante progresso das arroteias, através da declaração de isenções fiscais à exportação e da concessão de terras em regime de sesmarias. Nestas circunstâncias, o labor dos moradores origina rapidamente o surgimento de uma estrutura económica firmada em dois pilares capitais: a garantia do provimento quotidiano e a mitigação de carências externas.
A subsistência e a exportação representam, desde o século xv, os principais incentivos da actividade dos insulanos, gerando um modelo de economia plural. Com efeito, a necessidade de auto-abastecimento promove a diversificação da agricultura, bem como o fomento do comércio local e interilhas. Ao invés, as solicitações dos mercados metropolitano e europeu determinam a especialização, alicerçada no predomínio de certas culturas. Estas características evidenciam uma marcante influência do exterior na definição do quadro económico açoriano, que paradoxalmente significa progresso e debilidade. De facto, a precaridade das conjunturas euro-ultramarinas motiva períodos de grande prosperidade abruptamente separados por fases de declínio, que determinam uma busca inquieta de novas soluções. Nestas circunstâncias, alguns historiadores caracterizam a história económica das ilhas pela sucessão de distintos ciclos. A cuidada averiguação dos factos desmistifica, entretanto, esta visão, cuja simplicidade granjeia acolhimento. Na verdade, a restritiva noção de ciclo implica obviamente a monocultura e, por conseguinte, a dependência dos mercados externos, para a colocação de exportações e a compra de abastecimentos. Nas ilhas, nunca reconhecemos esta situação, porque a obrigação da subsistência e a diversidade do meio admitem apenas a desigual predominância de diversas produções. Na realidade, as dificuldades de comunicação, as privações continentais e até a perspectiva colonial ditam o autoprovimento das novas comunidades insulares, que impossibilita a monocultura. Do mesmo modo, a heterogeneidade dos ambientes impõe a explícita arrumação dos produtos, criando um estado de equilíbrio.
Na economia açoriana, testemunhamos ainda o coerente cruzamento da tradição com a modernidade. De facto, os portugueses transportam para as ilhas os ingredientes da dieta alimentar metropolitana, concretamente os cereais e o vinho, mas a crescente procura europeia fomenta as novidades, sobretudo o açúcar e o pastel, que muito beneficiam das experiências de italianos e flamengos. Assim, o arquipélago corresponde em pleno aos propósitos económicos da expansão quatrocentista portuguesa, porque suaviza as tradicionais carências frumentárias nacionais, curiosamente agravadas pela empresa africana, e suscita a obtenção de muitos proveitos, resultantes da comercialização de novas produções em circuitos internacionais. Além disso, os Açores constituem campo de ensaio e transplante de culturas para o restante universo atlântico, cuja função por vezes resulta em ruinosa concorrência, quando a fertilidade e a extensão dos solos de além-mar superam as limitações da produtividade ilhense.
Na sucessão do tempo, individualizamos diversas fases na economia açoriana, caracterizadas pela concomitância de produtos e de transacções. Assim, logo após a organização do espaço, reconhecemos a emergência de um sistema económico, que se desenvolve sensivelmente até à 2.ª metade do século xvii. Neste longo período, as principais actividades decorrem da produção de cereais e plantas tintureiras, nomeadamente trigo e pastel, e da participação das ilhas no trato euro-ultramarino, resultante da habitual escala das armadas da Índia portuguesa e da América espanhola na baía de Angra.
Os estímulos da produção de cereais derivam da tradição metropolitana, da aptidão da natureza e do incentivo do mercado. Os resultados revertem em colheitas anualmente muito férteis, que evidenciam diferentes índices de produtividade, consoante os solos e as épocas. Com efeito, avulta desde cedo a abastança de S. Miguel, a escassez de S. Jorge e sobretudo do Pico, e a suficiência e a temperança das demais ilhas, onde ressalta o decréscimo do rendimento terceirense, que até inícios do século xvi quase equivale ao micaelense. Além disso, a partir de meados de Quinhentos, surgem paradoxalmente crises frumentárias nas ilhas do grupo central, que radicam em causas naturais, mas sobretudo em artifícios mercantis. Assim, reconhecemos os efeitos do depauperamento das terras, da difusão das pragas e do aumento demográfico e principalmente as consequências da excessiva exportação e da concorrência do pastel. Nestas circunstâncias, entendemos o surgimento de regulamentação régia e de práticas municipais, que visam a salvaguarda da subsistência dos mais pobres.
A procura europeia e a pretensão do lucro incentivam a produção de pastel, que depois sucumbe perante a concorrência do índigo americano, o peso da tributação e os malefícios da falsificação. Entre a introdução, sensivelmente em finais do século xv, e o declínio, no 2.º quartel de Seiscentos, esta cultura conhece uma fase de crescimento, na 1.ª metade de Quinhentos, e uma época de apogeu, na 2.ª parte do século xvi e no início do século xvii.
Ainda no âmbito da produção, o cultivo da cevada, a introdução do milho e a apanha da urzela evidenciam o predomínio dos cereais e das espécies tintureiras, embora não atinjam a relevância do trigo e do pastel. Além disso, a difusão da vinha e o declínio da cana-sacarina constituem características marcantes da agricultura açoriana. De facto, a tradição metropolitana motiva a multiplicação das vinhas, que origina o acréscimo das colheitas, particularmente nas ilhas do grupo central, onde sobressai a aptidão dos solos, sobretudo no Pico. Porém, o vinho constitui principalmente um ingrediente da alimentação quotidiana, embora o aumento das produções e a melhoria da qualidade sustentem o início da exportação. Em referência ao açúcar, a inaptidão da natureza e a concorrência da Madeira e de S. Tomé determinam rapidamente o colapso da cultura, que só atinge alguma expressão em S. Miguel no século xv, na região de Vila Franca e nas proximidades de Ponta Delgada. Por último, os propósitos de auto-abastecimento implicam a diversificação económica. Assim, individualizamos o desenvolvimento de produções, como o linho e a fruta, e de actividades, como a exploração madeireira, a criação de gado, a pesca e a caça.
A riqueza agrícola e as condições geográficas motivam o desenvolvimento das relações comerciais. Além da correspondência insular, que previne o auto-abastecimento e fomenta a exportação, descortinamos desde cedo a inserção do arquipélago nos principais circuitos do comércio metropolitano, internacional e ultramarino. No complexo económico constituído pela metrópole, praças marroquinas e ilhas, a questão frumentária define o carácter das permutas, que implica o controlo oficial e a eventual resistência dos agentes económicos. Na verdade, identificamos a primazia da exportação de cereais dos Açores para o Reino, o Norte de África e a Madeira, perante a subalternidade da importação de bens metropolitanos, onde só ressalta a constância do sal, a par da frequência do azeite e da eventualidade das manufacturas. Na frente europeia, avulta a venda de pastel para a Europa do Norte, muito favorecida pelos delegados britânicos e pela liberdade das transacções, que facultam a obtenção de maior lucro e a entrada de bens manufacturados. Além disso, admitimos a influência dos carregamentos de além-mar, que possibilita a redistribuição e o contrabando, e a irrelevância do trigo, determinada pelo desinteresse dos mercadores estrangeiros. Na conexão ultramarina, releva a valia da escala de Angra, onde as frotas procedem ao reabastecimento de víveres, à reparação e ao reagrupamento de embarcações, ao armazenamento provisório de mercadorias e à recolha de informações. Nesta situação, a prevenção régia e a cobiça dos locais e dos forasteiros sempre permitem algum trânsito de produtos exóticos e mais raramente de metais preciosos. Este panorama sustenta a crença no impacte das rotas transatlânticas sobre a economia açoriana, alicerçada nos relatos fantasiosos de diversos cronistas. Todavia, na actualidade, os historiadores subvalorizam a transformação do modo de vida ilhense, operada pela assiduidade dos navios do Oriente e América. Assim, individualizamos apenas indícios de mudança nos principais centros urbanos, que definem uma imagem muito complexa do sistema económico açoriano, dividido entre o arcaísmo e a modernidade das opções e dos procedimentos.
Na 2.ª metade do século xvii, destacamos uma ambiência de crise, que altera os equilíbrios económicos anteriores, impondo uma redefinição de procedimentos. No contexto insular, o declínio da cultura do pastel aniquila a fonte de maior rendimento, que não logra a rápida substituição por uma alternativa de idêntico proveito. Na dimensão euro-ultramarina, a decadência dos ibéricos e o fortalecimento dos nórdicos alteram o giro e a cadência das relações transatlânticas, ofuscando a tradicional inserção das ilhas na correspondência entre continentes. Nestas circunstâncias, a conjugação de dificuldades internas e externas gera uma conjuntura de grande adversidade, porque o decréscimo das plantas tintureiras inviabiliza a opção por uma estratégia de desenvolvimento local menos dependente da inconstância do comércio internacional.
A fertilidade agrícola e a preponderância da geografia sempre superam a crise do ocaso de Seiscentos, originando a constituição de um novo paradigma económico, que perdura até ao advento da contemporaneidade. Na produção, a par da permanência dos cereais, reconhecemos a expansão da vinha, o desenvolvimento do linho e a evidência da laranja. No comércio, a persistência do determinismo geográfico centra o arquipélago numa encruzilhada ainda mais densa de rotas transatlânticas. Todavia, a definição da nova economia acarreta transformações internas, que alteram precários equilíbrios do passado. Assim, emerge a inequívoca proeminência de S. Miguel, porque a extensão territorial sustenta o progresso da agricultura e move a conquista dos mercados. Ao mesmo tempo, avulta a emergência do Faial, resultante do desenvolvimento da viticultura picoense e da frequência dos ingleses, e a estagnação da Terceira, motivada pela atonia produtiva e pela depreciação da escala angrense, concomitante da decadência da rota do Cabo.
Os estímulos da natureza e da exportação ainda sustentam a primazia dos cereais, particularmente do trigo. No entanto, em referência ao passado, reconhecemos algum retrocesso, resultante do eventual decréscimo da produtividade e do agravamento dos contrastes entre a abundância ou a suficiência de S. Miguel, Terceira, Santa Maria, Graciosa, Flores e Corvo e a carência no Faial, S. Jorge e Pico. Assim, acrescem as crises frumentárias, sobretudo no grupo central, em consequência das esterilidades, da exportação excessiva e dos artifícios mercantis. Nestes casos, a garantia das sementeiras e do provimento popular obrigam, por vezes, à proibição da extracção e mais raramente ao expediente da importação. Ainda no âmbito cerealífero, a principal novidade consiste na expansão do milho, resultante da excelente aclimatação e da sua utilidade no sustento dos povos. Além disso, persiste o tradicional cultivo da cevada, que alcança mais evidência na Graciosa. Contudo, a alimentação dos mais pobres e as rupturas de abastecimento de grãos ainda determinam o emprego de outros víveres. Em primeiro lugar, distinguimos o préstimo de leguminosas, particularmente as favas e o feijão, que medram com abundância em S. Miguel, suscitando a comercialização nos anos mais férteis. Por último, releva o proveito do inhame, que nas ilhas mais carenciadas constitui o remédio dos maiores males.
O incentivo da procura colonial e a influência do incremento metropolitano e madeirense motivam a expansão da vinha, que converge nas ilhas do grupo central, sobretudo no Pico, mas também em S. Jorge, Graciosa e Faial e, mais tardiamente, na Terceira. Apesar da baixa reputação dos vinhos açorianos, a imitação do procedimento funchalense de controlo da qualidade faculta a distinção das produções do Pico e do lugar dos Casteletes em S. Jorge. Assim, a conquista de mercados ultramarinos, a cobrança de imposições e a valorização do porto da Horta constituem os principais indícios da uberdade vinícola, que ainda motiva a produção de muita aguardente, impulsionada pela procura brasileira e pelo risco de deterioração dos vinhos. Aliás, os excessos da destilação geram ocasionalmente rupturas de abastecimento, que por vezes também decorrem dos efeitos das esterilidades e das fraudes comerciais.
Ainda no domínio produtivo, a abundância de linho e fruta, muito dependente do contributo micaelense, contrasta com o declínio das tintureiras e a insuficiência do parque florestal. Com efeito, o estímulo do mercado brasileiro motiva a difusão da cultura do linho, que também determina a prática da tecelagem, bem evidente na multiplicação dos teares caseiros e até na edificação de uma fábrica de tecidos na Ribeira Grande, no 1.º quartel do século xviii, por iniciativa do donatário. Do mesmo modo, na 1.ª metade de Setecentos, o incremento da cultura da laranja constitui prenúncio de um tempo de riqueza, estribado na exportação para destinos setentrionais. Ao invés, a colheita de sumagre e a apanha da urzela, regulamentada por um contrato de 1739, não superam o desaparecimento do pastel, que permanece como símbolo da antiga uberdade tinturial. De igual forma, o regulamento do abate de árvores e da comercialização de lenha manifestam a falta de madeira, cuja produção se concentra sobretudo no Pico, S. Jorge e Flores e na jurisdição micaelense de Vila Franca. Por isso, a importação do Brasil, Inglaterra e América do Norte acorre ordinariamente às necessidades da construção civil.
A criação de gado, a pesca e a caça figuram sempre como ramos de actividade económica de relevância muito variável. Com efeito, a sobriedade cinegética contrasta com a indispensabilidade da faina marítima e sobretudo com a importância da pecuária. No entanto, as tarefas piscatórias cumprem exclusivamente propósitos de subsistência, porque a iniciativa dos estrangeiros e a concorrência brasileira delongam a organização da captura de cetáceos, que possibilita um aproveitamento de tipo industrial. Assim, releva o valimento do gado, que garante as lides agrícolas e o sustento dos povos.
A agricultura e a geografia fomentam de novo o comércio, que evidencia a multiplicação das transacções insulares e a constância das relações externas, nas frentes metropolitana, internacional e ultramarina. No trato ilhense, o nivelamento das assimetrias económicas, a concentração das exportações e a redistribuição das importações constituem os principais objectivos. No entanto, a proximidade, a diversificação das economias e a questão frumentária determinam a frequência dos contactos no grupo central e consequentemente o alheamento das ilhas orientais, onde a auto-suficiência de S. Miguel dita a preferência pelos mercados externos, e ocidentais, devido ao isolamento e à falta de incentivos. Porém, ainda reconhecemos conexões interilhas mais particulares, muito determinadas por imperativos de vizinhança e pelo estabelecimento de laços de dependência político-económica. Assim, avulta sobretudo a relevância do conjunto Faial-Pico e ainda as afinidades entre Terceira-S. Jorge-Graciosa, S. Miguel-Santa Maria e Flores-Corvo.
Nas relações externas, a exportação de víveres, sobretudo cereais, mas ainda legumes, carne e até alguma aguardente, define a correspondência com o Reino, a Madeira e o Norte de África. No retorno, as ilhas recebem invariavelmente sal e azeite metropolitanos, além de artefactos de origem portuguesa ou britânica. Neste giro mercantil, a conformidade entre as produções insulares e continentais dificulta o estabelecimento de trocas de mútua vantagem. Assim, identificamos por vezes um trato tendencialmente unidireccional, movido pelo estímulo da questão frumentária reinol, que destaca a importância do trigo açoriano. Na dimensão euro-ultramarina, as permutas com o Brasil e os contactos com o Norte assumem a maior importância. Em referência à colónia sul-americana, a interdição da liberdade da navegação origina um regime muito restritivo de concessão de licenças à margem das frotas régias, que motiva a repulsa dos agentes comerciais. Todavia, sempre releva o préstimo do tráfico, firmado na exportação de aguardente do Pico, linho de S. Miguel e comestíveis locais e estrangeiros, consoante o estado do abastecimento público e a regulamentação da coroa, contra importações de açúcar e de produções tropicais muito variadas, como por exemplo azeite de peixe, mel, madeira, couros, algodão e arroz. Por outro lado, ainda sobressai a escala insular das armadas oficiais, que favorece a redistribuição e o contrabando, apesar do reforço da vigilância e da desvalorização da escala açórica, comparativamente ao tempo de preponderância da rota do Cabo. Sobre as correlações com o Norte, sublinhamos um grande acréscimo no século xviii, muito caracterizado pela saída de vinho do Pico para a América do Norte e de laranja de S. Miguel sobretudo para a Europa setentrional e pela entrada de manufacturas e víveres, que suprem as carências do Faial-Pico.
Geoestratégia. O posicionamento geográfico dos Açores em pleno Atlântico resulta no desempenho de um papel de relevo na correspondência intercontinental. Na verdade, o determinismo do mar e as condições da navegação convertem as ilhas em esteio das rotas transatlânticas. Esta função ocorre em todo o tempo da realização de viagens à vela, independentemente da diversidade dos principais protagonistas da exploração do além-mar. Assim, emerge logo com o advento da expansão quatrocentista, mas acresce a partir do século xvi, quando o pioneirismo português já coexiste com a concorrência castelhana e até com a participação dos nórdicos, redundando em maior conhecimento do mundo, que implica a multiplicação das conexões.
Na era de Quatrocentos, identificamos dois motivos que destacam o préstimo estratégico dos Açores, concretamente a exploração da costa de África e o fascínio do Ocidente. Na verdade, após a chegada dos portugueses à Guiné e Mina, o retorno ao Reino impõe a ordinária volta pelo largo, que invariavelmente toca nas ilhas, destacando pela primeira vez a valia da escala açoriana para o reabastecimento e a segurança das armadas. Além disso, o alargamento do domínio de Portugal também implica a exploração do hemisfério austral que converte o arquipélago em base de conhecimento do mar ou de descoberta de territórios ignotos, referenciados em diversa literatura. Na transição para o século xvi, o descobrimento da Índia e da América consolida a importância estratégica dos Açores, que garante apoio às rotas comerciais portuguesas e espanholas, conferindo maior solidez ao monopólio ultramarino dos ibéricos, reconhecido pelo Tratado de Tordesilhas.
Nas ilhas, o amparo das carreiras comerciais sucede geralmente na baía de Angra, durante a quadra estival, quando amaina a inclemência do mar. No termo de viagens transatlânticas longas e desgastantes, o arquipélago constitui um ponto de reencontro de embarcações que, por imponderáveis da natureza, arrostam com os riscos de dispersão. No entanto, a reunião das frotas intenta a reconquista de maior capacidade de dissuasão. Neste caso, sobressai o perigo da navegação entre os Açores e o cabo de S. Vicente, porque à imprevisibilidade climática acresce agora a perseguição de corsários e piratas. Contudo, a importância da escala açoriana decorre principalmente do reabastecimento de víveres e da reparação de avarias. Uma vez mais, pesa o curso dilatado das carreiras marítimas, que origina a deterioração dos alimentos e a degradação dos materiais. Em conjunturas mais peculiares, ainda sucede o desembarque provisório de carregamentos, movido pelo receio de naufrágios ou pelo temor de inimigos. Por último, importa a recolha de informações sobre tendências do comércio ultramarino, nomeadamente carregamentos, preços, datas e rotas, com muito relevo na programação das actividades económicas das buliçosas praças peninsulares de destino das armadas.
No século xvi, os Açores também movem a ambição expansionista dos povos da Europa do Norte, que consideram a escala insular meio de aproximação ao além-mar e expediente de acesso aos carregamentos mais exóticos e valiosos. Nestas circunstâncias, ressalta o compreensível envolvimento das ilhas nas contendas da modernidade, que invariavelmente confrontam ibéricos e nórdicos sobre a partilha do Ultramar. Assim, no ocaso de Quinhentos, a rebeldia terceirense e a conquista espanhola espelham a proeminência do arquipélago nas ligações entre o velho e o novo mundos à luz das rivalidades europeias. Com efeito, este episódio ameaça a estabilidade do colossal império filipino, recentemente acrescido pelas possessões portuguesas, e possibilita a redistribuição do Ultramar, requerida com insistência pelas potências nórdicas. Nesta perspectiva, a resistência aos espanhóis não constitui simples consequência da crise dinástica de 1580 e, por isso, reclama uma explicação consistente, que modere o tradicional móbil do patriotismo dos açorianos, particularmente dos terceirenses. Na verdade, a arrojada defesa da causa portuguesa repousa na determinante influência geopolítica dos Açores, que suscita o apoio militar de França e Inglaterra contra as pretensões hegemónicas de Espanha.
Até ao século xvii, a utilidade estratégica confere aos Açores uma projecção invulgar nos contextos nacional, internacional e ultramarino. Neste longo período, relevam primeiro o pioneirismo dos portugueses e depois a paridade luso-castelhana, resultante da partilha de 1494, sufragada pela Santa Sé. Neste caso, a subalternização das potências da Europa do Norte depressa resulta em oposição à política do mare clausum, que salvaguarda para os peninsulares o monopólio da exploração ultramarina. Assim, a irrupção das disputas determina ordinariamente o envolvimento dos açorianos, porque o domínio dos mares constitui o expediente de engrandecimento dos estados.
No termo de Seiscentos, a nossa historiografia assinala a perda da relevante influência estratégica dos Açores. Este entendimento radica no declínio dos impérios peninsulares que, ao cabo de dois séculos de monopólio colonial, enfrentam a forte concorrência de ingleses, franceses e holandeses no Oriente e na América. Na verdade, a importância do posicionamento geográfico do arquipélago e a sua inserção nos circuitos do comércio internacional diminuem naturalmente com a decadência do domínio ultramarino de Portugal e Espanha. Do mesmo modo, a chegada dos países do Norte ao além-mar transfere para paragens bem mais longínquas o palco privilegiado de confronto entre os principais potentados europeus e ofusca a preponderância comercial das ilhas. Assim, o relacionamento euro-atlântico minimiza o interesse da escala açoriana, aconselhando a opção por uma estratégia de desenvolvimento interno menos dependente da imprevisibilidade do tráfico externo. De facto, após a função quatrocentista de etapa da conquista do Novo Mundo e o desempenho do destacado papel de escala e bastião de defesa e vigia do Atlântico nos séculos xvi e xvii, só na era de oitocentos as vicissitudes das lutas liberais erguem os Açores a uma posição de semelhante relevo internacional. Porém, esta visão subvaloriza a preponderância da geografia, que confere sempre às ilhas perspícua projecção nas relações entre a Europa e o Ultramar. Aliás, curiosamente, diversos autores estrangeiros contrariam com persistência a síndrome de crise sublinhada pelos nacionais, realçando a constância da utilidade estratégica do arquipélago, quando se adivinha a supremacia da Europa do Norte nos mares. Desta forma, sustentam que os Açores, à semelhança do sucedido nas centúrias de pioneirismo dos ibéricos, também fortalecem o primado ultramarino dos nórdicos, nomeadamente dos britânicos. Por isso, no início de Oitocentos, o inglês Thomas *Ashe até sugere a transformação das ilhas em protectorado de Londres, considerando a valorização geográfica dos Açores nas carreiras transatlânticas da Inglaterra, então preponderante.
A evolução da guerra de corso e da pirataria e a organização da defesa comprovam a participação dos Açores na abertura e exploração do mundo. Na verdade, a cobiça dos carregamentos de além-mar motiva a frequência do mar por esquadras de ladrões que, no permanente fito do roubo, investem contra as ilhas mais indefesas. Nestas circunstâncias, a fortificação costeira e a vigilância marítima constituem os principais expedientes da obtenção de maior segurança.
A guerra de corso e a pirataria remontam a tempos muito longínquos, ressaltando por frequência mais ordinária as pugnas mediterrânicas, comodamente legitimadas pela tradicional rivalidade entre cristãos e infiéis. Desta forma, nos alvores do século xvi, reconhecemos apenas a extensão deste fenómeno à largueza do Atlântico, donde procedem as produções exóticas ultramarinas. Assim, a força da geografia transforma rapidamente os Açores em relevante cenário de peleja, que implica a insegurança dos mares, o acometimento das ilhas, sobretudo as mais pequenas, periféricas e desguarnecidas, e o temor das populações, cuja reacção vacila entre a resistência, a fuga ou a colaboração. A identidade de corsários e piratas coincide naturalmente com a averiguação dos povos mais preteridos pelos sucessivos modelos de partilha do além-mar. De início, avulta a iniciativa dos nórdicos, particularmente os franceses e os ingleses, cuja actividade deriva do encadeamento das relações diplomáticas internacionais, muito determinado pelo debate de Tordesilhas. Com efeito, para a 1.ª metade de Quinhentos, destacamos a acção dos gauleses, enquanto no termo da mesma centúria acresce a actuação dos britânicos, encorajada eventualmente pela conquista filipina de 1583, mas sobretudo pela guerra anglo-hispânica, que confere maior legitimidade e arrojo à perseguição e apresamento das frotas comerciais ibéricas. Depois, sobressai a operação dos berberes, que denota o declínio comercial do Mediterrâneo, perante a exploração mais proveitosa do Atlântico. De facto, a presença crescente dos norte-africanos é já perceptível em Seiscentos e prepondera em meados do século xviii, quando ressalta o temor dos mouros, apesar da individualização de acções de corsários e piratas europeus, consoante o curso das disputas inter-estatais.
A utilidade estratégica das ilhas, que gera a cobiça dos estrangeiros, constitui um grande incentivo à organização e ao reforço da defesa. Assim, a fortificação dos principais ancoradouros e ilhas representa uma prioridade, que acompanha o desenvolvimento do tráfico transatlântico. Do mesmo modo, o policiamento das águas demanda muita diligência, movendo a criação da *armada das ilhas e a nomeação do provedor das Armadas da ilha Terceira ainda no 1.º terço do século xvi, posteriormente complementadas com outros expedientes de fortalecimento da vigilância marítima. No princípio do século xvii, a construção da fortaleza terceirense do Monte Brasil comprova a omnipresença da prevenção militar, consequente do estímulo da estratégia. Na verdade, o então castelo de S. Filipe resulta mais da necessidade de consolidação do primado marítimo dos ibéricos do que do propósito de punição da rebeldia dos insulanos. Assim, consiste no aproveitamento da inacessibilidade do promontório angrense, que redunda na edificação de uma cidadela para acolhimento de militares e civis, armazenamento de víveres e munições e eventual exploração agrícola. A averiguação das funções explicita ainda melhor os desígnios do empreendimento, porque a protecção do mar coexiste com a submissão da cidade.
Sociedade. No advento da colonização insular, a virgindade do novo meio possibilita a definição de um convívio humano diferente, firmado em relações de maior equidade. Daí, a identificação do expediente de dados de terras em regime de sesmarias com uma base de estruturação colectiva, eventualmente tributária de intentos de utopia social. De facto, a política de concessão de propriedades favorece a criação de uma sociedade de arrazoados possidentes, mais justa e principalmente atractiva. No entanto, o expediente sesmeiro resulta apenas de requisitos de povoamento muito pragmáticos, que até enraízam na experiência de (re)ocupação de regiões metropolitanas, ordinariamente sujeitas a incursões militares. Nestas circunstâncias, apesar da diversidade da geografia, reconhecemos a célere reposição nos Açores do tradicional modelo societal reinol e europeu, que resiste por muito tempo ao turbilhão das transformações decorrentes da abertura dos mundos, que distingue a Idade Moderna.
Até aos alvores da contemporaneidade, a sociedade açoriana perfilha um modelo de tripartição, assente na coexistência das três ordens tradicionais: o clero, a nobreza e o povo. Além disso, individualizamos franjas de marginais, sobretudo escravos e cristãos-novos, que embora detentoras de estatutos assaz diversos logram com semelhante dificuldade a plena integração. No entanto, este sistema de organização social ainda adquire maior simplicidade quando reverte no confronto entre privilegiados e não privilegiados, cuja diferenciação reside essencialmente na lei, que converte a honra e a capacidade de mando em apanágio de uma minoria. Além disso, a riqueza também contribui para a distinção dos grupos. Neste particular, a maior dignidade provém da posse da terra, porque a mera força do dinheiro ainda não significa a obtenção de um proporcionado decoro sociopolítico, apesar da confluência insular das rotas transatlânticas, que alteram a fisionomia económica da velha Europa.
O reconhecimento de uma matriz de organização social coexiste sempre com princípios de transformação, cuja actividade resulta na inversão dos procedimentos, antes da gestação de um novo modelo. Aliás, nos Açores, a identificação da rígida estrutura societal do Antigo Regime defronta alguns embaraços. Neste particular, ressaltamos as influências das especificidades locais e da pressão dos grupos, que forçam a flexibilidade do sistema. Com efeito, nas ilhas mais pequenas e periféricas, a exiguidade do espaço e o isolamento dos homens determinam, pelo menos nos tempos mais remotos, a dificuldade do preenchimento de todas as hierarquias. O resultado consiste no afrouxamento de algumas distinções, que suscita a promoção dos indivíduos. Neste caso, registamos o benefício de uma aristocracia de estirpe popular, que logra o desempenho de funções próprias de gente de maior condição. Nestas circunstâncias, a Terceira, S. Miguel e eventualmente o Faial reflectem melhor o ordenamento social da modernidade. Porém, a concentração urbana, que motiva o crescimento de Angra, de Ponta Delgada e mais tardiamente da Horta, também transporta germes de mudança, nomeadamente as aspirações de elevação dos estratos mercantis, firmadas na conversão do enriquecimento em móbil de nobilitação. Assim, detectamos indícios de osmose entre membros de diversas camadas sociais, mas a fixidez permanece claramente sobre a mutação. Na realidade, a iniciativa dos burgueses esbarra ordinariamente na resistência dos nobres, que defendem a exclusividade dos privilégios, adiando a transfiguração da riqueza em expediente da conquista de poder. Na globalidade, até ao século xviii, o quadro social açoriano segue a evolução mais geral. De facto, corresponde a uma longa transição, caracterizada pelo contraste sempre crescente entre a cristalização da estrutura e a diversidade das práticas. Na verdade, só experimentamos um estado de viragem na era do liberalismo, quando averiguamos manifestações insulares da prevalência da ruptura sobre a adaptação na estratégia de progresso das forças inovadoras.
A análise social demonstra uma situação de grande heterogeneidade, que contrasta com a simplicidade de uma divisão em três ordens, acrescida pela individualização de corpos especiais. Com efeito, as clivagens imperam no seio dos estados. Entre os privilegiados, o maior poder pertence a uma minoria de clérigos e de nobres. A elite eclesiástica acresce com a criação da diocese de Angra em 1534. O escol nobiliárquico compreende aqueles que logram a concentração patrimonial e o exercício do mando nas instituições da administração local ou de representação da coroa. No povo, a diferenciação económica estabelece uma clara destrinça entre uma espécie de aristocracia, constituída por lavradores e mercadores, alguns dos quais estrangeiros, e uma chusma de remediados, pobres e indigentes, que equivale ao grosso da população. Porém, todos aceitam a segregação de cristãos-novos e de escravos, ampliando com o preconceito o regime de exclusão vertido em diversa legislação.
As conveniências e as mentalidades impedem a conversão da heterogeneidade em agente de mudança. Na verdade, prevalece o respeito pelo princípio da organização social, que apenas arrosta com desígnios individuais de promoção. No grupo dos privilegiados, sobretudo entre os nobres, o temor da depreciação fomenta a defesa da ordem vigente, originando solidariedades e até estratégias de sobrevivência, que acarretam a vinculação, a consanguinidade e o celibato. Neste contexto, os custos da estabilidade consistem na má sorte dos filhos segundos, na melhor das hipóteses remetidos para a carreira eclesiástica, para a função militar e menos frequentemente para o cultivo das letras. No terceiro estado, a pressão dos mais ricos, os lavradores e sobretudo a gente dos negócios, comunga do mesmo espírito de respeito pela hierarquia societal, cuja consistência ainda beneficia da falta de capacidade de intervenção da multidão dos mais pobres, invariavelmente constrangida entre o propósito da subsistência e o estigma da marginalidade. Nesta conjuntura, ressalta ainda mais a incapacidade de transmutação das minorias, que acima de tudo almejam uma oportunidade de integração.
O estudo da sociedade implica naturalmente a averiguação do número e da mobilidade dos homens, cuja identificação ainda suscita interrogações, apesar da multiplicidade das referências. O acerto da quantificação deriva da tipologia das fontes, que primam por imprecisão e irregularidade até à 2.ª metade do século xviii, originando a contradição dos juízos, por vezes demasiado dependentes da variação das condições materiais de subsistência. O sentido e o volume do giro das gentes decorre da índole da geografia. Assim, as relações de vizinhança e as assimetrias político-económicas fomentam a correspondência ilhense. No entanto, relevam as afinidades atlânticas. Neste caso, a par da correlação metropolitana, ressalta a tentação do Ultramar, resultante da conversão das ilhas em ensaio e expediente da construção do Império.
Até à instituição da Capitania-Geral em 1766, o governo civil não implementa o criterioso cômputo dos povos. Assim, as principais estatísticas, necessariamente inconstantes e incompletas, resultam de diligência eclesiástica, que desperta a curiosidade e o registo dos mais insignes cronistas, também pertencentes ao estado clerical. No entanto, a insuficiência dos dados, que demanda a análise minuciosa dos assentos paroquiais, sempre possibilita o reconhecimento aproximado da evolução demográfica açoriana no decurso da modernidade. No 1.º terço do século xvi, a ocupação das Flores e do Corvo marca o termo do povoamento, que demora cerca de um século. Depois, as gentes crescem constantemente até ao 3.º quartel de Setecentos, embora individualizemos o esboço de diversos quadros populacionais, consoante as ilhas e as épocas.
No declinar da era de Quinhentos, o tratamento das informações de Gaspar Frutuoso situa o efectivo demográfico açoriano em cerca de 60 000 indivíduos. Na altura, sobressai o desenvolvimento da Terceira e de S. Miguel, fruto da evidência política, da superioridade económica e da extensão territorial. Estas ilhas concentram então 3/4 da população. No entanto, releva a singularidade do caso terceirense, que manifesta a mais alta taxa de densidade e a maior concentração urbana. Neste particular, ressalta a primazia de Angra, que patenteia um crescimento rápido, resultante da excelência da posição geográfica e do ancoradouro, que promove a actividade agro-comercial e a concentração administrativa. Assim, no confronto entre S. Miguel e a Terceira, avulta a vantagem dos terceirenses, que ficam aquém dos micaelenses apenas na acepção absoluta. Ao invés, na perspectiva proporcional, a dianteira cabe à ilha de Jesus Cristo, considerando a menor aglomeração dos habitantes em S. Miguel e o atraso de Ponta Delgada que, apesar do bulício mercantil e da frequência dos estrangeiros, perece perante as inter-relações do burgo angrense, sugestivamente cognominado de «universal escala do mar de ponente».
No século xvii, prossegue o acréscimo dos povos, mas reconhecemos a prevalência de tendências bem dissemelhantes. Assim, na averiguação dos ritmos, destacamos incremento nas ilhas mais pequenas e periféricas, comedimento em S. Miguel e estagnação na Terceira. A análise dos números certifica claramente esta leitura. Com efeito, em 1695, as informações de Frei Agostinho de Mont?Alverne sugerem a existência de um efectivo populacional de aproximadamente 100 000 habitantes, obtido pela soma de uma percentagem de 15 % de menores de 7 anos aos totais constantes nas Crónicas da Província de S. João Evangelista - Ilhas dos Açores. Nesta altura, os terceirenses e os micaelenses representam apenas 55 % dos açorianos. Porém, no confronto entre partes, encurtam as desvantagens de S. Miguel em relação à Terceira, de concreto nos domínios da densidade e da urbanização, em virtude da manutenção de uma taxa de crescimento anual médio superior e do engrandecimento de Ponta Delgada. Todavia, no cotejo de perdas e ganhos sobressai a antinomia entre o retardamento da Terceira e o progresso das ilhas mais recônditas. De facto, na era de Seiscentos, a interrupção do surto demográfico terceirense agrava as consequências das adversidades geoeconómicas, originando uma síndrome de decadência, donde por pouco tempo ainda desponta o adiantamento de Angra, muito tolhido pela tradicional concorrência de Ponta Delgada e pela recente saliência da Horta. Ao invés, depois das dificuldades quatrocentistas de extensão do povoamento e da exclusão do fomento quinhentista, a centúria de Seiscentos marca o avanço das parcelas insulares mais isoladas, que beneficia da saturação das ilhas principais, responsável pela extenuação de muitos recursos. Esta evolução reforça a concentração dos homens no grupo central, precisamente onde irrompe a maioria das crises de subsistência, que então geram a impressão do excesso das gentes.
Na era de Setecentos persiste o aumento dos povos a um ritmo ainda superior até 1750, que depois declina, estagna e regride na aproximação do século xix. Com efeito, em 1747, o recrutamento de colonos para o Brasil implica o cômputo das gentes, calculado em 127 601 habitantes. Todavia, a provável omissão dos menores de 7 anos acresce o efectivo demográfico açoriano quase até aos 150 000 indíviduos, que evidencia a maior taxa de crescimento. No âmbito da distribuição das populações, S. Miguel e a Terceira equivalem ainda a 55 % do total, mas já ressalta a vantagem dos micaelenses, que superam a densidade terceirense e, logo depois, substituem a supremacia de Angra pela de Ponta Delgada. De seguida, releva o conjunto Faial-Pico, que representa quase 25 % do contingente humano insular, mas avulta também o acrescentamento de S. Jorge e da Graciosa. No confronto entre grupos, ressalta sempre a superioridade das ilhas do centro, que albergam mais de 55 % das criaturas, em conformidade com uma longa tradição.
Na 1.ª metade do século xviii, o acréscimo das gentes atinge todas as ilhas e manifesta as taxas mais positivas. Na perspectiva da interpretação relativa, ressalta o crescimento das populações de S. Jorge e do Pico, que logra sensivelmente a duplicação. Depois, advém o aumento das Flores e sobretudo o de S. Miguel que, embora a uma proporção menor, contribui decisivamente para o acrescentamento global. Neste período ainda relevam os índices de crescença da Terceira, do Faial e da Graciosa, acima dos 20 %, avultando apenas o menor desenvolvimento de Santa Maria e do Corvo. Depois, surge um tempo de contracção demográfica, particularmente sensível à entrada do último quartel de Setecentos, que muito individualiza a conjuntura açoriana, por contraste com uma realidade portuguesa, europeia e ultramarina de nítida expansão.
O acréscimo dos povos, a extenuação dos recursos e o surto da emigração geram a síndrome do excesso de população, que caracteriza diversas interpretações historiográficas e literárias desde o século xvii. Nesta perspectiva, em meados de Setecentos os açorianos atingem um número incomportável que suscita a intervenção régia, atinente à promoção do povoamento de Santa Catarina (Brasil) com casais de ilhéus. Depois, a estagnação demográfica e o expediente migratório ainda comprovam o acumulamento dos homens. Todavia, esta visão carece de infalibilidade, pois coexiste com manifestações de falta de gente, tidas por impeditivas do desenvolvimento. Nestas circunstâncias, persistem muitas dúvidas. Todavia, a ambiguidade enraíza sobretudo no carácter da sociedade do Antigo Regime, alicerçada num equilíbrio muito precário, que demanda a contínua harmonização do contingente humano com as disponibilidades alimentares, sob pena da irrupção de graves perturbações. Assim, em períodos de fartura, a garantia do provimento quotidiano dissipa o sentido da pressão populacional. Porém, na ocorrência de crises frumentárias, ressalta o presságio da multiplicação dos povos, que deriva naturalmente da falta de subsistências. Esta análise relativiza o significado dos entendimentos mais discrepantes e desvaloriza os artifícios numéricos na avaliação do comportamento da demografia durante a modernidade.
O estudo das migrações também defronta a falta de registo, porque só individualizamos propósitos de maior controlo na 2.ª metade do século xviii, após a promulgação da lei dos passaportes em 1758 e a instituição da Capitania-Geral em 1766. No entanto, a interpretação dos factos destaca os principais ritmos e destinos da diáspora açoriana. Assim, releva a preferência pelo Ultramar, que desperta pouco depois da conclusão do povoamento, em conformidade com as sucessivas etapas da expansão portuguesa e europeia. Na verdade, os insulanos participam primeiramente na conquista, exploração e defesa do Norte de África e da Índia, mas ressalta sobretudo a sua posterior dispersão pelo Novo Mundo, de início no Brasil e depois na América do Norte. Todavia, também individualizamos alguma mobilidade nas ilhas, no arquipélago e na conexão com o Reino.
Nas ilhas de maior dimensão, o ciclo da actividade agrícola origina movimentos regulares de população, sem paralelo na periódica deslocação de grandes contingentes de trabalhadores, que sucede nas regiões continentais. Ainda no arquipélago, sobretudo no grupo central, a vizinhança, as assimetrias económicas e as dependências administrativas estimulam o giro dos homens, movido por propósitos muito particulares de carácter temporário ou definitivo.
Na correspondência com o Reino, identificamos pelo menos no século xviii um fluxo contínuo de açorianos, que busca principalmente a cidade de Lisboa. Na generalidade, trata-se de uma corrente migratória de activos masculinos, que não tem por predominante desígnio a fixação. Aliás, na sequência da resolução de muitas pendências administrativas, sucede decerto o retorno dos requerentes. Porém, na chusma dos deslocados, reconhecemos ordinariamente o móbil económico, que determina com certeza o alongamento das permanências. Nestas circunstâncias, o conhecimento da emigração insular demanda o maior estudo do destino metropolitano. Com efeito, a par da espontânea procura da capital, surgem indícios em diferentes épocas, que demonstram o propósito régio da utilização de açorianos em projectos de colonização interna, nomeadamente nas vastas e despovoadas regiões do sul. A comprová-lo, registemos dois casos mais significativos. Em primeiro lugar, o frustrado intento filipino do princípio de Seiscentos que, após a expulsão dos mouriscos, visa o adequado repovoamento de Valência com 1000 casais açorianos. Depois, o programa de ocupação do Alentejo, traçado por Pina Manique no último quartel do século xviii, que suscita a saída de muitas famílias insulanas.
No Ultramar, logo no século xvi, reconhecemos a presença de açorianos nas principais frentes da expansão portuguesa, nomeadamente em África e na Índia. Todavia, ainda se trata de uma participação individual, muito determinada por motivações de natureza político-militar e religiosa, que relevam os intentos de reforço de foros nobiliárquicos e de cumprimento de desígnios divinos sobre as ambições de maior fortuna. Contudo, a partir de meados de Quinhentos, a unidade territorial e humana do Brasil fomenta o acréscimo da diáspora, que já obedece a propósitos bem distintos. De facto, a partida de gente da guerra e da religião depressa cede o lugar ao embarque de populares, que garantem a extensão da colonização brasileira, movidos pela crença na prosperidade colonial. À entrada de Seiscentos, individualizamos o reforço desta constante. Com efeito, a partir de então, impera inequivocamente a tentação sul-americana, motivada por intuitos particulares de melhoria das condições de vida e por projectos oficiais de incremento da colonização. Na 2.ª metade do século xvii, o transporte de açorianos do grupo central para terras do Maranhão comprova semelhante conjunção. À saída, os poderes locais invocam o excedente demográfico, que gera a miséria das gentes, e as catástrofes sismo-vulcânicas, que desorganizam o quotidiano. À chegada, os insulanos desempenham o papel de atalaias da soberania portuguesa na irrupção de disputas na fronteira setentrional.
No século xviii, cresce a busca do Brasil por gentes dos Açores. Este fenómeno decorre do surto da exploração metalífera e do propósito oficial de consolidação do domínio português em novos campos de disputa. No arquipélago, avulta sempre a maior iniciativa dos moradores das ilhas mais pobres do grupo central, que enfrentam crises de subsistência, por vezes potenciadas pela destruição do vulcanismo. Na colónia sul-americana, releva agora o desígnio de alargamento para sul da jurisdição portuguesa, concretamente até ao estuário do Prata. Todavia, o desígnio régio de fortalecimento da presença de Portugal nas áreas de fronteira do Brasil defronta as dificuldades de organização de um sistema de transporte, semelhante a um projecto clássico de colonização. Nestas circunstâncias, a coroa apenas estabelece uma prudente conexão entre a outorga de privilégios comerciais nas carreiras do Brasil e a obrigatoriedade de condução de um número prefixo de casais açorianos.
Em meados de Setecentos impera a peculiaridade do transporte de casais açorianos para a ilha de Santa Catarina, na sequência da publicação do edital de 31 de Agosto de 1746. Na determinação desta corrente migratória reconhecemos o ajustamento entre pretensões insulares e objectivos coloniais, designadamente a justaposição de requerimentos locais de transferência para terras brasileiras com a política régia de alargamento do domínio português a sul do Rio de Janeiro, então protagonizada pelo brigadeiro Silva Paes. No entanto, sobrepomos as causas de procedência sul-americana às motivações de origem açoriana. Assim, no nosso entendimento, avulta a necessidade de efectiva ocupação do Brasil meridional, por razões militares resultantes da ameaça espanhola, sobre as contrariedades insulanas, designadamente a miséria, o sobrepovoamento e os cataclismos, susceptíveis de agravamento do impreterível sustento dos homens. Com efeito, no Ultramar, o preenchimento das fronteiras prevalece sobre o intento da exploração económica, que tradicionalmente sustenta a colonização, como se deduz da averiguação dos destinos, do perfil dos novos colonos e da organização dos contingentes. Porém, nas ilhas, sempre admitimos a influência da penúria, particularmente sensível no grupo central no decénio de 1740, que constitui o principal fundamento da crença na prosperidade brasileira. Do mesmo modo, as adversidades do quotidiano geram a síndrome do excedente demográfico, que também demanda a opção migratória. Ao invés, a sismicidade e o vulcanismo não determinam o êxodo insulano de 1747, considerando a ausência de manifestações que motivem a interrupção dos equilíbrios socioeconómicos. Nestas circunstâncias, em lugar de solução de um problema dos Açores, a deslocação de famílias para o sertão catarinense significa sobretudo uma diligência de alívio de uma questão ultramarina, em nítida consonância com a hierarquia de prioridades da coroa. De facto, só este propósito justifica o forte empenho da realeza, que ainda estimula a iniciativa dos povos, através da persuasão e dos privilégios.
Cultura. A incultura da generalidade dos povoadores e a delonga da ocupação humana retardam o surgimento das manifestações culturais, que demandam a prévia estruturação das comunidades. Assim, na era de Quatrocentos, a arte e o ensino enfermam de uma grande incipiência, que mal esboça as principais realizações. De facto, só no século xvi, a sociedade insular logra a consecução de importantes projectos artísticos e educacionais, que alcançam maior desenvolvimento nas centúrias de Seiscentos e de Setecentos, constituindo uma adequada representação do debate permanente entre o homem e a natureza.
Nos Açores, apesar da diversidade do meio e da influência dos estrangeiros, a cultura patenteia uma matriz inequivocamente portuguesa, em nítida conformidade com a transposição de práticas e de representações, que marca o alargamento do domínio lusitano ao além-mar. Com efeito, a similitude dos modelos e dos agentes sobressai nos principais ramos da actividade cultural, concretamente na arte e no ensino.
Na dimensão artística, os materiais vulcânicos e os ritmos da história sustentam a individualização de originalidades. No entanto, sobre o reconhecimento da peculiaridade, impera a assimilação dos estilos portugueses, tributários da evolução europeia e da experiência ultramarina. Assim, desde o gótico final até ao predomínio do barroco, a arte açoriana acompanha as tendências metropolitanas, nomeadamente a manuelina, a renascentista e a maneirista. Por outro lado, a localização das ilhas nas rotas de retorno do Oriente e do Novo Mundo determina a conexão com as principais manifestações coloniais, as da Índia e sobretudo as do Brasil. A comprová-lo, apontemos as práticas barrocas, que evidenciam a influência dos jesuítas brasileiros, mas seguem os cânones reinóis, concretamente a utilização da talha dourada na ornamentação de espaços de traça mais antiga. Do mesmo modo, o jacarandá substitui naturalmente o cedro da terra nalgumas esculturas e no mobiliário, a partir de cerca de meados do século xvii, quando emerge a preponderância sul-americana no Império Português.
Nas ilhas, a sucessão dos estilos coincide com o aperfeiçoamento das técnicas, porque nas primeiras centúrias a juventude da sociedade insular implica a falta de mestres habilitados e concomitantemente a incipiência da criação artística. Na escultura, certificamos claramente esta realidade. Com efeito, após o labor de Sebastião Rodrigues, artista terceirense da 1.ª metade do século xvi, herdeiro da melhor tradição flamenga, só em plena era filipina surge de novo a relevante actividade já de um núcleo de escultores, centrado nas oficinas da Sé de Angra. Além disso, o excídio de sismos e vulcões e o progresso do urbanismo determinam a diferenciada representatividade dos diversos modelos de arte. Neste caso, escasseiam os exemplares da arquitectura primitiva, avultando a maior expressão das formas mais próximas, que patenteiam cada vez mais a filiação nas tendências gerais.
No âmbito do ensino, a primazia cabe às ordens religiosas, em conformidade com os modelos culturais das sociedades do Antigo Regime. Neste particular, ressalta a acção dos jesuítas, que estabelecem cursos regulares nos Colégios de Angra, Ponta Delgada e Horta, entre o decénio de 1570 e o 1.º quartel do século xvii. Por isso, a expulsão dos inacianos em 1760 gera perturbações no sistema escolar, em virtude da dificuldade de extensão aos Açores das reformas pombalinas da educação. No entanto, os franciscanos exercem uma actividade cultural que excede possivelmente a da Companhia de Jesus, quando analisada à luz do seu alongamento no tempo e da sua disseminação no espaço. Com efeito, estes religiosos acompanham o processo de povoamento. Assim, ministram as primeiras aulas logo na era de Quatrocentos e adoptam uma modalidade de instalação que segue o alargamento da ocupação humana até às ilhas mais periféricas. Nestas circunstâncias, assumem com certeza o carácter de principais educadores de sucessivas gerações de açorianos durante a Idade Moderna. Porém, a par dos professos de Santo Inácio de Loiola e de S. Francisco de Assis, a preponderância do estado eclesiástico na difusão da cultura ainda decorre da contribuição dos frades agostinhos, que se destaca a partir da centúria de Seiscentos. Neste quadro, a influência da igreja, que mais se acentua após a criação da diocese de Angra em 1534, contrasta com a omissão da coroa, que desempenha uma função muito secundária até ao advento do liberalismo.
Nos Açores, a missão cultural do clero contribui decerto para a conveniente formação da juventude. A comprová-lo, registemos o contínuo acréscimo do número de estudantes que, após a conclusão dos cursos médios, busca a prossecução de estudos superiores nas universidades, logrando muitas vezes a obtenção de distinções académicas e a construção de relevantes carreiras no arquipélago e inclusivamente no Reino. Na procura de formação universitária, os ilhéus rumam principalmente às universidades portuguesas, sobretudo à de Coimbra, mas também à de Évora. Porém, alguns ainda optam pelo estrangeiro, nomeadamente por Espanha. Neste particular, releva a emblemática frequência de Gaspar Frutuoso em Salamanca, onde obtém uma sólida preparação científica, à luz do ideal renovador do Renascimento, que muito influi na sua conversão em principal cronista da historiografia insular. Avelino de Freitas de Meneses (Dez.1997)
IDADE CONTEMPORÂNEA Investigação e historiografia. Há sempre argumentos para se defender uma qualquer periodização da história, mas no caso dos Açores não me parece fácil entender o século xix sem se recuar às duas últimas décadas do século xviii, pois muita da problemática oitocentista tem as suas raízes na centúria anterior, aliás, como no estudo da sociedade portuguesa. Contudo, estudos mais aprofundados sobre os dois últimos séculos no arquipélago são recentes e, por isso mesmo, continuam a existir zonas escuras que dificultam uma visão global, que só investigação aprofundada e sistemática tornará possível. É de salientar, porém, que abundam as fontes, quer em arquivos locais, quer nos nacionais, mas que a sua recolha e organização é muitas vezes incipiente, dificultado o acesso ou até mesmo o conhecimento da documentação disponível.
Política e administração. Quando se inaugura no século xix a questão de fundo que dividia a sociedade portuguesa, ou seja, a opção entre a manutenção do regime absolutista ou a abertura às novas filosofias liberais, essa problemática rapidamente se estende aos Açores. Como região periférica, é inicialmente uma minoria que está interessada nas questões da modernidade, mas desde cedo se nota uma clivagem entre os conservadores e os inovadores, muitas vezes motivada mais por razões de ordem local do que por opções político-filosóficas muito claras. É ponto controverso ainda hoje quais os mecanismos socioculturais da introdução das novas ideias no arquipélago e da sua propagação, tendo-se, talvez, sobrevalorizado a acção dos exilados políticos desembarcados em Angra no ano de 1810. Seja como for, logo nas primeiras duas décadas do século encontramos claramente uma divisão nas elites locais, entre realistas e liberais ou pedreiros-livres, não sendo, contudo, muito claras as nuances entre estes últimos pelas suas preferências pela via revolucionária ou a reformista, esta última com profundas raízes no século xviii. Não resta, porém, dúvida da influência e poder de decisão entre uma e outra corrente, do funcionalismo público superior e dos militares destacados temporariamente nas ilhas. Mas o que é bem notório é que os absolutistas locais eram defensores acérrimos da permanência da unidade política das ilhas através da capitania-Geral, e que entre os liberais floresciam as teses da necessidade de acabar com o centralismo agrense e devolver às Câmaras de Ponta Delgada e Horta o poder político e administrativo. Estas teses, contudo, não entusiasmavam o poder central, fosse ele o do rei absoluto, ou o das Cortes e da Constituição, que ambos optavam pela centralização política nos Açores. As primeiras revoluções liberais em S. Miguel e no Faial, em 1821, feitas pelos adeptos locais devem, porém, o seu êxito ao programa de fragmentação política, vindo a ser imposta esta pelos deputados eleitos, na sequência das mesmas revoluções às Cortes constituintes. A revolução de Angra conhece outro destino, derrotada que foi pelos realistas reagrupados à volta do capitão-geral, o que não será de estranhar ao analisá-la pelo prisma de uma aventura imposta por reinóis sem ligações claras aos interesses locais. Estavam, assim, lançadas as bases da discussão sobre política administrativa, que irá atravessar o primeiro período da implantação do Estado Liberal nos Açores, que conduzirá à inevitável perda da unidade política e ao consequente desaparecimento da capitania-geral e da Província, sua substituta, com a clara assunção, preparada desde o século xviii, das ilhas açorianas a parte integrante do Reino.
A divisão do arquipélago em três distritos administrativos a partir de 1836, e a sua inclusão como parte dos sucessivos códigos nacionais, marcará profundamente a evolução da política local. A vida política evoluirá pelo ritmo da política portuguesa e os acontecimentos nacionais alastram-se, com consequências quase imediatas, às ilhas, que passam a acompanhar e a participar activamente na vida nacional. As exigências modernas de actividade política obrigam à organização de grupos de interesses e de chefias locais que vão evoluindo conforme as solicitações. Desde as eleições de 1826, em que só um dos deputados açorianos é cidadão local, até à luta da administração dos Açores pelos Açorianos, foi um longo e árduo caminho.
A sociedade organiza-se politicamente à volta das sociedades patrióticas, das lojas maçónicas e mais tarde dos partidos políticos, procurando conquistar o poder e mantê-lo, dialogando com o governo central num ambíguo e por vezes difícil equilíbrio e interdependência.
Uma absoluta integração nos destinos comuns da política administrativa nacional, que depois de implantada nos anos 30 do século xix vai perdurar até à década de 90 desaguará no primeiro movimento autonomista, cuja finalidade é a livre administração dos Açores pelos Açorianos, o qual a partir de 1895 consegue legislação especial para subtrair a administração açoriana ao código geral. É o início de uma nova etapa, que não mais deixou de vigorar ainda que conhecendo altos e baixos conforme as vicissitudes da política nacional.
O republicanismo, ainda nos finais do século xix, entusiasmou algumas elites urbanas locais que viram nessa corrente a possibilidade de uma verdadeira libertação do centralismo asfixiante e até de uma independência do arquipélago, sonho de uma ínfima minoria que percorreu quase todo o século com vários períodos de maior agitação e que se havia de prolongar para o século xx, quer tomando a forma de pura independência política, quer optando pelo protectorado da potência marítima, a Inglaterra no século xix, os Estados Unidos da América no século xx.
Uma síntese possível destes dois séculos de vida político-administrativa nos Açores é certamente a dificuldade de pensar o arquipélago como um todo, a sua interdependência acentuada dos destinos políticos nacionais e, por isso mesmo, o acompanhamento local dos fenómenos gerais, ainda que insistindo na necessidade da criação de uma vida política que levou tempo a implantar e encontrou fortíssimas dificuldades de se afirmar.
Economia. Os fenómenos relacionados com a economia, marcadamente característicos do século xix , são mais tardios e de implantação mais difícil do que aqueles outros domínios da política. Nas primeiras décadas do século xix mantêm-se as características na economia açoriana vindas do século anterior. Uma persistente linha de orientação oficial do desenvolvimento da agricultura virada para produtos de exportação, principalmente cereais, sempre deficitária no Reino, com claras instruções de aumento das áreas cultiváveis naquelas ilhas de fácil escoamento, como seja S. Miguel e Terceira. Isto acompanhado de uma persistente agricultura de subsistência que ocupa a maioria das ilhas e que provoca facilmente períodos de escassez e mesmo fomes, com dificuldades de abastecimento, que se prolongarão por todo o século e que só o século xx, já adiantado, conseguirá resolver.
A produção açoriana de valor comercial característica do século xix, até às décadas de 60 e 70, para além dos cereais assenta em dois outros produtos que conseguem mercados compensadores. A laranja, principalmente de S. Miguel, mas também da Terceira e menos do Faial, com mercado garantido na Inglaterra e que alimenta uma carreira de barcos próprios, e o vinho do Pico, exportado pela Horta, com destino aos Estados Unidos da América. Este comércio alimentará o desenvolvimento de Ponta Delgada e Horta, que se tornarão os principais portos do arquipélago e será o incentivo à construção de docas, já na 2.ª metade do século, mas que se construirão com exasperante lentidão, ainda que financiadas por tributação local especial.
Mercados e transportes evidenciaram-se então como os principais obstáculos ao desenvolvimento económico dos Açores e a busca da solução destas duas condicionantes será a prioridade absoluta da burguesia local, numa tenaz luta pelo proteccionismo e pelo investimento nacional, que marcará a sociedade.
O fim do ciclo da trilogia - cereais, laranja e vinho -, por volta de 1870, abre no arquipélago uma grave crise com repercussões sociais e políticas profundas, que levarão à emigração em massa de uma parte substancial da população e a uma clivagem muito acentuada entre a ilha de S. Miguel, mais rica, e as outras, com manifesto declínio do Faial que passa a contar simplesmente com o préstimo do seu porto artificial para apoio à navegação no Atlântico Norte, mas sem produção própria para exportação. Irá, contudo, investir na caça à baleia e na produção de óleo em fábricas próprias, principalmente na ilha do Pico, as quais equilibram a riqueza do distrito ao longo do século xx, até que o produto perdeu o interesse comercial já nos nossos dias.
A saída para a crise é procurada através da industrialização, pela transformação de novos produtos agrícolas. O tabaco, que a partir de 1864 se torna livre do monopólio até aí imposto, a batata-doce transformada em álcool. Mas são só S. Miguel e a Terceira que conseguem aproveitar este novo clima, porque só aí se consegue achar o espaço agrícola de produção e os capitais para a montagem de fábricas. Mas o preço desta aventura industrial é a luta dos investidores açorianos pelo proteccionismo para a sua produção e por mercados compensadores, que verdadeiramente só poderão ser ou o mercado local, ou o nacional, onde, aliás, encontrarão entraves dificilmente ultrapassáveis. Quer o tabaco, que voltará à régie, quer o álcool, ainda antes do final do século irão encontrar no único mercado possível, o do continente português, obstáculos inultrapassáveis. As fábricas de tabaco, com dificuldade, sobreviverão no mercado açoriano protegido, mas as de álcool não sobrevivem e, no início do século xx, serão substituídas por uma única de açúcar de beterraba, montada em S. Miguel com capitais essencialmente daquela ilha e outros poucos da Terceira, que manifestamente perdeu a corrida da industrialização.
No início do século xx, no caso da Terceira ainda nos finais do século anterior, abre-se uma nova frente na economia de mercado açoriano, a bovinicultura e a transformação do leite, primeiro em manteiga, depois também em queijo. Com um início difícil, acabou por ser a produção mais característica do arquipélago, que ainda hoje perdura e aquela que ao longo do século xx foi conquistando praticamente todas as ilhas, com predomínio evidente, mais uma vez, de S. Miguel e Terceira, mas com valorização, por exemplo, de S. Jorge, devido às suas imensas pastagens naturais e tradição no fabrico de queijo.
Desde finais do século xix que a ilha de S. Miguel se torna de longe a ilha mais importante economicamente no arquipélago, com maior diversidade de produção (com destaque para o ananás) e maior capacidade de investimento e reprodução capitalista, aspirando consequentemente ao domínio do mercado insular. Encontrou resistências à sua expansão, principalmente da parte dos investidores de Angra do Heroísmo e Horta, os quais montaram uma estratégia de proteccionismo estatal às suas actividades distritais, sendo esse o principal entrave a uma unidade política dos Açores. Contudo, a partir dos anos 30 do nosso século e da sequência da política do Estado Novo, a burguesia micaelense consegue o almejado predomínio no mercado insular, reforçando a sua implantação económica nos Açores, hoje mais do que nunca visível.
Situação estratégica no Atlântico. As ilhas, na verdade, nunca deixaram de ter um papel preponderante na estratégia do domínio do Atlântico pelas potências marítimas e foram sempre um ponto essencial de apoio. É tradicional na historiografia insular acentuar o declínio desse papel no século xix, mas creio que isso é enganador. A partir do predomínio da Inglaterra como potência marítima, os Açores tornaram-se um ponto imprescindível ao Império Britânico e os políticos ingleses montaram uma estratégia de utilização das ilhas, sem necessitarem do seu domínio efectivo, encontrando colaboração da parte de sucessivos governos portugueses.
Na luta entre a Inglaterra e a França e na sequência do Bloqueio Continental, os Açores mostraram-se utilíssimos para a estratégia inglesa de domínio do Atlântico, como local de abastecimento de navios e base naval.
Também foram imprescindíveis aos Estados Unidos da América desde a sua independência em 1776, como base de comércio com a Europa. O porto da Horta transformou-se para eles, no início do século xix, num depósito de baldeações de mercadorias que quebrava o bloqueio inglês imposto à nova nação. Justificou-se mesmo a criação de um consulado, um dos primeiros dos Estados Unidos, ocupado por um século pela célebre família Dabney.
Durante a 2.ª metade do século xix cumpriram ainda a sua função de ponto decisivo para os interesses do Império Britânico, ainda que pela forma negativa, pois os ingleses impuseram ao governo português uma espécie de reserva das ilhas, não as utilizando directamente mas impedindo a sua utilização por outras potências. Isto explica mesmo muitos dos atrasos estruturais das infra-estruturas portuárias e de farolização, por exemplo. Foi só quando isso interessou à Grã-Bretanha que a ilha do Faial se transformou, no início do século xx, no maior ponto de amarração de cabos de transmissões entre os continentes. Ingleses, alemães e americanos aí se estabeleceram, mas com o controlo evidente dos primeiros.
Com o desenvolvimento das primeiras experiências transatlânticas da aviação, as ilhas açorianas mostraram o seu préstimo para bases de apoio à navegação aérea. O porto da Horta tornou-se então escala de aviões nos anos 30 e o aeroporto de Santa Maria na placa de apoio à travessia aérea do Atlântico, até que a técnica de construção de aeronaves o tornou dispensável nos anos 60.
Contudo, a maior evidência da importância estratégica do arquipélago dar-se-ia durante os dois conflitos mundiais do nosso século. Na I Guerra, os Estados Unidos da América montaram uma base naval, em 1918, no porto de Ponta Delgada, que lhes permitiu o acesso à Europa e o domínio marítimo do Atlântico. As consequências locais dessa base foram grandes, na economia e na política, e alimentou alguns sonhos de protectorado americano nas ilhas, que os próprios Estados Unidos rejeitaram. Durante a II Guerra, com grande relutância do governo português, mas ao abrigo da aliança secular com a Inglaterra, foram cedidas facilidades nas ilhas àquela potência, que trouxe à Terceira e a Santa Maria o poder aéreo americano, em 1943. A Base das Lajes na Terceira e o aeroporto de Santa Maria mostraram-se inestimáveis na fase final da guerra, para a derrota da Alemanha nazi.
Com o final da guerra, os Americanos continuaram a necessitar do apoio estratégico das ilhas açorianas para a manutenção do seu poderio e acabaram por negociar, em 1951, um tratado com Portugal que lhes garantiu as facilidades que vinham gozando na prática desde 1943. Os Açores desempenharam um papel único na montagem da NATO e garantiram a Portugal, apesar da ditadura, a inclusão naquela aliança. Foram ainda as ilhas um local indispensável aos Estados Unidos durante a «guerra fria» e a sua importância estratégica influiu decisivamente na vida política nacional e na ultramarina, assim como na manutenção da ditadura salazarista, para além da vitória das democracias. Só com o fim da «guerra fria», nos anos 80, a importância estratégica diminuiu, mas não desapareceu, mantendo a NATO e os Estados Unidos interesse nos pontos de apoio que tem no arquipélago, nomeadamente no porto de Ponta Delgada e na Base das Lajes, na Terceira.
Ainda nos anos 60 e até final dos anos 80, a França interessou-se pelos Açores como ponto de apoio estratégico à sua política de defesa, mantendo na ilha das Flores uma importante base de ensaio de balística e medida de ogivas.
Sob o ponto de vista local, estas bases foram de importância vital para o desenvolvimento económico e social das ilhas em geral e muito particularmente da Terceira e das Flores, permitindo um nível de vida e de investimento que dificilmente se conseguiria de outra maneira. Só a errada política externa portuguesa da ditadura é que obstou a que o arquipélago desfrutasse de mais vantagens.
Sociedade. Não é fácil, no estádio actual da investigação, caracterizar na generalidade a sociedade açoriana nos séculos xix e xx, mas mesmo assim parece poder concluir-se que ao longo deste período se mantém uma característica de ruralização com crescimento muito moderado dos centros urbanos, sendo a urbanização da sociedade um fenómeno dos nossos dias. A sociedade do século xix contou com uma população com taxa de crescimento relativamente moderada, mas mesmo assim positiva, o que levou ao aumento de gente nas ilhas, que no início do século tinham 183 400 pessoas, nos meados do século 240 548 e em 1900, 256 281, mas este número representava já um decréscimo dos cerca de 260 000 que eram os açorianos em 1880. O que se pode ainda destacar é que estes números representam elevadas taxas de densidade, as quais rodam os 100 habitantes por km2, o que em ilhas com elevadas zonas não habitáveis é significativo.
Outra das linhas de força do século é o crescimento mais acentuado da população na ilha de S. Miguel, que conjuntamente com a Terceira são as únicas que, apesar da emigração, vêem a sua população crescer ao longo de todo o século e, consequentemente, aumentam o seu peso relativo no conjunto geral para virem a tornar-se, nos dias de hoje, o espaço onde vivem 2/3 dos açorianos.
No século xx, o ritmo do crescimento populacional é também irregular e se na primeira e segunda décadas a população continua a decrescer, 242 565 em 1910 e 231 543 em 1920, a crise na emigração nos anos posteriores à guerra há-de ser responsável por um crescimento populacional nas décadas seguintes. Em 1940 são 286 854, mas em 1960 os Açores atingem o pico do seu crescimento, com 327 480 habitantes. Daí por diante o decréscimo será sempre a característica mais notável, conjuntamente com a já apontada concentração populacional em S. Miguel, que vê assim aumentar o seu peso.
O fenómeno mais significativo desta época é contudo o da emigração, que oscilou ao longo destes dois séculos conforme as crises internas e externas, mas que é o responsável só por si pelas oscilações demográficas. A causa principal da emigração é obviamente a estrutura da própria sociedade, incapaz de ultrapassar condicionantes da sua organização e, em consequência, incapaz também de absorver os seus excedentes. A área de emigração preferencial dos Açorianos foi, ao longo do século xix, o Brasil, para onde se dirigiram contingentes muito significativos de população de todas as ilhas, mas com realce das do grupo central. No início do século xx, e já nas últimas décadas do anterior, os contingentes de emigrantes optaram, por melhores condições, pelos Estados Unidos da América, onde se formaram, na Califórnia e na costa leste, significativas colónias imigradas de açorianos. A partir de finais dos anos 50 do nosso século há um recrudescimento da emigração, de novo para os Estados Unidos e agora também para o Canadá. As ilhas pareciam despovoar-se e algumas, como o Faial, até mesmo devido a cataclismos naturais, perderam mais de metade da população, com consequências socioeconómicas enormes.
Mas a estruturação social açoriana sofreu, evidentemente, profundas modificações ao longo dos séculos xix e xx, sendo de registar, antes de mais, a dificuldade com que a modernização da orgânica social se processou no arquipélago. A introdução do capitalismo encontrou resistências fortes, principalmente nas populações rurais que no período da Regeneração várias vezes se levantaram em motins e desacatos perante as autoridades, resistindo sempre como puderam ao avanço do sistema tributário liberal. Por outro lado, a modificação social que permitiu que todos se tornassem cidadãos com iguais direitos e deveres perante a lei foi uma longa caminhada que se implantou vagarosamente, mas afirmativamente, ao longo deste período.
Não temos ainda hoje estudos sobre os diversos grupos sociais e as suas transformações, certamente muito lentas na ruralidade, mais profundas e significativas nas zonas urbanas, mas deve-se notar que a manutenção de uma elite aristocrática e terratenente se manteve até muito tarde nas ilhas, resistindo com êxito assinalável na ilha de S. Miguel. O desaparecimento do sistema de morgadios em 1864 ajudou, evidentemente, ao desmantelar da velha sociedade do antigo regime, mas tal fenómeno não foi uniforme nem sincrónico nas ilhas. Umas evoluíram mais rapidamente do que outras, mas sem dúvida a de S. Miguel foi a de mais lenta evolução, mantendo-se estruturas arcaicas de arrendamento e de relações de domínio pessoal por mais tempo.
É, contudo, nas zonas urbanas, principalmente nas três cidades do século xix, que se notam modificações mais profundas, com o crescimento e afirmação de uma classe média de funcionalismo, comércio e serviços que lutará pela implantação de novas estruturas políticas, sociais e económicas. Os livros, por exemplo, de Vitorino Nemésio, mas também de outros escritores, são hoje os melhores estudos da sociedade insular, da caracterização da sua estrutura e do seu peso relativo na orgânica social. Isto, evidentemente, sem esquecer as profundíssimas modificações que o liberalismo, a república e a revolução democrática do 25 de Abril depois trouxeram.
Cultura. Talvez o fenómeno cultural mais marcante desta época seja a laicização, que em boa verdade vinha já do século xviii e que se implantou nos Açores com dificuldade. As iniciativas da montagem de um sistema de ensino laico e estatal a partir de Pombal foi um fracasso e só com o liberalismo, na terceira década do século xix, ainda durante a regência, se deram passos mais seguros nesse sentido. Contudo, o peso da Igreja e da classe sacerdotal é muito grande mesmo no sistema liberal de ensino, bastando recordar o número de professores que eram sacerdotes e os primeiros comissários de estudos. Com a Regeneração deu-se um passo em frente na questão do ensino com a montagem dos liceus nacionais nas três capitais de distrito a partir de 1851, 1852 e 1853, respectivamente, em Angra, Ponta Delgada e Horta. Lá para o fim do século aparecerão, com dificuldade, as escolas comerciais e industriais além das de habilitação para o magistério primário. Os liceus foram, juntamente com o Seminário episcopal, criado na sede do bispado em 1862 (com manifesto atraso), centros de ensino e de animação cultural, devido à qualidade de muitos dos seus professores, e cumpriram uma importante missão. Mas é de marcar que o sistema de ensino do liberalismo, com escolas de primeiras letras criadas vagarosamente por todo o território, não conseguiu uma disseminação do grau secundário para além das capitais de distrito e, por essa razão, montou uma rede menos ambiciosa do que aquela que os conventos franciscanos haviam montado até à sua extinção. O ensino superior, por sua vez, não conseguiu vingar nunca no século xix, nem mesmo no século xx, apesar de alguns ensaios com a *Academia Militar da Terceira e a Escola Médico-Cirúrgica de Ponta Delgada. Só depois da revolução de 25 de Abril se criou nos Açores uma universidade, várias vezes anteriormente solicitada, mas nunca criada.
Uma outra das linhas de força cultural dos séculos xix e xx mais significativa é, sem dúvida, a imprensa, introduzida no arquipélago pelas forças liberais estacionadas na Terceira, em 1830. Desde então o número de jornais de todas as tendências políticas e culturais é notável e acabou por se estender ao longo do século xix a todas as ilhas, com excepção do Corvo, contribuindo para a divulgação das letras, das artes e da cultura em geral. É preciso, porém, que se diga que apesar deste esforço só lentamente se avançou na alfabetização e que ainda no século xx, com raras excepções como a do distrito da Horta, os Açores eram uma das mais atrasadas regiões portuguesas neste campo, devendo-se realçar a contribuição notável do ensino particular ao longo de todo o período em causa, mas muito especialmente na introdução do ensino preparatório, a partir da década de 70 nas ilhas menos importantes. Outra das características culturais dos Açores é a notável participação dos açorianos na criação literária nacional e a rapidez e êxito com que as sucessivas escolas literárias dos séculos xix e xx se introduziram no arquipélago e aqui floresceram, algumas vezes até com experiências bem precoces e precursoras no panorama nacional. A partir dos finais do século xix e principalmente dos anos 20 do século xx cresce mesmo a ideia da existência de uma literatura açoriana autónoma, ainda que isso seja uma questão controversa.
No domínio da arquitectura, o século xix é marcado por poucas construções de vulto, mas notam-se, principalmente em S. Miguel, experiências notáveis de introdução de escolas modernistas que, sobretudo na década de 20 do século xx, tiveram veleidade de regionalização, principalmente no campo das artes decorativas e da pintura. Na verdade, a *açorianidade, ainda que mais marcante na literatura, não deixa de ser palpável em outros domínios, com destaque para a pintura de cavalete com exemplos marcantes no século xx.
Mas é na arquitectura rural da Terceira, especialmente nas experiências do Ramo Grande, encetadas para a reconstrução das ruínas provocadas pelo terramoto de 1841, que se encontram as formas mais felizes de adaptação às condições locais de construção e no aproveitamento de materiais regionais. Os terramotos são, aliás, nos Açores, responsáveis por muita da sucessiva reconstrução de conjuntos urbanos e de edifícios isolados e, consequentemente, pela introdução de escolas modernas de arquitectura ou decoração. O exemplo da Horta depois de 1926 vale aqui por todos e é bem característico da modificação urbana e da introdução de novos caminhos, sendo de realçar o edifício sede do Amor da Pátria. J. G. Reis Leite (Dez.1997)
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