Governo dos Açores - Secretaria Regional da Educação, Ciência e Cultura - Direção Regional da Cultura

Calheta, concelho da

HERÁLDICA A vila da Calheta, no século XIX, usava como brasão a Cruz de Cristo, com dois açores voando, colocados nos cantos inferiores do escudo. A heráldica actual data de 1985, publicada pela portaria nº 2/85, da Secretaria Regional da Administração Pública.

Armas: «De prata com duas folhas de inhame de verde em chefe, um Açor da sua cor, com um Escudete de prata carregado com as Quinas do Escudo de Portugal nas garras flanqueado por dois Escudetes, sendo o da dextra de prata, carregado com a Cruz de Cristo, vermelho e vazia de campo e o da sinistra também de prata e carregado com uma cruz dita de S. Jorge, em contra chefe, uma ilha, de negro sainte de uma faixa ondada de verde e de prata de quatro peças». As folhas dos inhames são uma alusão ao motim popular ocorrido na ilha, no século XVII.

Selo: «Circular tendo ao centro as peças das Armas sem indicação dos esmaltes. Em volta, dentro dos círculos concêntricos, os dizeres: ?Câmara Municipal da Calheta, S. Jorge, Açores?».

Bandeira: «Esquartelada de azul e branco, tendo no centro do Escudo das Armas encimado por Coroa mural de prata, de quatro torres, por baixo de um listel de branco com letras de negro, que dizem Vila da Calheta, haste e lança douradas. Cordões e borlas de azul e prata». Carlos Enes (2002)

ACTIVIDADES ECONÓMICAS O concelho da Calheta está localizado na parte nascente da ilha de S. Jorge, alongando-se entre as freguesias do Norte Grande e do Topo. No censos de  2001, apresentava uma população presente de 3770 indivíduos e uma população residente de 4069. Com 126,3 km2 de área a densidade populacional é de 32,2 hab/km2, um valor mais baixo do que os 106 hab/km2 dos Açores (INE, 2002).

Embora disponha de um pequeno porto, a Calheta é servida, principalmente,  pelo porto e aeroporto localizados no concelho vizinho das Velas.

A população activa reparte-se por diversas áreas de actividade, incluindo a agrícola e agro-pecuária, a industrial e a dos serviços. Na área industrial destaca-se a produção de lacticínios com particular relevo para o famoso queijo de S. Jorge. Destaca-se ainda na indústria de transformação de pescado, sendo sede de uma empresa de conserva. A indústria da construção civil ocupa também um lugar significativo nas actividades do concelho. Os serviços concentram-se, essencialmente nas actividades do sector público e  no comércio. O turismo e a restauração têm uma expressão muito reduzida.

Segundo o Recenseamento Geral Agrícola de 1999 (INE, 1999a), havia, em S. Jorge, nesta data, 1290 explorações agrícolas, 646 das quais na Calheta. A quase totalidade destas explorações (641) tinham a natureza de produtor singular por conta própria, sendo apenas quatro sociedades. A quase totalidade da mão-de-obra utilizada (99% de 1290 indivíduos) é familiar, com os homens a  representar o dobro das mulheres (835 e 437, respectivamente). O efectivo animal, em 1999, incluía 8.452 bovinos, dos quais 4.057 eram vacas leiteiras (4% do total dos Açores).

Em 1999, das 307 empresas com sede na Calheta, 96 (31%) eram do ramo do comércio, 84 (27%) eram do sector primário, 45 (18%) de construção civil, 24 (8%) da indústria transformadora, 21(7%) dos transportes, armazenagem e comunicações e 10 (3%) do ramo de alojamento e restauração. O pessoal ao serviço nas sociedades com sede na Calheta montava a 277 indivíduos, dos quais 134(48%) na indústria transformadora 77(28%) na construção e 49(18%) no comércio (INE, 1999b).

 O concelho não registou qualquer actividade na área do turismo, em 1999. As únicas unidades  de turismo da ilha de S. Jorge estão sediada no vizinho concelho das Velas. O turismo informal é, no entanto, uma realidade na Calheta onde se localizam as fajãs do Ouvidor, dos Cubres, da Caldeira, dos Vimes e Grande.

A taxa de actividade do conselho era, em 2001, de 41%, valor semelhante aos 42% da Região Autónoma dos Açores.

O volume de vendas das sociedades sediadas atingiu, em 1999, 12,9 milhões de euros (INE, 2002). No mesmo ano, o orçamento da Câmara Municipal atingiu os 4,2 milhões de euros (SREA, 2000: 128).

Em 1999, 6% da população era pensionista (SREA, 2000: 150).

A Calheta apresentava, em 1999, um Índice Per Capita de Poder de Compra de 55,1% da média nacional, um valor bastante inferior ao dos Açores que, nesta mesma data, atingiu os 66,5%.

A economia da Calheta pode caracterizar-se pela sua concentração nas bases agro-pecuária, industrial e pública, com uma expressão reduzida dos demais sectores de actividade. O queijo típico de S. Jorge constitui um produto emblemático que assume um peso importante nas exportações dos Açores, particularmente para os mercados onde se radicaram emigrantes dos Açores. Mário Fortuna (2002)

GEOGRAFIA FÍSICA O concelho da Calheta ocupa 126,51 km2, o que corresponde a toda a parte oriental da ilha de S. Jorge, a mais antiga, e a um pequeno sector da parte ocidental, mais recente, nas freguesias da Calheta, da Ribeira Seca e do Norte Pequeno. Os dois sectores basálticos, do Topo e dos Rosais, são separados por um sistema de falhas com orientação NNW-SSE, que se localiza na parte ocidental do concelho, justamente entre os aglomerados urbanos da Ribeira Seca e da Calheta. Para oriente da falha da Ribeira Seca a morfologia do terreno consiste num planalto central que funciona de interflúvio entre as vertentes setentrional e meridional, e que, devido à erosão fluvial se apresenta, localmente, com a forma de crista, formando a serra do Topo, ou de cabeços basálticos (pico dos Fachos, com 857 m) e de tufos vulcânicos (cabeços da Cruz, da Forca e da Lagoa, entre outros). A vertente exposta a norte é a mais dissecada pela rede hidrográfica, muito ramificada e profundamente encaixada, como acontece com a ribeira da Caldeira. Na vertente sul o encaixe da rede hidrográfica não foi tão profundo e o declive é menor, com excepção das ribeiras dos Vimes, dos Bodes e de S. João. O litoral é alto, com arribas sub-verticais na costa setentrional e em alguns sectores da meridional, orladas por depósitos de desabamentos e de vertente que formam as fajãs detríticas. Destas, as mais notáveis, pela dimensão e forma, são, na costa norte, as da Caldeira e dos Cubres, cujos cordões litorais encerram lagunas de água salgada, e, na costa sul, a fajã dos Vimes. Na freguesia do Norte Pequeno há a considerar um outro tipo de fajã, formada por escoadas lávicas que entram pelo mar dentro, como a fajã do Norte Pequeno. Na parte ocidental do concelho, a morfologia difere pela forma dos cones vulcânicos, mais recentes e em forma de pico com crateras abertas, alinhados de norte para sul. Destacam-se o pico do Alandroal, mesmo sobre a falha da Ribeira Seca, e o alinhamento de cones de piroclastos e tufos que se estende desde o pico da Lagoa, da Brenha, do Meio, do Paúl, da Fonte, até ao pico da Calheta. O litoral é formado por uma arriba basáltica mais baixa, ligada a uma vertente costeira convexa, não entalhada pela erosão fluvial, por falta de ribeiras encaixadas. Junto à costa, na parte terminal das escoadas lávicas, encontra-se uma topografia mais plana, onde se localizam os aglomerados urbanos da Calheta e da Ribeira Seca. A ribeira Seca é um curso de água longo, mas pouco ramificado e mal encaixado, com pequenas cascatas ao longo do leito escavado nos basaltos. O clima é temperado marítimo, muito mais chuvoso na vertente setentrional. A vertente sul, além de ser mais soalheira, encontra-se abrigada dos ventos de sudoeste pela ilha do Pico.

DEMOGRAFIA O concelho é formado por 5 freguesias ? Calheta, Norte Pequeno, Ribeira Seca, Santo Antão e Topo, e em 1991 contava 4512 habitantes, dos quais 2186 homens e 2329 mulheres. Em 1991, a freguesia mais populosa era a Calheta, com 1371 habitantes (649 homens e 722 mulheres), seguida da Ribeira Seca, com 1174 habitantes (104 homens e 99 mulheres), de Santo Antão, muito próxima em valores, com 1097 (523 homens e 574 mulhres), do Topo, com 589 habitantes (294 homens e 295 mulheres), e, por fim, do Norte Pequeno com 281 habitantes (133 homens e 148 mulheres) (INE, 1991).

Na evolução temporal há a considerar a redução, para cerca de metade, da população do concelho, entre 1864 (8363 habitantes) e 1991 (4512 habitantes), tendo sido registado o valor mínimo de 4434 habitantes em 1980, e o máximo de 8544 em 1878 (INE, 1960, 1971, 1980 e 1991). O decréscimo deve-se à emigração, notável nas décadas de sessenta e setenta do século XX, e ao envelhecimento da população. M. Eugénia S. de Albergaria Moreira (2001)

HISTÓRIA Não tendo sido um dos primeiros núcleos de povoamento, é muito provável, porém, que os seus primeiros habitantes aqui se tenham instalado nos últimos anos do século XV. Fixados alguns em data anterior nos dois extremos da ilha, Velas e Topo, a pequena baía que daria o nome ao lugar terá sugerido a fixação humana a meio da ilha, numa extensão que se prolongará até à Fajã Grande. Segundo Manuel de Azevedo da Cunha, que à história da Calheta consagrou parte da sua vida, quatro casais se terão instalado em terrenos de datas: Nuno Álvares na zona do porto ao grotão; Manuel Fernandes Ferro, do grotão à Cruz; Vicente Dias Vieira, em boa parte da Fajã Grande. Segundo a tradição, posteriormente confirmada na ocasião da abertura de alicerces para a construção de habitação, foi desde logo construída uma pequena capela situada um pouco a oeste do terreiro do porto, sob a invocação de Santa Catarina de Alexandria.

De povoado, passará a freguesia, estendendo-se o núcleo populacional até à Ribeira Seca e a outros pequenos aglomerados disseminados pelas encostas e beira-mar. Elevadas já à categoria de vila as freguesias de Velas e Topo, o crescimento populacional da Calheta e a sua situação geográfica terão provocado a sua desanexação das Velas e a ascensão a concelho, distinção que ocorreu em 1534. De facto a carta régia de 3 de Junho deste ano, que confere à Calheta o estatuto de vila e sede do concelho do mesmo nome, alude não só ao crescimento populacional então verificado e que a tornavam «merecedora de ser vila», como à «opressão» sentida pelos seus moradores ao terem de se deslocar às Velas sempre que era necessário «requerer justiça». Tal como aconteceria com o concelho de Velas, também a parte Norte deste município conhecerá um povoamento tardio que decorrerá ao longo da segunda metade seiscentista e de que é prova a criação do curato de Norte Pequeno em 1717. Após o decreto de 24 de Outubro de 1855, que extinguiu o concelho do Topo, a Vila Nova do Topo e o antigo lugar de Santo Antão (elevado a freguesia por decreto de 6 de Junho de 1889) passaram também a integrar o concelho da Calheta.

A vila da Calheta, é sede da freguesia matriz de Santa Catarina, nela se integrando a Fajã Grande, que se prolonga ao longo da baía para Oeste, numa distância de 3 quilómetros. Na encosta situa-se o lugar dos Biscoitos que constitui um curato sufragâneo desde 1862, com ermida da invocação de Nossa Senhora do Socorro, construída em 1787. Integrado no mesmo planalto por onde se estende os Biscoitos, fica uma outra zona, também rural, denominada Relvinha. Já à altura da criação do concelho existia a igreja de Santa Catarina, no local onde se situa a actual. Parcialmente queimada em 1639, mas logo restaurada, seria sujeita a grandes obras em 1732 que o terramoto de 1757 quase destruiu, estando de novo reedificada seis anos depois. No século XVII mais de uma dúzia de confrarias, promovia o culto de Deus, de Nossa Senhora, dos Santos e das Almas, emprestando também algum brilho à celebração de certas festividades anuais.

Do ponto de vista administrativo, a Calheta fazia parte da capitania-donataria da ilha de S. Jorge, doada ao capitão-donatário de Angra João Vaz Corte Real, em 1483. Residindo este em Angra, fazia-se representar na ilha pelo seu ouvidor, cuja existência pode ser documentada a partir das primeiras décadas de quinhentos. Escolhendo as Velas para sua residência e, apesar da sua alçada se restringir a julgamento de recurso, nem sempre assim aconteceu, intrometendo-se em questões da alçada das câmaras e dos corregedores. Presidia á eleição trienal, ao sorteio anual dos pelouros, às tomadas de posse, passando as cartas de confirmação aos oficiais eleitos e apresentando os alcaides e carcereiros do concelho, prerrogativas que lhe conferiam algum protagonismo, embora o cargo fosse de exercício trienal. Findo o mandato, por vezes mantinha-se na ilha na qualidade de procurador dos interesses económicos do capitão do donatário.

No âmbito da administração régia é de referir intervenção dos corregedores, cujas visitas são cada vez mais frequentes à medida que a vida administrativa se vai organizando e complexificando com a existência dos três concelhos, com a necessidade de controlar efectivamente o funcionamento das instituições, a cobrança das fintas e o controlo da justiça. Também o almoxarife - algumas vezes lealdador dos pasteis ? era agente do poder central, competindo-lhe zelar pela correcta arrecadação das rendas reais, não lhe sendo estranhos alguns conflitos com os juizes ordinários. Em S. Jorge foi quase sempre exercido por gente da terra proposta pela Câmara das Velas.

Apesar de criado o município calhetense em 1534, quase só é possível reconstituir a sua gestão a partir da segunda década seiscentista, embora se conheçam os nomes de alguns juizes, vereadores, procuradores e escrivães em certos anos da centúria anterior. O Padre Manuel de Azevedo da Cunha, servindo-se dos livros das vereações ? depositados hoje, na sua maioria, na Biblioteca Pública e Arquivo de Angra do Heroísmo ? fez uma análise anual da actividade camarária até 1885, daí resultando os Anais do Município da Calheta. Da sua leitura se releva a actuação interventora do senado local no quotidiano, abrangendo os mais diferentes sectores da vida económica, social e política e por vezes até religiosa, bem como o seu relacionamento com a ouvidoria, o almoxarifado e a almotaçaria. Regendo-se pelas Ordenações do Reino e pelo Regimento dos oficiaes das cidades, villas e lugares destes Regnos e, embora estas Ordenações estipulassem a obrigatoriedade de reuniões bissemanais, nem sempre tal acontecia, já que o ano agrícola impunha a periodicidade de tal conselho. A presidência cabia a um dos dois juizes ordinários que administravam a justiça, cabendo aos vereadores a gestão económica. O procurador do concelho exercia também as funções de tesoureiro. O escrivão da Câmara assumiu sempre grande relevância, já que não sendo eleito, dava continuidade ao processo administrativo e acabava por ser quem melhor o conhecia e o podia conduzir, advindo-lhe daí, importância e protagonismo.

Em termos de organização militar, de referir a existência de um capitão-mor, eleito localmente, a partir da segunda década de seiscentos, que comandava as companhias de milícias, em que estava repartida toda a população activa masculina. Era coadjuvado por outros oficiais, sargentos e demais pessoal que integrava a hierarquia militar.

O aumento do corso e da pirataria nos Açores, sobretudo a partir de meados do século XVI levou a Coroa a cuidar da fortificação das ilhas, defendendo-as dos ataques inimigos perpetrados através dos portos e locais de fácil desembarque. Aliás as consequências dos ataques ocorridos em 1589-1590 pelo Conde de Cumberland, levaram as autoridades da ilha a reunirem-se na Calheta em Abril de 1591 para concertarem esforços no sentido de organizarem a defesa, quer através da construção de fortes minimamente equipados, quer no recrutamento de meios humanos. Não permitindo as parcas receitas camarárias grandes investimentos, foram lançados tributos específicos para as obras, não sem alguma contestação dos munícipes, sobretudo quando se adivinhava serem construções de certa dimensão. Daí alguns adiamentos sucessivos. A fortificação da Calheta ocorreu aquando da de Velas, embora talvez por escassez de meios não tivesse atingido a extensão da deste concelho. Por volta de 1619 ter-se-ão iniciado os trabalhos de levantamento da muralha que protegia a vila, desde o Varadouro até ao Portinho Velho, numa extensão de cerca de um quilómetro, seguindo-se-lhe a construção dos fortes que protegiam a entrada do porto: o de Santo Espírito (1620) e o de S. João Baptista (1652). A ameaça do corso argelino e o saque francês às Velas (1708) forçaram as câmaras jorgenses a decidiram reforçar a defesa, construindo novas fortificações. É em resultado deste intento que, na jurisdição da Calheta, é erguido o forte de Santo António na Fajã Grande (1708-1710), o de S. Sebastião na Fajã dos Vimes (1738) e um forte em ponta de diamante na Ponta do Açougue (1725-1728). A fortificação da ilha de S. Jorge, com a incorporação de homens nas companhias de ordenança dotou o concelho de algumas infra-estruturas que se revelaram por vezes insuficientes, como se denota ao longo da sua história. A partir de segunda década de Seiscentos o comando das companhias de ordenança dos concelhos da Calheta e Topo autonomizou-se do das Velas. Assim, em 1610 a Calheta passou a dispor de capitães-mores eleitos localmente, o que acontecerá também no Topo em 1618. Simultaneamente o número de companhias vai progressivamente aumentando. Em meados de seiscentos, segundo Frei Diogo das Chagas, o número de companhias de ordenança no concelho da Calheta era de duas, enquanto nos das Velas e Topo era, respectivamente, de sete e três. Note-se que cada uma destas companhias integrava mais de uma centena de soldados. Em 1709 o número de companhias havia aumentado consideravelmente, atingindo as vinte e oito. A capitania-mor de Velas com treze, a do Topo com seis e a da Calheta com nove.

O arroteamento das terras em S. Jorge como nas restantes ilhas açorianas não terá sido tarefa fácil. A fragosidade dos terrenos e a falta de mão de obra terão obrigado a um loteamento da terra ainda bastante cedo. Daí a constituição de senhorios ? alguns de razoável dimensão ? que António dos Santos Pereira investigou e cartografou. O do Conde de Aveiras era, sem dúvida o maior da ilha. Situado no concelho da Calheta, estendia-se por diversos lugares da Ribeira Seca: Fajã dos Vimes, Fajã dos Bodes, Loural, Sanguinhal, Fajã Redonda e Caldeira. A exploração da terra em regime de aforamento permitiu o seu aproveitamento, até aos não residentes, garantindo aos proprietários um pagamento, quase sempre em géneros e, por isso, liberto da inflação. Como refere o mesmo autor, cerca de metade dos terrenos estaria na posse de ausentes, do município ou de conventos e confrarias. Com excepção do Topo, boa parte da terra achava-se onerada e, mesmo as mais isentas, teriam de pagar o dízimo à Ordem de Cristo e a redízima ao capitão do donatário.

À semelhança do que ocorreu nas demais ilhas, os primeiros povoadores começam por desenvolver uma economia de subsistência que, de imediato, se transformará numa economia de mercado, ou pelo excedente de produção ou pelo aproveitamento e introdução do cultivo de produtos de valor comercial. Assim, à introdução do trigo, centeio e cevada, seguida da do milho em finais de seiscentos, aproveitar-se-ão madeiras e tintureiras (sangue de drago, pastel, urzela), artigos valorizáveis numa economia em expansão. Embora a ilha de S. Jorge, devido às características do relevo, não oferecesse as melhores condições para o cultivo dos cereais, as necessidades da população e até a satisfação dos encargos assumidos no arrendamento das terras levaram ao aproveitamento de todas as áreas do seu possível cultivo. A videira, introduzida pelos primeiros povoadores, cedo ganhou espaço nos terrenos a Sul, junto à beira-mar. Nas fajãs ? sobretudo nas viradas a Sul (Fajãs Grande, Vimes e S. João) ? os bacelos encontraram um habitat propício ao seu desenvolvimento. A importância dos cereais, bem como a do vinho, levava a vereação a intervir anualmente, fixando o seu preço de venda. Em período de carência era proibida, por vezes, a sua exportação e consentido que o dízimo fosse satisfeito em numerário, segundo o valor estipulado pela câmara.

Mas também a horticultura, a arboricultura e a criação de gado desempenharam papel importante na economia jorgense e, nomeadamente, na do concelho da Calheta. Além de plantas que cresceram espontaneamente junto de ribeiras ou em lugares esconsos, como o agrião e o aipo, cedo os povoadores introduziram a ervilha, a fava, os tremoços e outras plantas da tradição alimentar portuguesa. Mas também a abóbora e o inhame tiveram grande expressão na dieta alimentar. Este tubérculo conhecerá grande expansão sobretudo a partir da segunda década de seiscentos. Recorde-se que a decisão de se lançar um dízimo sobre a produção do inhame esteve na origem do levantamento popular de 1695, que teve o foco principal na Calheta, alastrando depois ao Topo e ao Norte Grande. As árvores de fruto, como macieiras, pereiras, marmeleiros, pessegueiros ou laranjeiras foram muito cedo cultivadas nos lugares mais abrigados e protegidas com paredes ou sebes.

É muito provável que a introdução de animais em S. Jorge tenha precedido o próprio povoamento, como, aliás, ocorreu noutras ilhas. A criação de gado foi uma actividade que cedo aqui despontou. As características do relevo e do solo associadas à elevada humidade propiciaram o alastramento da pastagem, sobretudo na zona Norte da ilha, situada a mais de 400 metros de altitude. Assim, a existência de rebanhos de ovelhas e cabras, sobretudo em baldios atribuídos aos municípios, é desde cedo assinalada. Mas, em zonas de cultivo e não só, regista-se a presença de gado bovino e cavalar, indispensável para os trabalhos agrícolas e até para o próprio estrume. Note-se, ainda, que a exportação de gado, vivo ou morto, constituirá uma das riquezas da ilha, a que se juntou a produção de queijo começado a fabricar desde o povoamento. Aliás a este facto não terá sido alheio a presença na ilha do flamengo Guilherme da Silveira, a cuja iniciativa se deve o começo desta indústria. Embora não seja possível cartografar as lavouras existentes na ilha em qualquer dos séculos do antigo regime, na zona rural da Calheta, bem como no Norte Pequeno, Ribeira Seca e Topo havia um predomínio de gado bovino e algum cavalar enquanto os rebanhos se distribuíam mais pelo interior, nas serras.

A actividade piscatória foi sempre relevante, quer na parte urbana, quer em pequenos portos distribuídos pela costa. A zona situada entre a Fajã de S. João e o Topo era particularmente rica. Os assuntos respeitantes a esta actividade económica, são frequentes vezes levados à vereação calhetense, quase sempre pela escusa dos pescadores em venderem peixe à população, destinando-o a melhores mercados como era o de Angra ou eventualmente até o de Velas. Os barcos seriam, provavelmente, construídos no estaleiro local, situado junto ao cais e cuja existência é documentada desde o início do povoamento. Embora sem a dimensão do das Velas, nele eram armadas embarcações de alguma dimensão, usadas não só no transporte interno, como no praticado com as ilhas próximas.

A cultura do linho desempenhou alguma relevância na economia da ilha, não só para consumo interno como até para exportação. João Soares de Albergaria de Sousa escrevia em 1822 que os panos de linho da ilha eram «dos mais bem fabricados», ao contrário dos de lã, que classifica de «sofríveis». Em meados do século XVII o seu preço, na Calheta, rondava os 300 réis a pedra. O linho era, sobretudo, vendido aos muitos tecelões das vilas e a sua exportação será objecto de uma imposição em 1686, o que terá causado um esmorecimento na sua cultura. Também a lã, produzida pelos rebanhos ovinos do concelho, depois de fiada, seguia para os muitos teares para o fabrico das peças, depois aproveitadas na confecção do vestuário de inverno. Estas, juntamente com as de linho, constituíam os chamados panos da terra, que supriam as necessidades da maior parte da população. A compra de outros tecidos só era acessível a uma minoria com alguns recursos económicos.

Só a partir do último quartel do século XVI é possível começar a quantificar a população da Calheta e do seu concelho, embora com alguma imprecisão. Gaspar Frutuoso (c. de 1587) aponta 110 fogos para a vila, com 421 almas e, para a Ribeira Seca, respectivamente, 65 e 198 almas. Já Frei Diogo das Chagas, reportando-se ao ano de 1643, indica, 120 fogos e 414 almas de comunhão tanto para a Calheta como para a Ribeira Seca. Tratando-se certamente de um lapso e, apoiado nas estatísticas publicadas pelo Padre M. Azevedo da Cunha, é mais provável que tais valores respeitem à Ribeira Seca, até porque, no final do século (c. 1695), Frei Agostinho de Monte Alverne regista para a Calheta 282 fogos com 1012 almas e para a Ribeira Seca 152 e 604, respectivamente. Um século depois, ou seja, na última década setecentista, verifica-se que o concelho da Calheta, com a inclusão do Norte Pequeno, tem uma população média de 3807 (28% da da ilha), assim distribuída: Calheta: 1271; Norte Pequeno 355; Ribeira Seca; 2181. Em 1837, a sede do concelho contava 380 fogos e 1640 pessoas, a Ribeira Seca atingia os 527 fogos com 2519 habitantes e o Norte Pequeno 116 fogos e 421 moradores. O concelho totalizava assim 1023 fogos e 4580 habitantes.

No estudo da sociedade calhetense, como na da restante ilha verifica-se que, à semelhança da de outras zonas de Portugal Continental, ela se apresenta estruturada em ordens e bastante corporatizada. Os pequenos nobres encimam a pirâmide social, assumindo os cargos de maior prestígio, nomeadamente os militares. Também clérigos e mercadores ocupam lugar cimeiro, enquanto lavradores abastados, tabeliães e escrivães, adquirem alguma proeminência social, desempenhando amiúde cargos camarários e conseguindo, à custa disso, alguma nobilitação. Depois dos artífices e pequenos rendeiros cuja sorte oscilava em anos bons e maus, situava-se o numeroso grupo dos jornaleiros, além de alguns criados, escravos, vadios e mendigos.

Se bem que os jorgenses tenham sido acometidos, ao longo dos séculos, de algumas calamidades, o terramoto de 9 de Julho de 1757, pelas suas consequências devastadoras, sobreleva todas as demais, sendo considerado o mais intenso tremor de terra da história dos Açores. Com epicentro na zona da Ribeira Seca e intensidade hoje calculada entre 10 e 11 da Escala de Mercalli Modificada, a sua acção fez-se, sobretudo, sentir nas Fajãs dos Vimes, de S. João, dos Cubres, Calheta e Topo. Além da violência do sismo, tido como de origem tectónica, o facto de ter ocorrido c. da meia noite, fez engrossar o número de vítimas mortais que terão atingido as 1034 pessoas. Mas além da perda destas vidas, numa população que talvez em pouco ultrapassasse os três milhares, o terramoto provocou a destruição do património e a alteração da paisagem, desorganizando o quotidiano e provocando a angústia e o desânimo. Mas, como escreveu Avelino de Freitas de Meneses, que ao assunto consagrou um interessante estudo, «a catástrofe demanda uma diligência colectiva, indispensável para o enterro dos mortos, a cura dos enfermos, a acomodação dos desalojados e ainda mais para a reconstrução do património e da convivência social». E, conclui o mesmo historiador que, «a breve trecho, o empenho dos povos e eventualmente a coordenação dos poderes locais operam um restauro custoso e notável» que mereceria o elogio da Coroa e a admiração do presente. Será que os açorianos e, nomeadamente os jorgenses, se haviam já habituado a conviver com a tragédia? Outras calamidades os aguardariam. Artur Teodoro de Matos (2001)

URBANISMO O termo ?calheta?, diminutivo de calhe, refere-se a «pequeno boqueirão, quebrada, angra ou aberta, que nas costas bravas, ou em que há recifes, dá passagem para o navio abordar, arribar à terra» (Silva, II).

Há vários topónimos semelhantes nos Açores, nomeadamente a *Calheta do Nesquim, núcleo piscatório da costa sul do Pico, o sítio da Calheta em Santa Maria, e a povoação das Calhetas na costa norte de S. Miguel. Mas é só na ilha de S. Jorge que encontramos esta designação com valor de sede concelhia, ao que parece com fundação primeva. De facto a Calheta faz parte do conjunto das vilas fundadas entre os séculos XV e XVI, no quadro geral do povoamento dos Açores, e particularmente em S. Jorge, com as Velas, de 1490, e o Topo, no extremo nascente da ilha (Fernandes, 1996: 87). Datando assim dos tempos iniciais do povoamento desta ilha, a Calheta localiza-se geograficamente a par, e de algum modo equidistante, dos sítios das Velas e do Topo (OA, 2000: 323).

A sua implantação territorial é semelhante à de vários povoados do litoral açórico, junto à costa, orientados para quadrantes de sul, assentes em plataforma ligeiramente sobreelevada em relação ao mar, e tendo a montanha ou falésia logo acima.

A estrutura urbana da povoação da Calheta é bastante elementar, correspondendo ao tipo linear, «o mais simples, corresponde a uma estrutura alongada, toda feita à volta de uma rua direita, principal, com curtas travessas a cruzá-la, e por vezes com um arruamento de carácter secundário paralelo ao primeiro; polariza-se normalmente entre um largo com funções religiosas e outro com vocação civil-administrativa, sendo ambos os espaços habitualmente pontuados pela ?matriz? e pela ?câmara?, respectivamente.» (Fernandes, 1996: 137).

Similarmente à Calheta, nos Açores e noutras ilhas luso-atlânticas encontram-se várias estruturas comparáveis, algumas delas mesmo tão simples ou elementares que poderiam designar-se de proto-urbanas: «?o povoado é muito frequentemente disposto perpendicularmente à costa (Machico e Ribeira Brava, na Madeira, Vila do Porto e Povoação nos Açores, Ribeira Grande de Santiago em Cabo Verde), seguindo o correr normal de uma ribeira; ou então ao longo do litoral, em plataforma ligeiramente sobreelevada (Calheta de S. Jorge, Lajes do Pico, Horta do Faial/1.fase, Santa Cruz da Madeira); certos tipos especiais de estrutura podem considerar-se combinações destes dois tipos de implantação (Santa Cruz das Flores e Santa Cruz da Graciosa).» (Fernandes, 1996: 138-139).

Na vila da Calheta identificam-se facilmente os «?traços de uma frágil estrutura urbana típica de uma vila piscatória. Este aglomerado, assente numa faixa plana encostada à montanha, é constituído basicamente por duas ruas convergentes no porto e unidas por duas ou três transversais que, ligando-as, formam outros tantos quarteirões. Contudo, a estreiteza da sua superfície, pouco maior que uma fajã, nem sequer permitiu que, associados à presença da igreja paroquial ou do edifício da Câmara, se definissem espaços públicos significativos. Estes confinam-se ao largo do cais e à marginal que, dele saindo, percorre todo o aglomerado. Debruando esta rua, no extenso muro branco protector, recorta-se uma assinalável sequência de bancos públicos que permitem a contemplação do mar. O pendor urbano deste núcleo revela-se ainda nos passeios com calçada à portuguesa que alegram as ruas, sendo de destacar o motivo representando folhas de inhame desenhado com cubo miúdo de basalto e calcário» (OA, 2000: 330).

ARQUITECTURA Como noutras povoações açorianas, a casa com torre é uma das variantes tipológicas frequentes em S. Jorge, surgindo nomeadamente nas vilas, e especificamente na Calheta, com construções bem marcadas pela presença do módulo, constituído este pelo volume superior torreado, com cobertura de duas águas, construído em madeira.

Trata-se de uma «?situação naturalmente enfatizada pela repetição do módulo. E é mais uma vez da conjugação da variante formal com a invariante estrutural que resulta uma qualificada situação, agora claramente urbana. Na Calheta, a frente urbana que se vira para o interior da vila caracteriza-se pela sucessão de largos lotes de edifícios de dois pisos iluminados pela presença das torres: construções em madeira que transportam a nostalgia dos desenhos eclécticos de final de século [XIX] patente no goticismo das vergas, nas varandas trabalhadas, no rendilhado da aba das coberturas. Nostalgia que estende aos seus espaços interiores, com a magia da torre que se vira ao mar e, neste caso, também à paisagem poderosa do Pico em frente.» (OA, 2000, pág. 350-351).

Efectivamente, a frente ou sequência construída paralelamente à costa, no centro da Calheta, apresenta três interessantes edifícios de dois pisos, cada um deles com um expressivo e autónomo corpo torreado superior, em estrutura de madeira, e com revestimento lateral em tábua, sendo a cobertura dupla em telha tradicional de meia cana ou de tipo marselha. Cada uma dessas torres exibe vãos, de sacada ou de peito, com a verga ogival de memória ou evocação neo-gótica: num caso, há um vão simples; noutro, um vão de peito, de verga trilobada; noutro ainda, dois vãos de um lado, e três de outro, com varanda, do lado da fachada, envolvendo-os em conjunto (além do óculo circular a sul, e ainda de uma cuidada sanca de madeira rendilhada debruando duplamente a cobertura).

Um dos aspectos mais interessantes deste agrupamento em série de três edificações é o facto de terem as fachadas principais viradas «de costas ao mar», com as três torres superiores marcando claramente o eixo de simetria de cada edifício e a sua entrada ? mas igualmente o facto de as mesmas três torres abrirem para o lado oposto, olhando portanto o mar e o Pico, embora aqui em ?competição? com a fortíssima presença dos enormes volumes das chaminés, sobre os respectivos e descomunais fornos.

Passemos agora à arquitectura de cariz utilitário ou ligada à produção. Na obra de Veiga de Oliveira, Fernando Galhano e Benjamim Pereira sobre sistemas de moagem tradicional, é referido um original e raro tipo de moinho antigo, que só é detectável (à época do estudo referido) na Calheta e no Topo, em S. Jorge. Trata-se de «?outro tipo de moinho giratório, de madeira (?) de espigão excêntrico, à frente, cravado no próprio moinho, e que assenta no solo, sem pedestal ? que tem o seu exacto paralelo nos moinhos do mesmo género, que ocorrem, ainda hoje com relativa frequência, na zona litoral central e norte do país mas que não existem nas demais ilhas [dos Açores]». Os autores descrevem de seguida, em pormenor, toda a estrutura, elementos funcionais e materiais utilizados neste moinho, exemplar único da Calheta (Oliveira, 1983: 457-462). José Manuel Fernandes (Abr.2001)

ASPECTOS RELIGIOSOS À semelhança do que sucedeu nos demais espaços atlânticos recém-descobertos, os primeiros calhetenses manifestaram a sua religiosidade de acordo com a matriz reinol/mediterrânica. O povoamento tardio do concelho da Calheta, em relação aos outros dois municípios existentes, Velas e Topo (este último extinto em 1855), assegurou a transplantação das raízes medievais católicas para este espaço, onde o isolamento e o vulcanismo vivificaram os sentimentos e a devoção religiosos.

Igrejas, Ermidas e Conventos ? As várias igrejas, ermidas e capelas que, ao longo do tempo, foram sendo erectas na Calheta são de invocação predominantemente santoral e mariana, no que prolongam a devoção medieva, acirrada em todas as ilhas pelo isolamento imposto pela insularidade.

O edifício da igreja matriz, dedicada a S. Catarina, já existia no século XVI, tendo adquirido o nome de uma pequena ermida, que terá sido o primeiro templo religioso construído na Calheta. Em 1732, o aumento populacional no concelho e o desejo de dignificar a zona do adro da matriz (por onde deveriam passar as procissões), levaram o pe. João Machado Teixeira a iniciar obras de melhoramento do edifício que, interrompidas pelo terramoto de 1757, apenas seriam terminadas em 1763. No século XVII, além da matriz, fr. Agostinho de Montalverne refere a existência de 4 ermidas pertencentes à freguesia de S. Catarina, dedicadas a S. Pedro, S. Bartolomeu, S. Sebastião e S. Lázaro. Muitas das ermidas e capelas foram erectas por indivíduos leigos, geralmente de estirpe sócio-económica mais elevada, como é o caso da capela de Nª Srª dos Remédios, na matriz de S. Catarina, instituída no século XVI pelo fidalgo escudeiro João de Águeda, com o património de meio moio de terra de pão. Também a mulher do capitão António Faustino da Silveira, Ana de Jesus, no seu testamento de 1786, deixa um terreno (em valor de 40$000 réis) para a construção de uma ermida dedicada a Nª Srª do Socorro. Seria nesta ermida que, em 1862, foi criado o curato dos Biscoitos.

O beneplácito de particulares a favor do religioso também se manifestou no desejo das elites locais em edificar conventos. Em 1718, o pe. José de Sousa Soares doou uma casa com quintal para ajuda da construção de um convento de frades franciscanos. Em 1728, D. Maria Machado de Sousa, filha do capitão Gonçalo Pereira Machado e casada com o capitão Simão Pereira de Sousa, fez um testamento no qual reserva parte dos seus bens para o padroado de um convento ou hospício, em caso de não ter descendência. Nenhum dos conventos foi feito. Além do mais, é curioso que não haja registo de intenções anteriores de erecção destes edifícios. Como sabemos, nas ilhas mais importantes nas perspectivas demográfica, social e económica, como S. Miguel e Terceira, durante os séculos XVI e XVII, surgiram diversos mosteiros, particularmente femininos, sob a protecção das principais famílias. O já indicado povoamento tardio da pouco atractiva Calheta, a sua fraca densidade populacional (por exemplo, em 1643, o cronista fr. Diogo das Chagas indica que, das três vilas então existentes - Velas, Topo e Calheta - esta última era a que tinha menos fogos), e o estatuto social dos primeiros moradores podem ser dados a considerar para a ausência de tais intuitos em tempos mais remotos. António Santos Pereira corrobora este dado, quando refere que as povoações jorgenses, com excepção para as Velas, possuíam um grupo diminuto de grandes proprietários e registavam uma maior homogeneidade social.

Igrejas e ermidas eram, por excelência, os locais de sepultura dos calhetenses. Quando os solos daquelas ficavam cheios, ou em caso de uma mortalidade elevada, o adro servia para o mesmo fim. Foi o que sucedeu aquando do terramoto de 1757, quando foram sepultados no adro da matriz de S. Catarina 125 cadáveres. Este arreigado costume do enterro apud ecclesiam levou a que, em 1834, perante o desejo do pároco em enterrar uma criança no cemitério paroquial recém construído, de acordo com as ordens estatais que impunham medidas higienistas a este respeito, a população do concelho reagisse com hostilidade, fenómeno, aliás, comum a muitas outras zonas do país.

O clero ? O número e as necessidades dos moradores determinaram a composição do clero calhetense que, desta forma, apresentava uma constituição simples (vigário, beneficiado e tesoureiro), tal como sucedia nas demais freguesias da ilha, com excepção para as Velas, sede da ouvidoria jorgense. Segundo António Santos Pereira (Pereira, 1987), as vigararias das Velas e de Nª Srª do Rosário, no Topo, eram as mais cobiçadas, uma vez que as respectivas densidades demográficas garantiam mais receitas e uma maior intervenção do eclesiástico nas vidas privada e pública dos seus habitantes. Na Calheta, como zona rural e de menor importância política, o poder dos eclesiásticos na vida quotidiana seria considerável, exercido pelo controle efectivo sobre toda a população, designadamente através do ensino da doutrina e da administração dos sacramentos. As boas relações entre o clero e a comunidade paroquial, desta forma, dependeriam das personalidades em causa e do ambiente social, económico e político de cada época. É neste contexto que se compreende que o já referido vigário e ouvidor eclesiástico, João Machado Teixeira, no cumprimento de um capítulo de visita pastoral sobre a ampliação do templo da matriz de S. Catarina, mandasse prender os fiéis que se recusavam a ajudar nas obras. Para um estudo pormenorizado sobre o clero calhetense torna-se indispensável a consulta da obra de Manuel de Azevedo da Cunha que, no 1º volume das suas Notas Históricas, apresenta um levantamento onomástico de todos os padres que assistiram no concelho da Calheta, desde a década de trinta do século XVI até aos inícios do século XX, acrescentando dados sobre a respectiva filiação e percurso eclesiástico.

Aspectos devocionais ? As manifestações devocionais religiosas da população calhetense poder-se-ão registar através de vários aspectos, em muito semelhantes ao que encontramos em outros concelhos açorianos.

a) A devoção em vida. A realização de procissões era um dos momentos altos da expressão religiosa colectiva, entre as quais se destaca a do Corpo de Deus, pelo seu simbolismo e por agregar todos os corpos da sociedade local. Outras procissões resultavam da iniciativa de particulares, como sucedeu em 1639, quando uma nova procissão agregou o povo calhetense na comemoração de um facto que foi considerado um milagre: neste ano, o fogo que deflagrou na matriz de S. Catarina, e que atingiu a capela do Smº e o sacrário, não destruiu a hóstia consagrada que permaneceu incólume. Desde então, o capitão-mor Bartolomeu Nunes Pereira responsabilizou-se pela realização anual de uma procissão evocativa do ?milagre?, que não foi, todavia, interiorizada pela população. Com efeito, na sessão camarária de 8 de Janeiro de 1664, os vereadores calhetenses referiam que, desde há anos, o festejo não era celebrado e decidiram retomar a tradição, comprometendo-se a sustentar os gastos quando as esmolas não fossem suficientes, tornando-se claro o aproveitamento do poder civil que, através da teatralização que as procissões permitiam, fazia questão de garantir o seu prestígio e a sua superioridade perante a comunidade local.

A devoção dos calhetenses manifestava-se, igualmente, pela adesão às *confrarias que, pouco a pouco, foram criadas nas diferentes igrejas e ermidas. No século XVII, o número de irmandades existentes na Calheta era de 14: Nª Srª da Conceição, Nª Srª da Graça, Nª Srª dos Remédios, S. Catarina, S. António, S. Bartolomeu, S. Brás, S. Francisco, S. Lázaro, S. Pedro, S. Sebastião, Bom Jesus, Fiéis de Deus e Smº Sacramento (Pereira, 1987). Já em 1727, foi criada a Confraria de S. Rita, pela iniciativa do vice-vigário António Silveira Machado. Mais uma vez, destacamos a predominância das confrarias santorais e marianas no concelho da Calheta, de acordo com a tradição medieval portuguesa, em detrimento das que o Concílio de Trento tentava impôr (Smº, Nª Srª Rosário e Almas). Este dado poderá ser justificado pela escassez de orientação contra-reformista na ilha, que muitos bispos açorianos divulgaram através das suas pastorais e visitas. Ora, o êxito das mensagens pastorais dependia da colaboração do clero residente e, desde o povoamento até finais do século XIX, a ilha de S. Jorge apenas recebeu três visitadores (nos anos de 1664, 1675 e 1890). Todavia, só um estudo sobre o arquipélago, em que as semelhanças e diferenças devocionais sejam registadas, poderá avançar sobre a individualidade da vivência religiosa dos calhetenses.

Como fenómeno associativo de cariz fraternal, destacamos também a criação da Ordem Terceira de S. Francisco, em 1688. Esta irmandade surgiu pela pressão e iniciativa de alguns irmãos terceiros moradores na Calheta, incomodados pelo facto de terem que se deslocar à vila das Velas para cumprirem os encargos e gozarem os benefícios da irmandade. O património para a capela da Ordem foi dado pelo capitão João Teixeira de Lemos e sua mulher, Isabel Ribeiro, e a licença para a celebração das missas foi concedida em 1696.

Num período posterior, terá sido criada a irmandade do Espírito Santo, sobre a qual só é conhecida informação setecentista. Esta associação, se tardia em relação a outras (apenas em 1836, por exemplo, é que se construiu a casa para o depósito dos alimentos distribuídos na festa, anteriormente guardados no edifício camarário), vingou desde logo com fulgor. Com efeito, já em 1792, e só na freguesia da Ribeira Seca, havia dois impérios, o dos irmãos velhos e o dos irmãos novos. A devoção particular garantiu o êxito destes organismos, que sobreviveram até à actualidade, como a do capitão António Dias que, durante a 2ª metade de Setecentos, dava anualmente ao império 800 bolos e 2 cestos de queijos. Também relativamente tardia terá sido desenvolvida a devoção ao Santo Cristo que, segundo a referida obra de Manuel de Azevedo da Cunha, terá sido influenciada pela tradição micaelense. Com efeito, as ermidas dedicadas ao Senhor Santo Cristo de Entre-Ribeiras, no Topo, e da Caldeira, datam já do século XIX; e a sua imagem na matriz de S. Catarina foi oferecida por um particular, em 1840.

b) A devoção na morte. A preocupação dos calhetenses com a salvação da alma traduzia-se na forma como estipulavam todo o cerimonial e sufrágios nas cédulas testamentárias. A doação de bens à igreja e, principalmente, às confrarias presumia sempre que estas instituições cumprissem os legados anexos a essas dádivas. É o que sucede com o casal Damião Fernandes e Apolónia Dias que, em 1598, deixaram à Confraria do Smº o foro de três cruzados, com a pensão perpétua de uma missa cantada; e com Francisco Gonçalves Quadrado que, em 1680, deixou 10$000 réis à confraria de Nª Srª da Conceição, com encargo perpétuo de uma missa rezada.

Além das confrarias, os pobres eram os principais beneficiários das doações perdulárias dos defuntos. A obrigação cristã de ajudar os necessitados, como forma de agradar a Deus, deveria ser assumida pelos mais abonados, apesar do benefício não ser aleatório. Em 1865, José Maria de Azevedo Pereira, imigrante do Rio de Janeiro, estipulou no seu testamento a distribuição de 50$000 réis pelos pobres da freguesia de S. Catarina e 20$000 réis pelos indigentes do lugar dos Biscoitos, mas apenas àqueles que apresentassem ?atestado de pobreza?. A prática caritativa que as referidas festas do Divino Espírito Santo promovem, ainda na actualidade, ilustra a resistência de alguns fenómenos religiosos na ilha de S. Jorge. Susana Goulart Costa (Mai.2001)

 

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