Quando se fala de identidade própria de um grupo ou de um povo está-se referindo aquele conjunto de características que tornam os seus membros individual ou colectivamente distintos de outros grupos e que é desejável que gere uma imagem positiva de si próprio, que desenvolva o gosto de ser como é e consequentemente se aprecie a diferença. Bem sei que hoje em dia, em época de globalização e de pensamento pós-moderno, falar de identidade, nacional ou regional, pior talvez esta, é levantar suspeitas de xenofobia e de nacionalismos serôdios geradores de ódios e perigosa auto-segregação, mas tudo isso me parece doentio e constato que o gosto pelas identidades não desapareceu e até se reavivou como forma de resistência à massificação. Vejo que por toda a parte as identidades, mesmo as regionais e até os localismos, renascem.
No caso dos Açores, a consciência de diferença em relação ao outro, que é o início da caminhada para a identidade, desperta muito cedo como testemunho e numa região arquipelágica é natural que se manifeste antes de mais em relação ao vizinho da outra ilha ou das outras ilhas. É clássico o exemplo do discurso de Frutuoso ao assinalar, com crítica ou sem ela, as diferenças dos florentinos, mas a literatura local, está cheia de outros exemplos a que muitos chamam bairrismos, mesmo quando tais diferenças são olhadas com inveja pela manifesta superioridade do outro. Aliás, esta consciência das diferenças reais ou imaginadas dos vários insulares tem servido de argumento para negar a existência de uma identidade açoriana que não resistiria aos particularismos, mas quem isso afirma esquece-se que não há universais nas sociedades e que os arquétipos da identidade são sempre e só os da maioria. Isto para os arquipélagos como para os continentes, para as nações como para as regiões.
Mas se o primeiro passo é a tomada de consciência pelos próprios da diferença, a fixação de uma identidade passa pela construção teórica, que é função das elites e pelo reconhecimento, principalmente pelos outros, mas também pelos próprios, dessa diferença. O percorrer desse caminho está hoje bem estudado para o caso açoriano e encontram-se raízes profundas em exemplos mergulhados nos cronistas mais antigos, com destaque para o Padre António Cordeiro, na História Insulana (1717) quando enfatiza a sua condição insular portuguesa e alerta o poder para o perigo de afrontar os açorianos, aconselhando mesmo a vantagem de um autogoverno sustentado pela fidelidade das vassalos ilhéus em contraposição ao envio de reinóis como governantes.
O século XIX trouxe a inventariação e a sistematização das fontes como sustentáculo de um pensamento da identidade açoriana, mas a primeira fase assentou em alicerces da paixão política, nem sempre boa conselheira. Perante a surpresa do abandono, da pouca atenção e das manifestas injustiças praticadas para com os Açores e os açorianos pelos sucessivos governos a intelectualidade local reagiu com a vontade de marcar a diferença pela revolta contra as instituições. O pensamento mais estruturado dessa linha da busca da identidade como oposição ao outro encontra-se em João Soares de Albergaria e Sousa na sua Corografia Açórica (1821) uma espécie de manifesto de libertação de um povo escravizado mas pronto a assumir o seu destino. É ela a Corografia, a mãe de todas as orientações separatistas, independentistas e até autonomistas que nasceram ao longo do século XIX e XX e que se alicerçaram na busca do suporte justificativo da revolta dos escravizados, com manifesta inspiração na linha dura do anticolonialismo americano da revolução atlântica.
O pensamento político da primeira geração autonomista, principalmente o grupo micaelense de 1895, foi o herdeiro dessas teorias libertadores e inspiradoras pela busca de uma identidade de suporte à existência de açorianos como povo claramente diferenciado do português, por ser uma realidade nascida da relação com povos de outras raças e moldado pelo determinismo geográfico. O discurso teórico de Aristides Moreira da Mota é o mais lídimo representante desta realidade cultural, ainda que a acção praticada por ele e pelos líderes políticos da autonomia novecentista tenha seguido outra orientação.
Outros ânimos mais serenos, mas não menos empenhados, contribuíram com uma melhor sistematização de suporte científico a fim de se compreender o fenómeno da identidade regional, da definição do que é ser-se açoriano e do contributo do esforço insular para a nação portuguesa. José de Torres e Ernesto do Canto escudados na sua armadura de intelectuais respeitados e admirados foram os grandes cabouqueiros desse esforço de levantamento de fontes, mas também dos primeiros trabalhos académicos que tinham como referência o gosto pelo regionalismo desinteressado.
Foi ainda pela porta da política, mas como reacção ao pensamento de suporte a uma identidade anti-portuguesa que a geração das primeiras décadas do século XIX estruturou a sua leitura do fenómeno da identidade açoriana. Anteriormente a eles, Arruda Furtado havia, com as ferramentas do naturalismo, procurado a diferença entre os «povos dos Açores», entre estes e os do continente português e destes entre si e ao aprofundar as observações sobre o «povo micaelense» não gostou do que via. Um povo inferior, nascido da separação a que o havia obrigado o continente português numa época gloriosa de novas ideias, que os açorianos não tinham podido usufruir.
A teoria de Arruda Furtado não resiste à crítica e obviamente uma diferença marcada pela inferioridade não poderá ser suporte para uma identidade consequente, não admirando pois que ele próprio tenha passado ao limbo do esquecimento na genealogia das teorias identitárias dos Açores.
Foi Luís Ribeiro o responsável pelo arranque da construção de um novo suporte científico para a compreensão da identidade açoriana. Com ele abre-se o caminho para o entendimento do que é ser-se açoriano como variedade do ser-se português e com ele também se trás para a discussão académica o ideal de um açorianismo emigrante em que os açorianos separados de Portugal no período áureo da «civilização portuguesa», se transformaram pela insularidade na quinta essência do portuguesismo. Em seu auxílio e dando um suporte de mais profundo e requintado às suas teorias, veio Vitorino Nemésio que em 1932 criou mesmo um nome para essa realidade, a *açorianidade, que passou a ser a evolução para um conceito até então difuso.
A crítica à nova construção teórica da açorianidade tem sido feroz, dentro e fora do arquipélago, mas ela tem sobrevivido denodadamente como expressão consagrada da condição histórica, geográfica, social e humana do ser açoriano. Outra coisa é o aproveitamento dessa condição e as consequências que dela advém.
A açorianidade fixou em termos teóricos a fundamentação para a existência de uma «alma açoriana», dando corpo a uma consciência identitária e por isso, com mais ou menos ajustamentos, veio para ficar.
Contudo, o esforço de compreensão do que é ser-se açoriano e de como se pode definir o perfil do açoriano continua e continuará, evidentemente. Nos nossos dias o discurso da açorianidade assumiu uma faceta consensual sobre o conceito e os estudos literários, históricos, etnográficos, psicológicos ou políticos, reivindicam-no como suporte ao seu esforço de investigação e dão ao açoriano uma faceta transnacional que permite que reivindiquem da comunhão de açorianidade as mais variadas comunidades espalhadas pela diáspora dos açorianos pelo mundo.
É ainda na açorianidade que se fundamentam as reivindicações de autonomia política, que a Constituição legitima, aceitando a identidade própria dos insulares. J. G. Reis Leite
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