A Palavra e o Conceito ? A palavra insularidade pode considerar-se um neologismo do século XX, porquanto a sua inclusão em dicionários só começou a verificar-se a meados do mesmo, apesar de o radical de que deriva já estar registado no Dicionário de Morais, em 1813. O conceito por ela expresso é variável, e a sua correspondente em outras línguas cultas torna-se tanto mais redutor quanto menor é o convívio dos respectivos povos com o mar. Mesmo em inglês, «insularity» só surgiu, em textos literários, cerca de 1900, e ocorre apenas 50 vezes em cada cem milhões de palavras, mas sobretudo na acepção de isolamento ou atraso social e cultural. A própria evolução da palavra «ilha» (do Latim «insula», provavelmente por via do provençal/catalão «illa») e suas derivadas, regista um frequente uso metafórico ou extensivo, que se verificava já na Roma antiga, em que a cada quarteirão residencial da plebe se chamava «insula», por oposição à «domus» das classes abastadas. Ou, como acontece no castelhano, em que «aislamiento» (isolamento) contém intacto o substantivo «isla» (ilha).
Em Portugal, insularidade começou por referir-se principalmente às circunstâncias culturais dos habitantes das ilhas, mas num sentido de dinâmica, evoluindo para a predominância do campo da geopolítica e da economia sobretudo por influência das autonomias insulares, marcando assim uma diferença de condições em relação ao território continental.
Insularidade e Território ? Fora do conceito estritamente semântico, a insularidade é tão variável quantas as circunstâncias que possam defini-la. Essas circunstâncias estão relacionadas sobretudo com a dimensão física e social das ilhas e a sua distância dos continentes. Poderá falar-se de uma insularidade imediata ? no caso de ilhas com comunicações directas a territórios continentais ou a regiões insulares de grandes dimensões e desenvolvimento ? e de uma insularidade absoluta ? quando a população é reduzida e, para além das raras ilhas solitárias, aquelas comunicações são longínquas ou só possíveis através de outras ilhas. Por isso não fará sentido falar de insularidade no caso da Grã-Bretanha, por exemplo, enquanto que, entre a insularidade das ilhas de Wight e da Ascensão, há uma diferença que ultrapassa em muito o âmbito do conceito.
Se, aceitando a lição de Abraham Moles, a ilha ideal é aquela que facilmente pode percorrer-se num dia, nos Açores, e antes dos transportes modernos, teria havido apenas uma, o Corvo. No entanto, o arquétipo de ilha está mais dependente da sua relação com o mar, pelo que a ilha verdadeiramente «insulada» é qualquer uma de onde o mar nunca se perca de vista. Por isso, nos Açores, são-no as nove.
Insularidade e Sentimento ? Uma ilha é um espaço de afectos e de sentimento com limites marcados pelo mar. As fronteiras insulares distinguem-se, assim, das continentais, onde, excepto no caso da Austrália e de algumas ilhas de grandes dimensões, o território é partilhado por vários povos ou estados. Deste modo, uma ilha torna-se o espaço afectivo de referência. Um continental sabe onde começa a «sua terra», mas não onde ela acaba (Nos limites da freguesia, da vila, da cidade? Nas fronteiras do concelho, do distrito, da região ou do rio mais próximo?). A insularidade, no entanto, tem medidas exactas; e a ilha é a medida da «terra» de quantos nascem e vivem nela. Por isso as romarias da Quaresma dão a volta completa a S. Miguel, ou em Santa Maria se fazem as sopas do Espírito Santo em quantidade que baste para todos os habitantes, tal como na Terceira é ela inteira que pode ser o palco para os bailinhos e danças de Carnaval.
A definição do espaço, concreto e à medida humana de costa a costa, cria o sentimento de que a ilha pertence a quem a habita, e que quem a habita lhe pertence. É esta a razão por que a saudade dos ilhéus parece mais forte, mais irremediável, do que quem abandona, num continente, a terra onde nasceu.
Insularidade e Mentalidade ? É muito diferente a perspectiva da insularidade, conforme seja sentida por um camponês, a quem baste a terra onde trabalha e o espaço onde caminha, ou por um erudito. Para este, a insularidade respeita mais ao desenvolvimento social ou à sua falta do que à geografia da ilha. Assim, e como o seu espaço vital é outro, o Pico poderá ser mais insulado que o Faial, por exemplo.
Mas esta insularidade é também um desafio a vencer. Para além da insuficiência da ilha, há a atracção do que é universal, pelo que, transpostos os limites físicos marcados pelo mar, deixam de existir outras fronteiras. O ilhéu é, muitas vezes, alguém mais bem informado a respeito do Mundo do que os continentais que culturalmente, e segundo as condições sociais e nível de saber oficialmente adquirido, lhe sejam equivalentes. Por isso na Graciosa, a meados do século XX, havia em média um piano por cada cinquenta habitantes, e, no Corvo, se verificava talvez o maior índice de leitura do país inteiro. E foi talvez esta consciência da ilha insuficiente como espaço cultural que fez João Caetano de Sousa e Lacerda, pai do compositor Francisco de Lacerda, desenvolver em S. Jorge um espírito lúcido e culto, ou Roberto de Mesquita estar atento, nas Flores, às mudanças literárias da sua época.
Insularidade e Utopia ? Mesmo para quem vive numa ilha, a ideia de um paraíso na Terra é quase sempre outra ilha. E isto decerto porque a limitação do espaço à medida humana, a possibilidade de se conhecer paisagem e povoamento à semelhança do modo como se conhece a casa que se habita, o isolamento em relação a meios eventualmente transgressores da identidade social a que se pertence, dão a ideia de que o mundo e a vida podem estar mais próximos da perfeição num espaço insular. Por isso é numa ilha que Thomas More situa a «Utopia». É certo que os meios de comunicação modernos põem em risco essa imaginada harmonia do espaço pequeno e das almas contadas, mas as principais influências que definem o ser humano continuam a ser determinadas principalmente pelo ambiente social concreto em que ele se desenvolve. Nos espaços continentais há uma osmose mais imediata de comportamentos e culturas, e, embora se afirme que vivemos numa aldeia global, a globalização atinge mais facilmente os grandes meios, sobretudo porque ela vai sendo construída por razões de mercado económico mais do que de interesses culturais, só importando estes se deles depender a aceitação daquelas. Com frequência a insularidade permanece como a memória do que o mundo terá sido, em tempos mais próximos ou menos próximos conforme a possibilidade de contacto com o exterior e o próprio ritmo de assimilação das mudanças por parte dos ilhéus.
É interessante o facto de Thomas More, embora inspirado nos Descobrimentos que ligaram a Europa a outros continentes, onde abundavam o fausto e todas as riquezas reais ou imaginárias, ter imaginado a perfeição numa ilha que antes fora península, sendo-lhe destruído o istmo para se isolar. Essa ilha, tornada inexpugnável, e que lhe teria sido revelada por Rafael, um marinheiro português sob o comando de Américo Vespúcio, está fortemente defendida de qualquer invasão estrangeira, e tem as cidades distantes umas das outras apenas por um espaço que possa ser percorrido num dia, o que lhe garante a unidade cultural.
Insularidade e Ambiente ? A reduzida dimensão das ilhas e a sua característica de espaço fechado conferem-lhes homogeneidade de clima e de meio ambiente. Embora, como nos Açores, a exposição aos ventos dominantes bem como a maior ou menor distância ao continente americano possam provocar diferenças ocasionais dentro de cada ilha e, mais sensivelmente, quanto à intensidade do vento e níveis de pluviometria de ilha para ilha, diminuindo de Ocidente para Oriente, a unidade não é afectada de modo a que haja variações notáveis, sobretudo na flora e na fauna. Estas características, no entanto, tornam as ilhas ecologicamente vulneráveis. Os mecanismos de defesa natural são frágeis, pelo que não são necessárias grandes alterações em quantidade para provocar desequilíbrios que ponham em causa todo o sistema ecológico insular, frequentemente ameaçado devido a abuso dos recursos existentes ou pela introdução de novas espécies, quer vegetais quer animais, ou mesmo totalmente arruinado ? como no caso da ilha da Páscoa, por desflorestação; de Nauru, por exploração mineira; ou do Porto Santo, pela introdução de coelhos antes do povoamento. Em contrapartida, desde que não sejam irreversíveis os prejuízos causados, a recuperação ambiental das ilhas pequenas é mais fácil de conseguir do que a das grandes extensões territoriais, pelas mesmas razões que definem a sua fragilidade, tão prejudicial nos Açores em tempos passados quando a produção agrícola era afectada por uma qualquer anormalidade violenta das condições do clima, provocando crises alimentícias graves.
Insularidade e Arquipélago ? Os condicionalismos da insularidade são atenuados quando as ilhas se agrupam em arquipélagos, quer no que respeita às necessidades de subsistência ? salvo nos casos em que as características de todas elas sejam de tal modo semelhantes que a existência próxima de outras ilhas não represente uma possibilidade de recursos alternativos ? quer quanto à diminuição da carga emocional negativa que o isolamento possa eventualmente provocar. A proximidade das ilhas, bem como a ideia da sua pertença a uma unidade geográfica definida, contribuem para a identidade comum que normalmente caracteriza os habitantes de um mesmo arquipélago. Sob este ponto de vista, os Açores constituem um caso notável de unidade na diversidade. E isto não apenas no que respeita à geografia, flora e fauna, mas igualmente aos factores de referência que possam servir para a definição eventual do conceito de açorianidade. As diferenças existem, e por vezes muito acentuadas, quer de ilha para ilha quer até dentro da mesma ilha (os modos de falar são um dos exemplos mais imediatos), mas persiste sempre a possibilidade de uma espécie de visão sincrética que torna quase evidente a constatação de uma identidade comum. Tais características de identidade ter-se-ão mantido ao longo dos séculos sustentando-se talvez, e principalmente, na unidade religiosa (a predominância absoluta do catolicismo e a existência de uma diocese única) e na consciência do isolamento partilhado. Isto não obstou, no entanto, a que o substantivo e adjectivo «açoriano» só tenha entrado no uso corrente já no século XIX. Daniel de Sá
Bibl. É praticamente nula, pelo menos em português, bibliografia específica acerca da insularidade. No entanto recomenda-se, como aproximação ao tema, as seguintes Obras. Cordeiro, C. (1992), Insularidade e Continentalidade. Coimbra, Minerva Histórica. Almeida, O. T. (1989), Açores, Açorianos, Açorianidade. Ponta Delgada, Signo.