Governo dos Açores - Secretaria Regional da Educação, Ciência e Cultura - Direção Regional da Cultura

literatura açoriana (teoria de)

A existência de uma Literatura Açoriana no quadro cultural da Literatura Portuguesa tem levantado várias questões teóricas de algum tom polémico. A reivindicação de um carácter açoriano para uma literatura de língua portuguesa não só se tem feito por via das expressividades linguísticas locais (fonéticas e lexicais), como também por aspectos telúricos e de uma natureza insular, como ainda por um protesto do espírito autonómico, que quer ver reconhecida uma identidade. A literatura referida aos Açores seria açoriana em plena significação da palavra se açoriana fosse um adjectivo de nacionalidade. Não sendo os Açores independentes (a nível político ou linguístico), é um adjectivo de impregnação de conteúdo, de referências culturais. Talvez por isso António Machado Pires prefira falar em «Literatura de Significação Açoriana» em vez de, tout court, Literatura Açoriana, e Cristóvão de Aguiar em literatura «de expressão açoriana» ou «de ambiência açoriana». O que não impede, porém, Martins Garcia, ensaísta e escritor ele próprio, de usar a expressão Literatura Açoriana, tendo mesmo escrito um livro com o título Para uma Literatura Açoriana (de resto, Garcia ocupou-se com muita pertinência de autores como Vitorino Nemésio e Roberto de Mesquita, cuja açorianidade bem captou).

Enunciando os perigos do carácter vago do conceito de cultura, Martins Garcia sublinha o da justificação de uma Literatura Açoriana a partir de um conceito antropológico de cultura açoriana, que se pode inserir na portuguesa, que por sua vez se insere na europeia e na ocidental, em «círculos cada vez mais englobantes» (1987: 21), até se perder a consistência de um referente. Parece-nos então inteligente o pressuposto de Garcia que toma a literatura como traço contribuinte e caracterizador da cultura, cabendo a esta «extrair das obras literárias as características aptas à reelaboração do conceito de Açorianidade lato sensu» (ibidem: 22). Nesse sentido, é a boa literatura que, com as suas peculiaridades, contribui para identificar um mundo insular. Desde que boa literatura, i. é., a condição do estético sobreposta à condição antropológica regionalizante: «que a literatura açoriana exista ou não exista... eis o falso problema; que seja ou não seja ... literatura, eis a questão» (ibidem: 10). Afinal, põe-se de acordo com António Machado Pires quando este defende que «A questão da literatura açoriana não está necessariamente no facto de se saber se se deve chamar ou não açoriana: está na essência conferida pela qualidade literária, na procura consciente e voluntária pelos próprios açorianos, enquanto leitores, está na inserção no todo do fenómeno cultural do arquipélago» (1983: 855).

Açorianos como Antero de Quental (com a sua «olímpica universalidade», como dele disse Nemésio) e Teófilo Braga (com a sua vasta erudição sobre o cancioneiro insular) não têm nas suas obras contribuições específicas para a significação açoriana, o que não impede, porém, de serem incluídos, lato sensu, no rol de personalidades açorianas com destaque na área literária. No entanto, é grande a variedade de autores (açorianos e não açorianos, dentro ou fora dos Açores), quando pensamos para além de um critério simplesmente regionalista. Ligados literariamente aos Açores, estão, por exemplo, Adelaide Freitas, Álamo de Oliveira, Almeida Firmino, André Siganos, A. Côrtes-Rodrigues, Cristóvão de Aguiar, Daniel de Sá, E. Bettencourt Pinto, Eduíno de Jesus, Emanuel Félix, Emanuel J. Botelho, Ermelindo Ávila, Fátima Borges, Fernando Aires, Florêncio Terra, Guilherme de Morais, Ivone Chinita, João Afonso, João Ilhéu, J. H. Santos Barros, João de Melo, J. Teixeira de Medeiros, Joaquim M. Magalhães, J. Almeida Pavão, J. Dias de Melo, J. Enes, J. Martins Garcia, Judite Jorge, L. A. Assis Brasil, L. Fagundes Duarte, Madalena Férin, M. Urbano Bettencourt, Marcolino Candeias, Natália Correia, Norberto Ávila, Manuel Ferreira, Onésimo Almeida, Pedro da Silveira, Raúl Brandão, R. Galvão de Carvalho, U. Mendonça Dias, Vamberto Freitas, V. Pereira da Costa, V. Nemésio, entre outros.

Nemésio, na entrevista que concede a Rebelo de Bettencourt (1923), inculca uma das mais antigas interpretações teóricas, e baseia-se fundamentalmente no pressuposto estético de que os aspectos etnolinguísticos são indispensáveis para concretizar uma literatura, constituindo uma forma de «realismo» linguístico que exige que as personagens falem tal e qual, isto é, transforma-as em registos autenticadores da região a que pertencem. Foi o que ele próprio fez em contos do Paço do Milhafre e em Quatro Prisões debaixo de Armas, ou ainda nas longas falas do trancador de baleias em Mau Tempo no Canal. Mas a força identitária de uma obra vai muito para além da simples reprodução dos valores locais (que podem emergir em obras medianas). Aliás, anos depois, ao reflectir sobre O problema do romance (1946), Nemésio já prefere sobrevalorizar o génio criador e o padrão da universalidade, elaborando sobre um fundo experimentado da vivência insular «med[ida] pela média humana do ser e do acontecer que cada um transporta consigo [...], construindo-se personagens na reminiscência e na inventiva, ao mesmo tempo utópicos e moradores, convividos e sonhados». Assim, é na poesia de Roberto de Mesquita e nos contos e no Mau Tempo no Canal de Nemésio que vemos os grandes exemplos de qualidade literária que fazem arrancar a Literatura Açoriana. No primeiro, a natureza dolente do pampsiquismo, a «alma das coisas» (e não foram precisas muitas páginas, pois Almas Cativas é um livro breve); o segundo, pelo telurismo, pelos elementos do clima, pelos traços psicológicos de uma sociedade insularizada. Será por isso que, mais uma vez citando a boa teorização de Martins Garcia, a adjectivação de açoriana «emerge, sim, quando Roberto de Mesquita confere à sua poesia as marcas fundamentais, distintivas duma poética simultaneamente insulada e aberta ao enigma do mundo», e quando Nemésio «confere às suas narrativas os traços inconfundíveis da condição insulada que, longe de se confinar à ilha real, deambula com o narrador» (ob. cit.: 112).

Crítica, ensaísmo, jornalismo, como actividade estável ou relativamente constante (páginas literárias e revistas, como A Memória de Água Viva, Atlântida, Aresta, Contexto, Gávea, Glacial, Insulana, Neo (da novíssima geração), Ocidente, Pulsar, Quarto Crescente, Raiz, Saber, Seixo, Suplemento Açoriano de Artes e Letras, Vento Norte), têm contribuído para o aprofundamento e divulgação dos autores açorianos e da problemática cultural dos Açores dando jus ao uso corrente da expressão Literatura Açoriana, sem colisões com uma literatura nacional portuguesa, e consagrada (discutivelmente ou não) por essa designação. Problematização que levará a que pela primeira vez ? ao que supomos ? Eduíno de Jesus fale mesmo numa «Teoria da Literatura Açoriana», a erguer a partir de peculiaridades idiossincráticas. Do lançamento da questão fica a pergunta se os açorianos terão uma compreensão especial da vida ou se essa peculiaridade apenas sectoriza uma literatura no quadro da Literatura Portuguesa, à qual pertence pela língua e pelo vínculo nacional.

De 1975 para cá, com a aliança entre liberdade autonómica e criação de instituições autonómicas, favoreceu-se uma prática cumulativa com a estimulação mútua do amadurecimento do meio e da correlativa produção de qualidade literária. Assim, parece-nos de rejeitar a designação redutora e simplista de regional (conotação negativa nascida da confusão do antropológico e do etnográfico com o especificamente literário), pois que a região reflecte-se nela não como uma parcela territorial de usos e costumes, mas como húmus de criação com valor universal. Confrontados com a diversidade de razões que prendem o escritor e a escrita à realidade física e social dos Açores, e tendo ainda em conta o uso recorrente da designação de Literatura Açoriana para um corpus relativamente extenso e já bastante estudado, poder-se-á legitimar o seu uso: ficará assim com carta de alforria a expressão Literatura Açoriana, quando tomada num conceito abrangente e desconotadas incidências semânticas político-reivindicativas, que não devem interferir com a exigência de qualidade literária. Maria Margarida Maia Gouveia

Bibl. Almeida, O. T. (org.) (1983), A Questão da Literatura Açoriana. Recolha de Intervenções e Revisitação [as diversas posições teóricas ao longo do tempo e algumas posições polémicas]. Angra do Heroísmo, Secretaria Regional da Educação e Cultura. Id. (org.) (1986), Da Literatura Açoriana. Subsidios para um Balanço. Angra do Heroísmo, Secretaria Regional da Educação e Cultura. Id. (1989), Açores, Açorianos, Açorianidade ? Um Espaço Cultural. Ponta Delgada, Signo. Barros, J. H. S. (1981), O Lavrador de Ilhas-I. Angra do Heroísmo, Secretaria Regional da Educação e Cultura. Carvalho, R. G. (1956), Possibilidades de uma literatura de significação açoriana. Insulana, XII: 216-221. Freitas, V. (1999), Discursos culturais nos Açores: uma estética da territorialidade, In A Ilha em Frente. Textos do Cerco e da Fuga. Lisboa, Salamandra: 15-29. Garcia, E. B. (1953), Para uma Autêntica Literatura Açoriana, Suplemento Literário de A Ilha, Ponta Delgada: 1-32. Garcia, J. M. (1987), Ainda a questão da Literatura Açoriana In Para uma Literatura Açoriana. Ponta Delgada, Universidade dos Açores: 9-32. Id. (1987), Actualidade da Literatura Açoriana, In Ibid.: 111-124. Id. (1987), A criatividade artística nos Açores. Limites e Barreiras, In Ibid.: 125-138. Jesus, E. (1957), Para uma teoria de Literatura Açoriana. Atlântida, I, 4: 201-205. Machado, M. U. B. (1983), Antologia de poesia açoriana, In O Gosto das Palavras. Angra do Heroísmo, Secretaria Regional da Educação e Cultura: 77-87. Id. (1995), Da Literatura Açoriana ? notas (muito lacunares) para uma aproximação, In O Gosto das Palavras II. Ponta Delgada, Jornal da Cultura: 13-16. Nemésio, V. (1923), Por que não temos Literatura Açoriana [entrevista com Vitorino Nemésio, por Rebelo de Bettencourt] In Almeida, O. T. (org.) (1983), A Questão da Literatura Açoriana. Recolha de Intervenções e Revisitação. Angra do Heroísmo, Secretaria Regional da Educação e Cultura. Id. (1932), Açorianidade- Ínsula, Ponta Delgada, 7-8. Id. (1946), O problema do romance. Diário Popular, 8 de Maio. Pavão, J. A (1991), Constantes da insularidade numa definição de Literatura Açoriana, In Caminheiros da Cultura. Ponta Delgada, Instituto Cultural de Ponta Delgada: 133-152. Pires, A. M. B. M. (1983), Para a Discussão de um Conceito de Literatura Açoriana. Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira, XLI: 842-858. Id. (1987), A Identidade Cultural dos Açores, Sep. de Arquipélago (série Línguas e Literaturas), IX. Id. (1997), Os Açores antes do 25 de Abril. Alguns Indicadores Culturais, Insulana, Ponta Delgada, Instituto Cultural de Ponta Delgada: 33-49.