(N. C. de Oliveira) [N. Fajã de Baixo, ilha de S. Miguel, 13.9.1923- m. Lisboa, 16.3.1993] Nascida no seio de uma família da pequena-média burguesia dos arredores de Ponta Delgada, permaneceu até aos onze anos na ilha, aí se deixando impregnar de vivências e imagens que viriam a constituir um dos mais sólidos e recorrentes motivos de toda a sua produção artístico-literária. Depois, acompanhada da mãe e da irmã, partiu para a capital, onde se radicou e viria a destacar-se como uma das mais influentes figuras intelectuais da segunda metade do século. É autora de uma obra extensa e multifacetada, que integra a poesia, a prosa de ficção, o teatro, o ensaio, a diarística, a tradução e a organização de antologias. Colaborou assiduamente na imprensa, impôs-se na televisão com o programa ?Mátria?, realizou numerosas conferências e está traduzida em várias línguas. Tomou posições de grande coragem, quer antes, quer depois do 25 de Abril, o que lhe valeu ter sido eleita deputada à Assembleia da República. Na base de toda a sua intervenção na coisa pública está a sua orgânica aversão a qualquer tipo de totalitarismo. Dotada de um espírito desassombrado e de um forte sentido da convivialidade, Natália Correia ? que chegou a dirigir a editora Arcádia (1973), além de importantes publicações (Século Hoje e Vida Mundial, em 1976) ? tornou-se no natural pólo agregador de boémios, artistas e personalidades representativas dos vários meios sociais do país. Na vida nocturna lisboeta, ficaria célebre o Botequim, bar que abriu no Largo da Graça, em 1971, com Isabel Meyreles.
Mas o essencial da sua vida está, como ela mesma fazia questão de acentuar, na sua obra literária, especialmente em O sol nas noites e o luar nos dias, título sob o qual, pouco antes de morrer, reuniu toda a sua obra poética. Aqui se ?cantam?, ?narram? e ?dramatizam? os sucessivos lances de um trajecto existencial consagrado por completo ao conhecimento dos homens, das coisas e das palavras. Desde cedo, a escritora assumiu-se como herdeira espiritual de um Ocidente que via assolado por graves dissensões ? um Ocidente que reduzira a moderna emancipação do homem ao fanatismo do progresso. Daí o duplo e contraditório posicionamento nataliano em relação aos rumos da chamada modernidade: por um lado, intransigente denúncia do racionalismo, do economicismo e do sociologismo de extracção iluminista; por outro, galvanizante defesa e ilustração da arte moderna, entendida esta como um domínio capaz de cicatrizar feridas, de reunificar o todo, ao articular dialecticamente o futuro com o passado, a ruptura com a tradição ? seja a tradição do novo, que remonta aos primórdios de Oitocentos e inclui formas, ritmos e géneros populares; seja a tradição dita clássica, de que foi conhecedora profunda, nos seus vários sucedâneos; seja finalmente a Tradição pura e simples, a Tradição das tradições, que mergulha na espessura de remotos saberes e experiências. Esta sua fidelidade à modernidade estética traduzir-se-á numa especial forma de fidelidade ao alto romantismo ? agregador por excelência quer da Memória, do Amor e da Imaginação (na lógica profunda da sua poesia, traves-mestras de qualquer existência votada à necessidade de se entender e de se merecer), quer dos múltiplos ?registos? artísticos que convoca (o virtuosismo barroco; o clima simbolista ou pós-simbolista de alguns poemas ?místico-patrióticos?, o exaltante espraiamento de Cântico do país emerso, o óbvio fascínio pelo universo libertador do surrealismo...), quer das três distintas vozes que de si o tempo fora destilando.
Destas vozes, a que primeiro se gera e avulta é obviamente a particular, a mais ?egológica? e lírica de todas, voz por detrás da qual se adivinham, ainda que muito transformadas, experiências e comoções realmente vividas ou sentidas por uma irredutível subjectividade. Surpreendemo-la, operosa e insinuante, sobretudo nos seus livros iniciais ? Rio de Nuvens (1947), Poemas (1955), Dimensão Encontrada (1957), Passaporte (1958) ?, aqueles livros onde o eu, graças à magia da palavra poética, procura precisamente ?encontrar? a sua ?dimensão?, lograr o ?passaporte? que lhe faculte a identidade e o reconhecimento. Trata-se de uma voz intrinsecamente saudosa, filha dilecta da Sehnsucht romântica, que ora se mostra presa ao passado, ao paraíso perdido da infância (a ilha, a mãe, a casa, o quarto, a natureza consonante...), ora se mostra enfeudada ao futuro, a um além que o mistério cerra mas que ela vislumbra no verbo por lampejos. A segunda voz de Natália ? meio sibila, meio libertária... ? é aquela que impera em Comunicação (1959), Cântico do País Emerso (1961), O Vinho e a Lira (1966), Mátria (1968), A Mosca Iluminada (1972), O Anjo do Ocidente à Entrada do Ferro (1973) e Epístola aos Iamitas (1976), livros cujos títulos dão bem a ideia da inflexão em profundidade então registada no romantismo nataliano. Agora ela já não é só ela, encruzilhada de forças contraditórias, espaço oferecido ao ilimitado e ao intangível; agora ela é também, e sobremaneira, a ?feiticeira Cotovia?, maga insubmissa, herdeira designada de antiquíssimos ritos e mistérios. À poetisa está-lhe reservada a mais alta e sagrada das missões: a de, pelo ?vinho? e pela ?lira?, mudar a vida dos Homens e das Cidades, levando-os à recuperação da verdade que esqueceram e junto da qual habitam desde o princípio dos tempos. A última das vozes natalianas ? a d? O Dilúvio e a Pomba (1979), d?O Armistício (1985) e de Sonetos Românticos (1990) ? traduz um acontecimento decisivo da vida da poetisa: a gratífica consciencialização do excepcional dom ou favor que merecera do Espírito, entidade agora dominante, devotadamente elevada a princípio dos princípios. À medida que o tempo foge e o Eterno a intima, Natália quer ser mais do que musa ou vate eméritos; quer encontrar uma via que aprofunde e sobreleve o Mistério e a Tradição antes cantados; quer, por assim dizer, tornar-se sófica, votar-se por inteiro à sabedoria, que outra coisa não há que melhor distinga a sua condição de eleita. Em definitivo convicta de que o poeta e o sacerdote são um só, como nas origens o haviam sido, Natália pugna pela harmonia universal das coisas e dos seres, pela confluência de mitos regressivos e projectivos, pela diluição das galvanizantes vivências do porvir nas longínquas experiências do passado.
Conforme houve oportunidade de referir, em estudo mais desenvolvido e aqui parcialmente retomado (Pimentel, 1999), todas estas vozes globalmente românticas não equivalem a personalidades individuadas. São, no essencial, vozes de uma mesma voz; estádios (noutra perspectiva: níveis) de uma vida soberanamente imolada à Vida maior que nela pulsa. Daí que elas, devidamente adaptadas aos ditames modais e genéricos de cada texto, se afigurem de indiscutível produtividade para todos quantos pretendam abordar outras obras de Natália Correia. Recorde-se, por exemplo, no âmbito da narrativa, do romance A Madona (1968), que pugna pela recuperação e ressacralização da mulher genuína, e da novela As Núpcias (1990), que exalta o androginismo e a fraternidade primordiais. Ou ainda, no âmbito teatral, de peças como O Encoberto (1969), que insiste no tema do messianismo, de A Pécora (1983), que procede à desmistificação do ?mercado religioso? (ver o respectivo prefácio) ou de Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente (1981), sem dúvida uma das mais significativas experiências entre nós realizadas nos domínios da ?festa? e do ?espectáculo? cívicos. F. J. Vieira Pimentel (Mar.2001)
Obras Principais Rio de Nuvens (1947), Poemas (1955), Dimensão Encontrada (1957), Passaporte (1958), Comunicação (1959), Cântico do País Emerso (1961), O Vinho e a Lira (1966), Mátria (1968), A Mosca Iluminada (1972), O Anjo do Ocidente à Entrada do Ferro (1973), Epístola aos Iamitas (1976), O Dilúvio e a Pomba (1979), O Armistício (1985) e Sonetos Românticos (1990) (poesia) [A sua obra poética está reunida em O Sol nas Noites e o Luar nos Dias (1993), Lisboa, Círculo de Leitores, 2 vols., que inclui ainda inéditos; nova ed. sob o nome de Poesia Completa (1999), Lisboa, Pub. D. Quixote]. Anoiteceu no Bairro (1946), A Madona (1968), A Ilha de Circe (1983), As Núpcias (1990) (prosa de ficção). O Progresso de Édipo (1957), O Homúnculo (1965), O Encoberto (1969), Erros Meus, Má fortuna, Amor Ardente (1981), A Pécora (1983) (teatro). Poesia de Arte e Realismo poético (1958), Uma Estátua para Herodes (1974), Somos Todos Hispanos (1988), A Ibericidade na dramaturgia portuguesa (2000) (ensaio). A Questão Académica de 1907 (1962), Antologia da Poesia Erótica e Satírica (1966), Cantares Galego-Portugueses (1970), Trovas de D. Dinis (1970), O Surrealismo na Poesia Portuguesa (1973), Antologia da poesia do Período Barroco (1982) e Ilha de Sam Nunca (1982) (investigação). Não Percas a Rosa (1978) (diário). Descobri que Era Europeia (1951) (literatura de viagens).
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