Caracterização:
O Cantar às Almas é um ritual ligado ao culto dos mortos de evocação às Almas do purgatório. Este ritual, praticamente extinto em Portugal, é praticado na Achadinha do Nordeste, na ilha de São Miguel, onde esteve interrompido cerca de 20 anos e foi reativado. Atualmente, este ritual é praticado por um grupo de pessoas, homens e mulheres de várias idades. O primeiro dia do ritual é sempre o dia 2 de novembro. Nesse dia o grupo reúne-se na capela do cemitério às 19h00 para assistir à Missa de Fiéis Defuntos. Depois desta celebração e à porta do cemitério os participantes cantam e entoam quadras intercaladas com orações de Pai-Nosso e Ave-Maria, durante cerca de meia hora, coordenados pela Mestre Alice Pacheco Tavares através do toque da Sineta das Almas. Todas as segundas, quartas e sextas do mês de novembro, o grupo junta-se e repete o ritual, alterando o lugar de encontro, de modo a percorrerem todos os lugares simbólicos da freguesia. Sendo que o primeiro e o último dia ocorre à porta do cemitério.
Esta manifestação foi recuperada em 2003 por iniciativa de Emília Mendonça e de Alice Pacheco Tavares através da Associação de Solidariedade Social Voluntariado e Amigos do Nordeste. Emília Mendonça, professora reformada, trabalhou cerca de 22 anos na América do Norte (Estados Unidos, Canadá e Bermudas), ligada à educação da cultura e Língua Portuguesa, regressou à Achadinha, sua terra natal, e fundou esta associação. Alice Pacheco Tavares natural e residente na Achadinha, associou-se-lhe. As duas senhoras lembram-se muito bem de em crianças, durante o mês de novembro, ouvirem as entoações do Alembrar as Almas, tendo sentido vontade e necessidade em retomar o culto. Este antes praticado, durante todos os dias do mês de novembro “o mês das Almas”, por um grupo de homens, coordenados pelo mestre, que se juntavam à noite para Cantar às Almas, entoavam canções e orações em vários locais simbólicos da freguesia evocando as Almas dos familiares, vizinhos e amigos já falecidos.
Para concretizar a recuperação deste ritual as impulsionadoras tiveram de realizar alguma pesquisa. Como já não sabiam de cor as quadras valeram-lhes antigos participantes, como o pai de Alice Pacheco Tavares, Ernesto Moniz Pacheco. Este sabia da existência de uma gravação em cassete áudio que estava no Canadá junto de um familiar seu, Mariano Moleiro, também natural da Achadinha. Foi através dessa gravação e da memória de alguns idosos, especialmente José Pacheco (ou José Calheta) antigo sacristão, e antigo mestre deste culto, que conseguiram recuperar as letras das quadras-orações. No entanto, referiram que algumas das quadras foram adaptadas e outras atualizadas, ou seja, não foram copiadas na integra, mas sim ajustadas ao tempo contemporâneo, invocando questões relacionadas com problemáticas da atualidade, nomeadamente o caso da toxicodependência, problema que afirmaram afetar muitos jovens da freguesia, rapazes e raparigas.
Desde que recuperaram o culto, Alice Pacheco Tavares é a mestre do Alembrar as Almas. Durante o mês de novembro - “quer chova canivetes! Estamos sempre lá”, referiu-nos Alice. Iniciando-se no Dia de Fiéis Defuntos, três vezes por semana, já de noite, pelas 19h00, um grupo reúne-se para Cantar às Almas. Cada dia ocorre num local diferente da freguesia. No primeiro dia, junto à porta do cemitério, depois da Missa dos Fiéis Defuntos, nos dias seguintes acontece em lugares como: o largo, o lugar do Burguete, junto ao padrão histórico (o qual integra um conjunto de azulejos com uma das quadras proferidas pelos participantes), próximo de monumentos de evocação às Almas, as Alminhas, junto à igreja paroquial, entre outros lugares. No último dia, como tradicionalmente, termina no cemitério, onde é celebrada uma missa.
O grupo reúne-se e, após o toque da Sineta das Almas efetuado pela mestre, os participantes cantam uma quadra-oração seguida de um Pai-Nosso e de uma Ave-Maria, entoam um total de vinte e uma orações, oferecidas pelas intenções que vão sendo anunciadas. O número de participantes é variável, depende do dia, atingindo por vezes, cerca de quarenta a cinquenta participantes, desde jovens a idosos. Segundo Emília Mendonça a participação tem vindo a diminuir.
Cantar às Almas
Guião:
Campainha
Coro
Bendita e louvada seja a imaculada
Conceição da Virgem Maria Senhora nossa
Concebida em graça sem mácula do pecado
Original, desde o primeiro instante vos seja, ámen Jesus
E vós fiéis cristãos amigos de Jesus Cristo
Lembrai-vos das pobres Almas com um
Pai Nosso e uma Avé-Maria
Coro
Seja pelo amor de Deus
Campainha
Mestre
Pelas Almas do purgatório em geral
Coro
Lembrai-vos das pobres Almas
Todas são nossas irmãs
Vamos em seu socorro
Com as nossas orações
Mestre
Mais um Padre Nosso e uma Avé-Maria
Coro
Seja pelo amor de Deus
Campainha
Mestre
À intercessão das Almas pela paz do mundo
Coro
Às nossas benditas Almas
Orar por elas aqui nos traz
Que por elas quando salvas
Ao mundo venha a paz
Mestre
Mais um Padre Nosso e uma Avé-Maria
Coro
Seja pelo amor de Deus
Campainha
Mestre
Pelas Almas de todas as famílias da nossa freguesia
Coro
Sufragar as Almas santas
É dever e não devoção
Quem seus mortos esquece
Não tem Alma de cristão
Mestre
Mais um Padre Nosso e uma Avé-María
Coro
Seja pelo amor de Deus
Campainha
Mestre
Pelas Almas mais esquecidas e mais abandonadas
Coro
Dar esmola duma prece
Que bem pode ao céu levar
Almas a quem tanto pesa
Não poder a Deus gozar
Mestre
Mais um Padre Nosso e uma Avé-Maria
Coro
Seja pelo amor de Deus
Campainha
Mestre
Pelas nossas queridas Almas, da família, dos amigos e bem feitores
Coro
Pelas Almas nossas queridas
Que em vida tanto deram
Trabalhos, lutas e vidas
E pelo bem que fizeram
Mestre
Mais um Padre Nosso e uma Avé-Maria
Coro
Seja pelo amor de Deus
Campainha
Mestre
Pelas Crianças e jovens principalmente os que sofrem a miséria e guerra
Coro
A vós Almas benditas
Ao que foram destas andanças
Rezamos orações sentidas
Pelos jovens e crianças
Mestre
Mais um Padre Nosso e uma Avé-Maria
Coro
Seja pelo amor de Deus
Campainha
Mestre
Pelas Almas de todos os sacerdotes que paroquiaram nesta freguesia e por todos quantos ajudaram a manter de pé a nossa paróquia
Coro
Dai-lhes Senhor o descanso eterno
Aos remidos de Jesus
Vosso coração clemente
Os leve à eterna luz
Mestre
Mais um Padre Nosso e uma Avé-Maria
Coro
Seja pelo amor de Deus
Campainha
Mestre
Pelos jovens soldados desta freguesia mortos em combate e por suas famílias
Coro
O bom Jesus crucificado
Que na cruz o perdão
Dos jovens em guerra amortalhados
Suas Almas tende compaixão
Mestre
Mais um Padre Nosso e uma Avé-Maria
Coro
Seja pelo amor de Deus
Campainha
Mestre
Por todas as Almas que morreram vitimas da droga, do álcool, da violência e dos ódios
Coro
Lembrai-vos o bom Jesus
Das Almas em escuridão
Que não receberam a luz
Da esperança e perdão
Mestre
Mais um Padre Nosso e uma Avé-Maria
Coro
Seja pelo amor de Deus
Campainha
Mestre
Pelos idosos abandonados e injustiçados e por todos os que sofrem de solidão
Coro
A vós Almas benditas
E a Jesus também pedimos
Pelos doentes e perdidos
E por todos que aqui vimos
Mestre
Mais um Padre Nosso e uma Avé-Maria
Coro
Seja pelo amor de Deus
Mestre
Mais um Padre Nosso e uma Avé-Maria
Coro
Seja pelo amor de Deus
Campainha
Mestre
Pelas Almas em geral:
Almas da nossa freguesia, Almas destes nossos servos, Almas mortas ao serviço da paz, Almas dos bem feitores da nossa Igreja e Almas mais abandonadas
Coro
Ofereço esta reza ao
Coração de Jesus
Que leva as benditas Almas
Gozar a eterna luz
Mestre
Mais um Padre Nosso e uma Avé-Maria
Coro
Seja pelo amor de Deus
Campainha
Mestre
Pelas Almas de todos os nossos pais
Coro
Aqui hoje recordamos
Possuídos de emoção
As Almas de nossos pais
A quem nos prende o coração
Mestre
Mais um Padre Nosso e uma Avé-Maria
Coro
Seja pelo amor de Deus
Campainha
Mestre
Oremos pelos que morreram de morte repentina
Coro
Deus clemente e piedoso
Que os pecados apagais
Pelo nosso sangue precioso
Tomai as almas imortais
Mestre
Mais um Padre Nosso e uma Avé-Maria
Coro
Seja pelo amor de Deus
Campainha
Mestre
Por todos que neste momento entregam a alma a Deus e sofrem a agonia da morte
Coro
Meu Senhor bendito Jesus
Das Almas hoje falecidas
Pela sua santa cruz
Tornai-as também benditas
Mestre
Mais um Padre Nosso e uma Avé-Maria
Coro
Seja pelo amor de Deus.
Campainha
Mestre
Por todas as Almas que morreram no esquecimento do mundo
Coro
Das Almas esquecidas
Lembramos delas em oração
Por nos serem queridas
E chegadas no coração
Mestre
Mais um Padre Nosso e uma Avé-Maria
Coro
Seja pelo amor de Deus
Campainha
Mestre
Pelas Almas que morreram com pecado
Coro
Com as nossas orações
A Jesus vamos pedir
Misericórdia e perdão
Para ao Céu elas subir
Mestre
Mais um Padre Nosso e uma Avé-Maria
Coro
Seja pelo amor de Deus
Campainha
Mestre
Pelas Almas esquecidas de todo o mundo
Coro
Pelas Almas abandonadas
Muito estão a passar
Vamos em seu socorro
Para elas descansar
Mestre
Mais um Padre Nosso e uma Avé-Maria
Coro
Seja pelo amor de Deus
Campainha
Mestre
Pelo sofrimento de todos quantos este momento estão à beira da morte
Coro
Lembrai-vos das Almas afilitas
Que muito estão a sofrer
Pedimos a Jesus
Que as vá socorrer
Mestre
Mais um Padre Nosso e uma Avé-Maria
Coro
Seja pelo amor de Deus
Campainha
Mestre
Por todas as Almas sepultadas neste cemitério (1)
Coro
E vimos ao cemitério
As Almas aqui sepultadas
Senhor, tudo isto é mistério
Que descansem em paz as Almas
Mestre
Mais um Padre nosso e uma Avé-Maria
Coro
Seja pelo amor de Deus
Campainha
Mestre
Por todas as Almas que durante a sua vida tiveram devoção às Almas
Coro
Lembrai-vos das Almas santas
Metidas na expiação
Vivas já vos foram caras
(1) Só no dia do cemitério.
Historial:
O culto aos mortos é transversal à humanidade, atravessando a história da espécie humana.
No território nacional o culto aos mortos assume diversas formas, sendo o mês de novembro aquele em que a homenagem e os rituais dedicados àqueles que já partiram desta vida se manifesta de forma mais generalizada e intensa, com especial destaque para o dia 2 de novembro – Dia de Fiéis Defuntos.
O Cantar às Almas antes uma prática comum em Portugal, relaciona-se com o culto às Almas do purgatório. Na cultura popular as Almas do purgatório, pela sua transitoriedade, são mediadoras entre esta vida e a vida extraterrena. O culto das Almas do purgatório refere-se às almas que “virão a ser libertadas pela ação de São Miguel que as redime no purgatório e depois as liberta, recorrendo à graça de Deus, com a intercessão da Virgem e de Cristo. Quando estas Almas vão para o céu estão gratas àqueles que por elas rezaram, e assim, rogarão aos santos para intercederem junto de Deus pela salvação dos fiéis” (cf. Cabral, João de Pina, 1989).
Apesar da quase extinção do rito do Alembrar as Almas, continua a ser praticada uma outra forma de culto individual relacionado com as Almas do purgatório, é o culto das Alminhas. Estas são pequenos retábulos construídos por indivíduos, ou por vizinhos num gesto de devoção comunitária. A sua iconografia incorpora as Almas ardendo no purgatório, Cristo crucificado, a Virgem Maria, Santo António e São Miguel retirando as Almas das chamas com uma balança na mão. As Alminhas situam-se geralmente na berma das estradas, em lugares ermos e em encruzilhadas. (cf. Cabral, João de Pina, 1989).
Na ilha de São Miguel o Alembrar as Almas ocorria durante o mês de novembro, popularmente o Mês das Almas, e também no período da Quaresma, culto antes praticado em muitas comunidades desta ilha. Hoje, na ilha do arcanjo, encontra-se circunscrito à freguesia da Achadinha.
Durante o mês de novembro era costume juntarem-se à noite, entre as onze e a meia-noite, grupos de pessoas (em geral homens, três a sete pessoas) sempre em número impar, cobertos com mantas, lençóis ou capotes, para não serem reconhecidas, e, sem poderem falar a mais ninguém. Depois de saírem de casa, subiam o adro da igreja paroquial, tocavam três vezes a campainha, davam três pancadas na porta principal da igreja e entoavam as primeiras quadras, a isto chamava-se ir “buscar as Almas”:
Ó Almas, vinde comigo,
Que vos quero apregoar
Por estes cantos de Deus
A quem vos quiser rezar
À porta das Almas Santas
Bate Jesus cada hora;
- Que quereis, Jesus, agora?
- Quero que venhais comigo
Entrar no reino da glória.
Depois partiam para os lugares onde havia cruzes, altares de Alminhas, cemitério ou a casa de alguém recentemente falecido.
Os Alembradores das Almas têm por objetivo cantar e rezar pelas Almas do purgatório, acordar os vivos, lembrá-los dos mortos e forçá-los a rezar por eles:
Rezem todos pelas Almas,
Ninguém fique por rezar,
Que as Almas pedem a Deus,
Por quem delas se lembrar.
Todas as petições eram cantadas e precedidas pelos três toques de campainha:
Que tendes, Almas benditas?
Choramos e com razão:
Amigos, parentes nossos,
De nós não se lembram não.
Mais um padre-nosso e uma ave-maria
Por todo o fiel cristão
Que nas águas do mar anda.
Nossa Senhora o traga
A porto de salvação.
Esse ritual de orações terminava geralmente junto das portas de entrada dos cemitérios ou das igrejas. Enquanto decorriam as orações, quem estava em casa e ouvisse os Apregoadores das Almas devia também rezar pelas Almas do purgatório, mas não devia espreitar para a rua para os ver. Quando terminavam o ritual, regressavam a casa em silêncio. Quem se iniciasse neste ritual só poderia deixar de o fazer por motivo de doença.
“A devoção às Almas do Purgatório ocupa um lugar especial na religiosidade micaelense, a qual se manifesta através de várias práticas e rituais de homenagem aos mortos.” (…) “Rara será a Igreja que não possui o seu Altar das Almas. E por caminhos, vielas, encruzilhadas, casas e muros abundavam os nichos com alminhas, algumas mesmo reduzidas a dois azulejos na peanha de uma cruz de pedra (…). As raras e isoladas cruzes de pedra com as iniciais P.N.A.M. marcam o lugar onde se perpetuou algum crime e pedem pelas almas dos que ali morreram (Cf. Rodrigues, Armando Cortes, 1968).