Caraterização:
Os Romeiros, grupos de “irmãos” tradicionalmente do género masculino, têm uma organização interna própria, constituem-se nas paróquias/freguesias da ilha de São Miguel.
Atualmente, preparam-se ao longo do ano, realizam a sua peregrinação durante o período da Quaresma, percorrendo a pé a ilha de São Miguel, parando em grande parte das igrejas, ermidas e capelas da ilha consagradas a Nossa Senhora – as chamadas Casas de Nossa Senhora – e ainda visitam um grande número de igrejas e ermidas sob outras invocações, cantando e rezando em todo o percurso. Ao todo visitam cerca de 100 lugares de culto, distribuídos pelas 64 freguesias/ 65 paróquias de São Miguel.
Como o povoamento da ilha é predominantemente litoral, o itinerário da Romaria apresenta caraterísticas circulares, fazendo-se no sentido dos ponteiros do relógio. A saída de cada rancho ocorre antes do amanhecer, e a entrada nas localidades para as pernoitas, acontece logo a seguir ao pôr-do-sol.
Os Romeiros envergam um traje próprio: um xaile caído sobre os ombros, um lenço que pode ser atado ao pescoço ou usado à cabeça, um saco de pano ou sovadeira que é usado às costas, onde levam o conduto para a viagem e ainda um terço e um bordão que ajuda a caminhada (Leal, 1989).
Os Romeiros possuem uma estrutura interna própria, com uma hierarquia e cargos específicos: o Mestre, o Contramestre, o Procurador das Almas, o Lembrador das Almas, dois Guias, e dois ou mais Ajudantes, entre estes um Despenseiro. O Mestre e o Contramestre são nomeados pelo pároco da localidade, quanto aos restantes cargos são nomeadas pelo Mestre.
O Mestre é quem detém a autoridade sob o rancho, é quem o dirige e é a quem todos os “irmãos” – como se designam os Romeiros entre si e como são designados pela população durante o rito – prestam obediência, pois é ele o responsável pela Romaria, inclusivamente pela sua preparação espiritual e logística. Ao Contramestre compete desempenhar as funções do Mestre nas ausências deste, na sua presença compete ao Contramestre cooperar e coadjuvar o Mestre. Quanto ao Procurador das Almas, recebe e faz a contagem das orações pedidas pelo povo, durante a caminhada. O Lembrador das Almas tem a seu cargo anunciar e pedir orações especiais dentro da Romaria, deverá ainda fazê-lo à passagem desta pelos cemitérios. Os Guias conduzem o rancho pelo itinerário previamente traçado. Os Ajudantes auxiliam o Mestre nas seguintes funções: fazer as orações nos templos por ele indicados, cooperar com o Mestre nas orações comunitárias do rancho e orações pedidas; quanto aos Despenseiros compete-lhes coordenar as refeições providenciando a compra dos alimentos e bebidas e cooperar com o Mestre e Contramestre em todos os casos imprevistos (MRSM, 2003).
Ao longo da Romaria, os detentores dos cargos acima indicados ocupam no grupo um lugar tradicionalmente definido. O Mestre segue na parte de trás e o Contramestre na parte da frente. O Procurador das Almas na cauda do rancho e um pouco destacado dele, de forma a ir recolhendo os pedidos de oração feitos pela população ao rancho. Se o grupo possui Lembrador das Almas, o seu lugar é a meio do rancho. Os dois Guias abrem a marcha, isto é, surgem na frente e no meio deles segue o Menino da Cruz, uma criança encarregue do transporte de uma pequena cruz – a cruz paroquial – que acompanha a peregrinação durante todo o seu percurso (Leal, 1989). Ao anoitecer nas freguesias em que pernoitam, cada família vai solidariamente buscar um ou mais Romeiros, para lhes dar hospedagem. No dia seguinte levantam-se muito cedo, agradecem a poisada do ar da noite, reúnem-se e continuam a sua piedosa romagem (Ferreira, 1962).
A participação na Romaria pressupõe a consagração intensiva à oração, ou seja, paralelamente à oração junto das igrejas e ermidas, todo o percurso da Romaria, é feito integralmente a rezar, destacando-se como oração por excelência a “Avé Maria dos Romeiros”, representando também o seu verdadeiro ícone acústico.
Uma das orações dirigidas a Nossa Senhora, a quem vão visitar às Ermidas e lhe vão oferecer suas orações e sacrifícios. Eis umas das usadas:
Deus Vos salve clara Estrela,
De Deus e do mar mui bela,
Nós pedimos Vossa luz,
Que nada somos sem ela.
(…)
Salvé Vós Maria Santa,
Rosa Mística de Sião,
Alcançai-Nos piedosa,
De Vosso Filho perdão.
(…)
Eu Vos peço Santa Estrela,
Que abrandeis minha dureza,
P’ra toda a vida louvor,
A Vossa Santa grandeza.
Finda a Salva, como se diz em linguagem de Romeiros, o Mestre inicia os seus pedidos:
– Seja louvada a Sagrada morte e Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Ao que os Romeiros respondem:
– Seja para sempre, e sua Mãe Santíssima, Senhora Nossa.
E o Mestre então:
– Pela Sagrada morte e Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo,
Padre Nosso, Avé Maria
– E pelo último suspiro que o Senhor deu ao pé da Cruz, pelos nossos grandes pecados:
Padre Nosso, Avé Maria
– Em reverencia ao Santíssimo Sacramento da Altar, para que permita que ninguém morra sem o receber em estado de sua divina graça:
Padre Nosso, Avé Maria
E segue-se uma enormidade de pedidos que todos ouvem com maior respeito e a que com a maior devoção respondem rezando as orações pedidas, e por fim o Mestre:
– E à Virgem Nossa Senhora da Paz, para que restabeleça o sossego em todas as Nações e olhe com seus olhos de piedade para a nossa Nação Portuguesa livrando-a da peste, da fome e da guerra:
SalveRainha
E finda esta oração, o Mestre ao levantar-se recita ainda:
– O anjo São Gabriel descendo do Céu à terra, a anunciar à Virgem saudosa:
Avé Maria
E todos já de pé, com seu cajado na mão, saem da Igreja cantando em altas vozes a Avé Maria, e lá vão os Romeiros agora rua fora em busca de todas as Igrejas e Ermidas da Ilha onde haja uma invocação à Virgem, divididos em duas longas alas, cantando os da frente Avé Maria e os de trás Santa Maria.
Existe também todo um trabalho preparatório para a saída dos Romeiros. Em primeiro lugar, os “irmãos” que queiram participar na Romaria têm que comunicar a sua intenção ao Mestre, depois há reuniões em o grupo se prepara e onde são dadas a conhecer ou relembradas as regras que presidem à Romaria e são ensaiadas as orações e cânticos próprios do ritual (Leal, 1989).
Esta prática religiosa tem vindo a expandir-se. Há duas décadas formaram-se as primeiras Romarias Quaresmais femininas. Estas “irmãs” realizam um dia de percurso e não pernoitam.
Na comunidade de emigrantes do Canadá constituiu-se um grupo de Romeiros que vêm a São Miguel no período quaresmal para realizar a sua peregrinação, preparando-a no país onde residem.
Seguindo um modelo semelhante, constituíram-se Romarias na ilha Terceira e na ilha Graciosa.
Romeiros de Nossa Senhora do Rosário, concelho da Lagoa
O grupo de Romeiros de Nossa Senhora do Rosário, a freguesia mais populosa do concelho de Lagoa, inicia a sua peregrinação anual na penúltima quinta-feira da Quaresma, Quinta-Feira Santa. As sete pernoitas ocorrem na Relva, Pilar da Bretanha, Ribeirinha, Achadinha, Pedreira de Nordeste, Lomba do Pomar e por último em Ponta Garça.
Em 2009, o número de irmãos foi 45 e os mais novos tinham 10 anos. O Mestre era o irmão João António Amaral Rego, o Contramestre o irmão Américo Jorge Medeiros Lopes, o Procurador das Almas o irmão Nuno Medeiros, os Guias os irmãos Milton Raposo e Juvenal Dias.
No ano 2015, o número de Romeiros foi 40. No entanto, as inscrições para a Romaria foram mais mas, devido a razões relacionadas com as profissões, alguns destes tiveram que desistir. Contudo, existe uma portaria do Governo Regional que dispensa os funcionários públicos no período do ritual. O “irmão” Paulo Jorge Amaral é Mestre deste grupo desde 2011 e o “irmão” Américo Jorge Medeiros Lopes o Contramestre. O Mestre Paulo Jorge pertence ao Grupo Coordenador do Movimento de Romeiros de São Miguel e considera ser a sua principal função preparar a caminhada, quer a parte logística, quer a relacionada com a meditação e espiritualidade, preparar os cânticos e também preparar os “irmãos” para o período pós-Romaria. Explicou-nos que atualmente, e já há alguns anos, existe no Rosário de Lagoa um Grupo Paroquial de Romeiros que ao longo de todo o ano realiza reuniões mensais com várias atividades de preparação para a Romaria.
O percurso percorrido por este rancho estrutura-se em etapas diárias de cerca de 30 km, atingindo a peregrinação uma extensão próxima dos 240 km. A marcha inicia-se muito cedo, por volta das 4.00h/5.00h e termina por volta das 20H00.
Historial das Romarias Quaresmais:
Este culto de peregrinação, segundo alguns autores, tem a sua origem nas fortes crises sísmicas que atingiram a ilha de São Miguel no passado – O padre Ernesto Ferreira refere “Entre 1522 e 1586 vieram, pois, outros castigos que afligiram duramente toda a população micaelense e que originaram as Romarias que ainda atualmente se fazem. Deveram ser as violentas erupções de 1563.” (Ferreira, 1959, pp. 94).
Segundo Gaspar Frutuoso, as Romarias Quaresmais entraram nos domínios da vida religiosa micaelense já no século XVI (Cortes-Rodrigues,1968). A origem deste ritual está intimamente ligada às catástrofes sísmico vulcânicas, “os castigos”, que assolaram a ilha de São Miguel, designadamente, em 1522 e em 1563. Em 1522, um forte abalo sísmico destruiu Vila Franca do Campo, na altura, capital desta ilha. Entre 1522 e 1586 vieram outros castigos que afligiram duramente toda a população micaelense.
1563 foi um ano assinalado por espantosos fenómenos vulcânicos, que agitaram fortemente São Miguel , ”Abriram-se montes, sacudindo impetuosamente toda a ilha, escancarando enormes guelas, por onde saíram chamas que iluminavam o espaço, lavas e pedras, que soterraram ribeiras e caminhos, cinzas e vapores que toldavam os céus e escureciam os dias.” (Ferreira, 1959, pp. 94). Perante os domínios das forças da natureza, o homem elevou uma súplica, sendo o clamor das ave-marias dos Romeiros o eco desta súplica (Cortes-Rodrigues, 1968, p. 260).
As Romarias são o resultado da institucionalização de manifestações espontâneas de piedade popular no decurso das “agressões” da natureza, caraterizam-se não só pelo registo simbólico que manifestam como também pelo modo como prolongam e acentuam as ideias de morte a que se liga este período do ciclo cerimonial anual pelo papel que ocupam as almas do purgatório neste ritual e pela evocação à morte de Cristo (Leal, 1994, p. 253).