Com a bolsa de estudo Fulbright-Hays de intercâmbio cultural entre os Estados Unidos da América do Norte e Portugal, cheguei aos Açores no dia 17 de Maio de 1969 para investigar vários elementos da tradição oral. Comecei na Ilha do Faial, no dia 23 de Maio de 1969 e concluí a recolha no dia 19 de Abril de 1970 em São Miguel, despedindo-me das ilhas dos Açores no dia 24 de Abril, sentindo bem o que é experimentar a saudade deste arquipélago. Dediquei onze meses a correr as nove ilhas dos Açores, andando de lugar em lugar, dando maior atenção aos mais isolados onde se continua num modo de vida antigo.
Só a Ilha Terceira foi menos investigada por várias razões: limitação de tempo, dificuldade em estabelecer contactos nos lugares afastados da cidade por causa da época do Natal e doença pessoal. No entanto, em certos lugares de maior interesse pude penetrar. Por exemplo os Altares e o Porto Judeu, onde a matriarca Maria Augusta de Castro, poetisa popular, com os seus 92 anos de idade, ainda se lembrava dos romances antigos, "daquele tempo", como o povo costuma dizer. Ela é um exemplo excepcional da dedicação em criar versos, sem esquecer os romances antigos. Em geral, há separação entre as pessoas que criam versos populares e as que decoram versos antigos. Em São Mateus, também lugar de máximo interesse, um mestre da caça de baleia, José Fernandes da Costa, conhecido pela alcunha de Garajau, foi o contista mestre que achei na Ilha Terceira; reproduziu contos durante oito noites seguidas.
Na Ilha de São Miguel, não penetrei nas freguesias perto da cidade de Ponta Delgada, por estarem mais em contacto com a vida moderna, a não ser na região dos Arrifes, onde encontrei teatro popular vivo. Também a parte mais ocidental da ilha foi pouco tocada. Nos Mosteiros, parte ocidental, contactei com uma senhora que sabia muitos romances tradicionais, um dia antes de ela embarcar para a América. Por todas as ilhas, o povo constantemente me referia pessoas já embarcadas havia dias, meses ou anos. Por outro lado, falaram dos falecidos havia já trinta a cinquenta anos que sabiam muitas histórias e contos. Os concelhos de Vila Franca, Povoação e Nordeste foram os mais explorados. Aqui, achei grande quantidade de romances e contos tradicionais. No entanto, continuam indícios do romanceiro e dos contos tradicionais numa última fase de existência nos lugares mais isolados, mesmo dentro de concelhos populosos e evoluídos, como nos concelhos da Maia, Ribeira Grande e Lagoa. Na Ilha do Faial, faltou-me investigar a região entre a Horta e o Salão. Nas outras ilhas - Graciosa, São Jorge, Pico, Corvo, Flores e Santa Maria - abordei quase todas as freguesias e sítios.
A recolha foi feita por meio de gravação. Das nove ilhas, arquivei 145 fitas em que estão gravados mais de 2.900 textos, com a seguinte distribuição:
Há pelo menos:
900 textos do Distrito da Horta (Ilhas do Faial, Pico, Corvo e Flores);
1080 do Distrito de Angra do Heroísmo (Ilhas Terceira, Graciosa e S. Jorge);
35 do Distrito de Ponta Delgada (Ilhas de São Miguel e Santa Maria).
De todas as ilhas, a maior recolha foi feita em São Jorge que forneceu 645 textos, em cinco semanas e meia de pesquisa.
Recolhi principalmente o romanceiro tradicional, com mais de 1.000 variantes sobre pelo menos 50 temas identificados. Há vários outros temas que ainda precisam de ser estudados para ver se pertencem ao romanceiro tradicional ou não. Achei o romanceiro mais vivo nas ilhas das Flores, São Jorge, Graciosa, São Miguel e Santa Maria. Despendi pouco tempo na Graciosa e Santa Maria, mas em duas semanas, na Graciosa, achei 85 textos do romanceiro e, na Ilha de Santa Maria, outros 87 no espaço de 10 dias. Cada pessoa que contava romances também conhecia muitas histórias que pertencem ao género da "literatura de cordel" e acontecimentos locais.
Por razão da limitação de tempo e de fitas de gravação, sacrifiquei em muitos casos o que pertencia a estes géneros para aproveitar o romanceiro. Algumas destas pessoas sabiam também alguns contos tradicionais. Houve alguns contistas que conheciam uns quantos romances antigos; mas em geral fazia-se a separação dos campos. Parece que o povo procura especializar-se nestes géneros. Até os cantadores conhecidos do povo se especializam na "chamarrita", desafio ou cantigas de baile e em geral não conhecem o romanceiro.
Demorei-me outros dez dias em Santa Maria só para gravar cerca de 90 contos tradicionais. Destes 90 contos, 82 foram contados pelo contista José Inácio Resendes, conhecido pela alcunha de José d'Alto, camponês de Santa Bárbara. O seu repertório em grande parte pertence ao género de "contos de encanto" e inclui também algumas anedotas. Era solicitado por certos grupos de pessoas para as entreter nos seus trabalhos durante os serões enquanto bordavam, fiavam, desfolhavam milho, etc. Outro contista, Guilherme Alexandre da Silveira, pescador, dos Cedros, na Ilha das Flores, também forneceu uma grande quantidade de contos. Durante cinco dias, contou-me 37 contos, em 34 horas de entrevista. Também a maior parte destes eram contos de encanto. É exemplo de verdadeiro contista, como o Garajau e o José d'Alto, que nunca se cansa de contar contos. Até ao último dia em que estive na ilha das Flores, contou durante 12 horas exceptuando apenas as horas das refeições. E em vez de descansar, quando, à uma hora da manhã eu estava a recolher os microfones e gravadores para tomar o barco que saía para o Faial às duas da manhã, ele continuava ainda a contar mais um dos seus contos! Narrar contos tradicionais é um divertimento popular entre os pescadores nas Flores. Mas não encontrei quem tivesse um repertório como o dele. Os pescadores, às vezes de brincadeira, dizem que para escutar um conto, é preciso ficar com a boca aberta e "os olhos grandes", como se se acreditasse em tudo. Estes grandes contistas eram analfabetos que aprenderam os contos de outras pessoas antigas que também não sabiam ler nem escrever e que por sua vez os tinham aprendido de outros.
Na Urzelina, São Jorge, até há poucos anos existia um centro de contistas, onde era costume a gente da freguesia reunir-se ao redor de três ou quatro contistas nos serões, para ouvi-los narrar contos em competição uns com os outros, a ver qual tinha mais jeito para contar. Aqui, fiz uma pesquisa durante uma semana, mas disseram-me que os grandes contistas já tinham morrido. Os contistas de menor idade que contribuíram para esta colecção eram dois rapazes, um do Loiral do Meio, na Ilha de São Jorge e outro de Malbusca, Santo Espírito, na Ilha de Santa Maria. Os dois rapazes tinham doze a treze anos de idade. É nesta idade que os de maior jeito começam a formar-se como contistas. Começam mesmo nesta altura a aprender a narrar utilizando os gestos característicos dos contistas de idade. No entanto, verifiquei que os de maior idade, já conhecidos como os melhores contistas, eram os mais activos e mais emotivos quando narravam os contos. Utilizavam até a mesa ou uma cadeira ou qualquer outra peça de mobília para ajudar a recriar e a reviver os contos, como lhe foram contados pelos antigos "daquele tempo". Tenho este facto documentado com uma grande quantidade de fotografias, registando os gestos e movimentos mais significativos do contista a narrar um conto. Temos um verdadeiro teatro em casa.
Constatei que em geral a narração de contos pertencia mais ao homem que à mulher e que o romanceiro tradicional era cantado ou dito mais pela mulher do que pelo homem. Encontrei poucas excepções. O conto continua a pertencer a períodos de descanso e divertimento, quer no fim do dia nos serões, quer num intervalo de trabalho no campo, por exemplo esperando que a chuva pare, ou na pesca à noite. Em contrapartida, o romanceiro acompanha os trabalhos da mesma pessoa que transmite o romance enquanto está a lavar loiça, a amassar o pão, a fiar, a bordar, a trabalhar no campo, a tecer, a cozinhar, etc. Em poucos lugares onde continua a vida à maneira antiga, achei o romanceiro vivo nos períodos de descanso e até acompanhado pela viola. Nestas ocasiões os vizinhos juntam-se e o romanceiro é transmitido a muitos. Também os avós contam os romances aos netos, quando estes se vão deitar. Às vezes, o contista trabalha, desfolhando o milho quando narra um conto, mas, em geral, conta enquanto os outros trabalham ou só na altura do descanso. No total, tenho entre 460-500 textos de contos tradicionais. Alguns dos mais conhecidos, de encantamento, incluem temas como: "O peixe grande", "O pássaro verde", "O filho do ferreiro", "Touro azul", "O rei cego", vários contos da "Fera com sete cabeças", "Os sapatos de ferro", "As torres vermelhas", "Torre de Babilónia", "O navio d'oiro", "Mama na Burra", "José Soldado", "Os três cabelos do Diabo", "João pequenino", "Pele da burra", "O cão leão", "A filha que gosta do pai como sal" e "A bela adormecida". Embora muitos destes textos já apareçam em edições populares, continuam a contar-se as versões antigas, diferentes das impressas. Há uma quantidade de contos deste género de temas menos conhecidos. Também há vários contos de tolos, de princesas e adivinhas, de menosprezar dos padres, frades, gigantes, e do "rapaz forte".
Da "literatura de cordel", acontecimentos locais e outras narrativas em verso, tenho mais de 300 textos. Nestes géneros a memória do povo apoia-se nos folhetos. Os que sabem ler decoram os versos que leem, os analfabetos decoram os versos com o auxílio de outra pessoa que os recita dos folhetos ou cadernos escritos à mão, copiados de outros que possuíam os folhetos ou que conheciam os versos de cor. Por exemplo, temos na memória do povo: "Jacinto Pedro", "A morte do rei Dom Carlos", "A disputa de água e vinho", "O noivado do sepulcro", "Casamento infeliz", testamentos vários como o do galo, o da raposa, o do porco, e o da vaca trigueira, "O marujo", "A vida do jogador", "João de Calais" (este tema existe em prosa e em verso), "António e Leonor", "O barqueiro", "Menina na confissão", "Antoninho vai para a aula", "O rude trabalhador", "Dia de juízo", "Ernesto e Carlota", "O coelho mais a coelhinha", "Alfredo e Josefina", "O Senhor Padre Cura", "Santa Genoveva" (este tema existe na memória do povo em forma de literatura de cordel, teatro, e prosa), "São João Baptista", "Fado do ingrato", "As freiras de Santo André", "A viuvinha", "O ladrão maldito", "João e Balbina", "Naufrágio do Lidador", "Os mandamentos do amor", "Mariana pela rua", "Oh Juliana", "Santa Isabel", "A confissão de Nosso Senhor", "Padre Nosso pequenino", "A morte do queimado", "A Batalha de La Lys em França", "A menina de França", "Dia de finados", "A Virgem foi ao oiteiro", "Carlos e Rosa", "Carlos e Amélia", "O canário", "Eduardo e Emília", "Gracinda Bela" e "Alfonso e Isolina". Há grande quantidade de orações. As figuras de Carlos Magno, da Imperatriz Porcina, da Princesa Magalona, e de Dona Inês de Castro são muito populares, mas parece que o povo já não sabe contar as histórias respeitantes a estas figuras. Houve uns livros do fim do século passado sobre Carlos Magno que passaram de mão em mão e que já desapareceram. Consegui recuperar dois destes livros. Um já não tem as primeiras nem as últimas páginas. Outro que passou de mão em mão entre o povo na Graciosa foi traduzido do castelhano, para português, por Jeronymo Moreira de Carvalho e foi publicado em Lisboa no ano 1875. Dona Inês de Castro continua viva no teatro popular, mas o povo tem que apoiar-se na escrita. A Imperatriz Porcina existe num folheto no princípio deste século publicado em Fall River, Massachussetts (s.d.) pela Livraria Portugueza, Editora de Manuel Capeto e Co. Foi enversado pelo cantor popular José Ignacio Farias, "natural da Freguezia de Santo António". Esta livraria vendia folhetos sobre outros temas como: "A Santa Genoveva", "D. Ignez de Castro", "O casamento infeliz", "Os homens da Cruz Vermelha" e "Os Martyres da Germania". As duas primeiras destas figuras são as que foram mais divulgadas e que também figuram no teatro popular. A Imperatriz Porcina também foi vulgarizada pelas edições populares do Bazar Feniano no Porto.
O resto da colecção consiste em ditados, adivinhas, adágios, lenga-lengas, canções líricas e bailes de roda e "chamarrita", desafios e despiques, canções de trabalho, lendas e alguns elementos do teatro popular: conto como um texto cada colecção de cantigas de festas, especialmente as da "Festa do Espírito Santo"; de "O dia dos reis" e das "Romarias". Fiz o mesmo com cada entrevista com os baleeiros sobre a terminologia da caça da baleia. Esta terminologia é baseada no inglês arcaico. Seria útil fazer um estudo filosófico desta terminologia; comparando a sua utilização em cada lugar onde se caça a baleia. Há variação na utilização e pronúncia de lugar para lugar. Completar-se-iam assim outros estudos fonéticos da fala açoriana. A caça da baleia está a acabar. Os jovens não têm interesse em ser baleeiros. Há pouco mercado para a venda do óleo. A farinha vende-se melhor. Os baleeiros estão a abandonar as ilhas na primeira oportunidade que se lhes oferece. A indústria da caça de baleia existia nas ilhas desde o fim do séc. XVIII. O açoriano já tinha assimilado a terminologia mais cedo, ao entrar nos navios da Nova Inglaterra desde a primeira metade daquele século. Mas os americanos principiaram a indústria de baleia nas próprias ilhas em 1832. No entanto, o auge da caça da baleia inicia-se em 1849-50 no Faial quando o Cônsul Americano Dabney se associou a Bensaúde formando a empresa conhecida agora como "Bensaúde Shipping Co." Quando as vinhas no Pico foram destruídas em 1853 por uma doença (Phylloxera) muitos picoenses foram atraídos para a caça da baleia e assim ali se desenvolveu uma grande indústria .
À parte das gravações, recolhi provérbios, vários folhetos antigos e cadernos escritos à mão incluindo literatura de cordel, acontecimentos locais, romances tradicionais, versos líricos, cantigas de baile e teatro popular ainda conservados nas mãos do povo que generosamente nos ofereceu ou nos emprestou.
PURCELL, Joanne B. "A riqueza do romanceiro e outras tradições orais nas ilhas dos Açores". Atlântida, vol. XIV, (1970), p. 223-252.
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